sexta-feira, 5 de julho de 2024

Flávia Oliveira - Adubar o debate

O Globo

País deixou passar quase despercebido um anúncio de imensa importância para economia

É de pobreza franciscana o debate macroeconômico brasileiro, restrito, quase sempre, às estimativas e análises de operadores do mercado financeiro. Nada contra bancos, corretoras, consultorias nem seus modelos econométricos e dedos nervosos. São agentes econômicos relevantes. Só não são os únicos. Desde a reunião de maio do Comitê de Política Monetária (Copom), quando a taxa básica de juros foi reduzida em 0,25 ponto percentual pelo placar apertado de 5 a 4, inaugurou-se um rali tão indesejado quanto perigoso para a vida real dos brasileiros.

Foi tomada como política a divergência — anotada tecnicamente em ata — entre os membros indicados por Jair Bolsonaro, à frente Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central (BC); e por Lula, a começar por Gabriel Galípolo, diretor de Política Monetária e favorito a suceder a Campos Neto. O quarteto que defendia corte de meio ponto percentual na Selic, então em 10,75% ao ano, foi derrotado e a taxa passou a 10,5%. A pressão por decisão contracionista e unânime na reunião seguinte, em junho, materializou-se em declarações, relatórios e estimativas do Boletim Focus, publicação semanal do BC com projeções predominantemente do... mercado. Se é indesejável um colegiado de nove pessoas expressar posições diferentes, melhor fazer do Copom uma autocracia.

Por desconfiança (permanente) no compromisso fiscal do governo Lula, impactos na inflação da tragédia socioclimática do Rio Grande do Sul e da seca severa no Centro-Oeste, incertezas na economia global, as previsões para o IPCA embicaram para o alto. O número um do BC emburacou em rolês e discursos políticos; e o presidente da República, em críticas diárias a Campos Neto e à política de juro real acima de 6% ao ano. O tempo fechou no câmbio e, sem intervenção do BC, o dólar escalou, num par de semanas, para R$ 5,70, maior patamar em dois anos e meio.

Fernando Haddad conseguiu pacificar o ambiente, de um lado, arrancando de Lula compromisso com a meta fiscal; de outro, prometendo bloqueio de gastos e enxugamento de R$ 25,9 bilhões em despesas obrigatórias. Num arremedo do mitológico “trabalho de Sísifo”, o ministro da Fazenda é sempre levado a reconstruir, tijolo por tijolo, o muro de credibilidade que não para em pé, ainda que tenha, em ano e meio, entregado PEC da Transição, arcabouço fiscal, reforma tributária, meta de déficit zero, crescimento do PIB acima do previsto, desemprego no menor patamar (7,1%) em uma década, massa de rendimentos em nível recorde, meta contínua de inflação em 3%.

Enquanto o debate econômico mirou no duelo entre Lula e Campos Neto, em bem-vindas férias, e no vaivém do dólar, o país deixou passar quase despercebido um anúncio de imensa relevância para política monetária e balanço de pagamentos, inflação e mudança climática, segurança alimentar e soberania, trabalho e investimento. Anteontem, o Planalto tornou público o Plano Safra 2024/25, o maior da História em linhas de crédito, incentivos e políticas. O caminhão de dinheiro chega a R$ 400,5 bilhões para médios e grandes produtores e a R$ 76 milhões para a agricultura familiar.

É verdade que nem tudo é maravilha no programa. A soja, carro-chefe das exportações brasileiras no agro, sorve a maior parte dos recursos. No grupo das pequenas propriedades, há concentração de desembolsos na Região Sul, em detrimento de outras áreas; falta ênfase em assistência técnica; o acesso é limitado por falta de informação, como destaca o economista Arnoldo Campos, ex-secretário da Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Há que democratizar, #ficaadica.

O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, reportou abertura de 152 novos mercados para os produtos brasileiros desde 2023. Haddad destacou que o Plano Safra se alinha ao Plano de Transformação Ecológica do Brasil. A recuperação de terra degradada será financiada a juros baixos. Incentivo à produção alinhado ao combate ao desmatamento. Práticas sustentáveis podem render 1 ponto percentual a menos na taxa de custeio. Haverá juro subsidiado também na agricultura familiar, especialmente na produção de orgânicos. A safra de arroz pode ser elevada em 1 milhão de toneladas com a diversificação das áreas de cultivo e os contratos de opção de venda ao governo.

Aumento da safra, nas médias e grandes propriedades, ajuda o balanço de pagamentos e o combate à inflação, porque exportações trazem dólares; ativa o PIB agropecuário e a cadeia produtiva que o cerca. O impulso à agricultura familiar — responsável pelos alimentos que os brasileiros comemos, de arroz e feijão a mandioca, frutas e hortaliças — é sinônimo de direito à alimentação e à saúde, segurança alimentar, dignidade humana. E soberania. Durante a pandemia, China e Índia suspenderam ou sobretaxaram as exportações de arroz, em benefício dos mercados locais. Por último, mas não menos importante, oferta de alimentos ajuda na estabilidade, porque escassez é siamesa da inflação. Se os preços não sobem, os juros podem cair, e a popularidade do presidente aumentar.

 

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