O Globo
Sabíamos do El Niño, do aquecimento global e
de tudo mais. Houve incapacidade de planejamento e prevenção
Para quem não conhece, a palavra pantanal não
transmite a riqueza desse bioma brasileiro. Mesmo se o descrevemos
geograficamente como maior planície úmida do planeta, ainda dizemos pouco. É
preciso navegar nos rios, conhecer sua gente, contemplar os bichos para sentir
algo que pode ser descrito como um paraíso tropical.
São 652 espécies de aves, 264 de peixes, 102 de mamíferos e 40 de anfíbios. Isso também não quer dizer muito até ver o improvável voo do tuiuiú, ave que simboliza o Pantanal, uma onça-pintada que resiste na região, conhecer uma mulher que fala com jacarés, comer um dourado, um pintado, um pacu.
Quando Daniel Cohn-Bendit me convidou para um
documentário sobre os sobreviventes de 1968, escolhi o Pantanal como locação
das filmagens. Para mim, sem menosprezo pelas outras, era uma bela imagem do
nosso país.
Durante minha passagem pelo Congresso, redigi
um projeto para tornar o Pantanal região independente de Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul. Cheguei a fazer uma audiência pública em Miranda (MS), onde
a ideia foi muito bem-aceita. O objetivo era captar ajuda internacional e
administrar a região por meio de um grande comitê de bacia hidrográfica, uma
unidade de gestão mais moderna e democrática. A ideia não foi para a frente,
assim como o projeto de autonomia de Fernando de Noronha. Ambos dependiam de um
plebiscito nos estados, e as chances de vitória eram muito reduzidas, quase
nulas.
Hoje, o Pantanal está
em chamas, e alguns moradores de Corumbá fazem festas juninas. A
previsão é que perderemos 2 milhões de hectares. O ar ficará mais pesado
na Bolívia,
no Paraguai,
no norte da Argentina e
no sul do Brasil.
Cobri incêndios no Pantanal. Não se descrevem
apenas por hectares destruídos. É um inferno para os bichos que tentam escapar
do fogo e são atropelados nas estradas. Funcionei como guarda de trânsito
tentando ajudar uma cobra a cruzar a pista. Mas, ao longo do caminho, havia
dezenas de bichos atropelados.
Existem muitas causas profundas da decadência
do Pantanal. As chuvas que vêm da Amazônia não são mais as mesmas, os rios da
região são atacados dentro e fora da região, o investimento em prevenção é
muito baixo. O solo está mais seco do que nunca. As causas naturais de incêndio
são desprezíveis: não há raios. A temperatura está 2 graus acima da média,
chuvas escassas, fogo provocado por nós mesmos. Já foram queimados neste ano
627 mil hectares, e ainda há longa estiagem pela frente.
Sabíamos do El Niño,
do aquecimento global e de tudo mais. Houve incapacidade de planejamento e
prevenção. Estamos queimando uma bela herança para os netos e um capital
turístico que pode atrair recursos e empregar muita gente.
Não adianta muito implorar por urgência. O
presidente do país fala sobre tudo, menos sobre a destruição de uma riqueza
nacional; deputados e senadores gozam uma semana de férias por causa das festas
de São-João; ministros do STF discutem
o Brasil em Lisboa,
num encontro que mistura empresários, políticos e juízes e a imprensa chama de
Gilmarpalooza, porque ele é o organizador do festival.
Enquanto isso, o Pantanal arde, os bichos são
carbonizados, e vamos perdendo um belo pedaço do Brasil. Eles não teriam
solução para o fogo, uma vez que não houve prevenção adequada, e agora só
podemos reduzir os danos. Mas se comportam como se o Pantanal fosse noutra
galáxia.
Sinceramente, não sei como as novas gerações
reagirão quando descobrirem que ateamos fogo em tanta beleza e riqueza natural.
A ficção científica já tratou de sociedades que queimam livros. Há espaço para
as que, com certa naturalidade, queimam árvores e bichos.
Queimar bichos é o fim da picada,é a garrafa de cana,esilhaço na estrada...
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