quarta-feira, 26 de junho de 2024

Zeina Latif - Quando o patrimonialismo se disfarça de justiça social

O Globo

Se o Congresso ceder aos grupos que buscam a ampliação da lista das isenções, o tiro poderá sair pela culatra

O projeto de lei complementar para a regulamentação da Reforma Tributária está em discussão na Câmara. O objetivo é definir a lista de itens com isenção total ou parcial dos tributos (CBS e IBS), uma vez que a emenda constitucional promulgada apresenta apenas grupos gerais que poderão contar com esses benefícios.

Pela proposta, a alíquota zero é prevista para 15 produtos da cesta básica e outros tantos itens, por exemplo, na área de saúde e cuidados básicos, e transporte público coletivo, enquanto 13 categorias são contempladas com o desconto de 60% na alíquota padrão, incluindo, por exemplo, serviços de saúde e educação e atividades culturais diversas.

Grupos organizados pressionam para a ampliação da lista. O argumento é que os mais pobres precisam ser protegidos, ou por ser tratar de itens com maior peso no orçamento familiar, ou porque preços elevados afastariam esse mercado consumidor. Se o Congresso ceder, o tiro poderá sair pela culatra.

O argumento de que a menor taxação implicará preços mais baixos é frágil. Primeiro, porque ela poderá se transformar, em maior medida, em aumento da margem de lucro. O repasse pleno do benefício aos preços ao consumidor depende de condições específicas, possivelmente pouco observadas: a elevada concorrência e flexibilidade na oferta do bem ou serviço, e este não ser um item de consumo essencial, pouco sensível a variações de preços.

Segundo, porque, dada a necessidade de preservar a carga tributária atual, será necessário compensar a grande perda de arrecadação com o aumento da alíquota padrão, prejudicando mais os mais pobres, cuja cesta de consumo tem mais itens taxados pela alíquota cheia. Essa é a conclusão da pesquisa de Rozane Siqueira, José Ricardo Nogueira e Carlos Luna sobre o impacto da regulação proposta.

Os autores apontam o incremento de 4,3pp (ponto percentual) sobre a alíquota padrão decorrente da isenção total e de 3,8pp decorrente do desconto de 60%. É muita coisa. Enquanto isso, os 20% mais pobres estarão mais expostos à alíquota padrão (63% do seu consumo) do que os 20% mais ricos (61,6%).

No caso da alíquota zero, os itens contemplados têm maior peso na cesta dos mais pobres, mas gera-se grande renúncia tributária, pois os ricos também são beneficiados. No grupo com isenção parcial, há ainda o agravante de se beneficiar mais proporcionalmente os mais ricos.

A elevada alíquota padrão acaba tendo efeito ainda mais perverso devido ao elevado peso dos tributos sobre o consumo na carga total — o peso de 60% é ainda maior do que em países emergentes, por conta dos elevados gastos; no caso da União, opta-se pelo aumento do PIS/Cofins, que não são repartidos com os demais entes, e estes, por sua vez, dependem bastante de impostos sobre o consumo (ICMS e ISS).

A busca por uma carga tributária mais progressiva (quem pode paga mais) é meritória, mas a tributação sobre o consumo não é o instrumento recomendado para isso — o Imposto de Renda cumpre melhor esse papel, havendo muitas injustiças a serem corrigidas —, e a estratégia escolhida poderá se mostrar contraproducente.

Isso não invalida, porém, os benefícios que a implementação do IVA poderá trazer aos pobres. Os ganhos propiciados pela simplicidade (reduz custos de transação e judicialização) e pela neutralidade (quando o tributo não distorce as decisões de onde, o que e como produzir), dois princípios fundamentais de um bom sistema tributário, contribuem para destravar o potencial de crescimento do país. E o crescimento é condição básica para se promover a igualdade.

A isonomia da tributação entre os setores também tem impacto distributivo benigno. Atualmente, os serviços são subtributados, sendo mais consumidos pelos mais ricos, como saúde, educação, segurança, turismo e lazer. Aqui, porém, a reforma poderia ter sido mais justa.

Ao final, as muitas concessões fazem com que o efeito redistributivo da reforma seja quase desprezível, segundo os autores. Isso mesmo com o cashback (devolução de tributos para os pobres registrados no Cadastro Único, que precisa ser aperfeiçoado).

Considerando ainda as complexidades e distorções adicionadas ao projeto inicial, a relação custo-benefício da busca por progressividade não é adequada.

Agora é torcer para que a regulamentação da reforma não piore aquilo que já nos distanciou da experiência mundial bem-sucedida.

 

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