O Globo
Presidente da Câmara rasga a fantasia de
defensor dos grandes temas que chegou a envergar e mergulha a Casa no pior do
atraso
Arthur Lira passou 2023 fazendo retrofit de
sua imagem: de rei do baixo clero — alcunha, aliás, que nunca fez jus à extensa
carreira de cacique na Casa —, passou a atuar como avalista das grandes
questões econômicas e acabou o ano incensado pelo mercado. À medida que se
aproxima sua sucessão, no entanto, Lira se volta ao perfil de presidente do
“sindicato dos deputados”, como ele mesmo designa o grupo amplo e heterogêneo
que aglutinou em torno de si.
Ao ceder à pressão para aprovar a urgência na apreciação do Projeto de Lei 1.904, foi longe demais. Por mais que tente minimizar a gravidade do que a matéria propõe, na prática ele mergulhou a Casa no obscurantismo total e jogou as mulheres, sobretudo as mais vulneráveis, na fogueira.
Não há como atenuar uma proposta concebida
para encarcerar mulheres e transformar vítimas de violência sexual em
homicidas. Os argumentos que Lira usa não são objetivos. Não é possível dizer
que o texto que valerá só disporá sobre um procedimento específico, a
assistolia fetal.
O que a sociedade tem de concreto para
analisar são os projetos como passam pelas diversas instâncias da Câmara. Lira
usa o expediente surrado de apontar fake news da parte dos que o criticam, mas
o próprio site da Câmara trazia a seguinte manchete: “Câmara aprova urgência
para projeto que equipara aborto após 22 semanas a homicídio”
É disso que se trata, todo o resto é
tergiversação de quem tenta justificar o injustificável: usar a vida e os
direitos das mulheres como moeda de troca para atender a desígnios de bancadas
que fazem da religião palanque político, distorcendo conceitos básicos do
cristianismo, sejam católicos ou evangélicos os prosélitos interessados nessa
matéria retrógrada.
Como justificar à luz da religião uma
proposta que relativiza as mais sórdidas formas de violência contra mulheres e
meninas e joga sobre as vítimas o peso da lei, mesmo se buscarem amparo nos
casos de aborto legal? Esse projeto coloca o Brasil como pária global na
discussão, num momento em que os países mais desenvolvidos, mesmo os de
tradição católica, investem na descriminalização da mulher em casos de aborto.
Sim, é fato que não existe consenso na
sociedade brasileira para avançar para além dos casos de aborto legal já
previstos hoje. O Congresso tem de refletir a sociedade, mas não mergulhá-la
nas trevas em virtude de lobbies influentes que enxergam na troca da guarda no
Salão Verde uma oportunidade de passar a pior boiada possível, uma pauta cheia
de interesses paroquiais que não atende às prioridades do país.
Lira gosta de se gabar de que nada na Câmara
anda sem seu aval. Até aqui, também se vangloriava de não ter deixado prosperar
sob seu comando nenhuma pauta de costumes que atendesse ao que chama de “dois
extremos”, uma maneira bastante maniqueísta de juntar no mesmo balaio a agenda
da extrema direita em temas como drogas e segurança e as reivindicações da
esquerda progressista e identitária.
Agora que precisa manter coesa essa base,
resolveu liberar geral. O projeto que anula delações de réus presos é outra
excrescência dessa fase, além de tudo inócua para os fins a que se destina, uma
vez que uma lei não pode retroagir nesses casos — e, portanto, o vale-tudo não
poderá beneficiar Jair Bolsonaro, Domingos Brazão e outros investigados.
Assim, na reta final, Lira rasga a fantasia
de defensor dos grandes temas que chegou a envergar e mergulha a Câmara no pior
do atraso. Sob os olhos inertes de Lula, uma vez que este fim de feira só é
possível porque o Executivo já não tem o menor controle sobre o andamento da
pauta do Congresso — basta ver que o presidente delegou ao Senado encontrar uma
saída para compensar as desonerações.
Muito bom! Lira realmente mostra sua face verdadeira, apoiando a urgência para este projeto nojento que criminaliza vítimas e só é defendido por religiosos radicais e bolsonaristas.
ResponderExcluirO tema do aborto é complicado,quando o feto,ou embrião,começa a sentir dor?
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