sexta-feira, 12 de julho de 2024

Hélio Schwartsman - Maleabilidade ideológica

Folha de S. Paulo

Mesmo assim continuamos a usá-los porque permitem que falemos às nossas tribos

Os conceitos de esquerda e direita ainda fazem sentido? Cada vez menos.

Os termos surgiram na França pré-revolucionária, quando tinham precisão geográfica. Os representantes da nobreza e do clero, que defendiam as teses mais conservadoras, se sentavam à direita do rei; os da burguesia, com ideias de mudança, ficavam à esquerda. Era possível, portanto, prever as posições de um deputado apenas sabendo onde ele se sentava. De lá para cá, o mundo se tornou mais complexo e mais confuso.

É só ver que a plataforma econômica da Reunião Nacional, o baluarte da extrema direita francesa, é muito semelhante à da França Insubmissa, a agremiação da esquerda radical. Vladimir Putin encontra apoiadores tanto à direita quanto à esquerda. A defesa da liberdade de expressão, que já foi bandeira da esquerda, virou da direita.

Fazemos a classificação de quem é o que combinando, de forma pouco consistente, o posicionamento em relação a temas-chave, como privatizações, aborto e imigração, com um critério genealógico. Partidos que nasceram como de esquerda ou de direita carregam essa marca mesmo que se afastem do ideário original.

Haveria formas mais científicas de fazer essa classificação? Sim. Gosto do sistema concebido por Jonathan Haidt, baseado num núcleo de seis sentimentos morais básicos: proteção, justiça, liberdade, lealdade, autoridade e santidade (pureza). O perfil ideológico de cada indivíduo seria resultado das diferentes proporções desses "ingredientes". O que normalmente chamamos de esquerda enfatiza os dois primeiros. A direita faria uma mistura de todos os seis.

O problema desse sistema é que ele não pegou. Ele gera diagnósticos granulares, que, se ganham em precisão, perdem ao deixar de lado as delícias do enquadramento binário, cuja imprecisão intrínseca nos permite usar os termos direita e esquerda como elogio ou xingamento, ao sabor das preferências de nossa tribo.

 

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