sábado, 20 de julho de 2024

Eduardo Affonso - Falso ou verdadeiro?

O Globo

O brasileiro está mais exposto aos vieses dos algoritmos, a ficar refém da própria bolha

Uma pesquisa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), publicada em junho, avaliou em 21 países a capacidade da população de identificar notícias falsas. Para surpresa de ninguém, o Brasil ficou em último lugar.

São vários os motivos para nossa constrangedora credulidade. Alguns, universais — como o viés de confirmação, que nos leva a acreditar no que mais nos convém (vide os “patriotas” identificando sinais de uma iminente operação de “garantia da lei e da ordem”, que lhes garantiria burlar a lei e institucionalizar a desordem). Outros, ligados ao estágio de qualquer país eternamente “em desenvolvimento” — como o baixo nível de alfabetização digital, que nos deixa acríticos (vide a quantidade de gente que ainda cai em golpes na internet). Há também a desinformação sistêmica — uma força-tarefa trabalhando em tempo integral para desintegrar nossos detectores de mentiras.

Mas o mais relevante talvez seja a intensiva naturalização do absurdo por que vimos passando, com o impossível acontecendo com notável regularidade. Queijaria e locadora de veículos ganham megalicitação do governo para importação de arroz. Multas bilionárias (de empresas que já assumiram a culpa, já foram condenadas, já devolveram parte dos valores desviados) são canceladas — mas o equilíbrio das contas depende de meter a mão no bolso do contribuinte.

“Ela não merece [ser estuprada] porque é muito feia” e “Depois de jogo de futebol, aumenta a violência contra a mulher. [Mas] se o cara é corintiano, tudo bem”. Essas frases são falsas ou verdadeiras? Qual foi dita por um machista juramentado, qual por um defensor da igualdade de gênero?

Em 2019, quando da prisão de Michel Temer, escrevi um texto satírico, imaginando a carta de solidariedade de Dilma Rousseff ao ex-aliado. Começava assim:

— Primeiramente, escrevo esta carta do fundo do meu coração no que se refere a sentimento, que é uma coisa muito importante que a pessoa ela sente e ela precisa demonstrar. O pai tem, a mãe tem, e ter não é mais importante do que ser, conforme dizem os filósofos, que são pessoas que pensam sobre os sentimentos, como os gregos, que eram filósofos também e inventaram o esporte olímpico, que nos deixou o legado.

Acostumados que estávamos aos desarranjos verbais da ex-presidenta, a piada foi levada a sério e teve de ser desmentida por uma agência de checagem de fatos. (A propósito, como confiar em agências de checagem se também elas espalham notícias falsas, como as pseudoetimologias racistas?)

O brasileiro se informa preferencialmente pelas redes sociais, não por jornais, revistas, televisão. Logo, está mais exposto aos vieses dos algoritmos, a ficar refém da própria bolha. Mas isso já não faz muita diferença quando profissionais da imprensa se afastam de sua missão de informar e analisar para tomar partido e encampar (a palavra da moda é “vocalizar”) as “narrativas” oficiais.

Como duvidar da notícia (evidentemente falsa...) de que o ministro Haddad taxará os memes que satirizam sua fúria taxatória (“Os taxa- fantasmas”, “Taxando o pobre adoidado”, “Zé do Taxão”...) e acreditar na (dolorosamente verdadeira) de que jornalistas tenham clamado pela necessidade de que memes (memes!) sejam regulamentados? Assim fica difícil subir no ranking da OCDE.

 

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