segunda-feira, 1 de julho de 2024

Marcus André Melo - O operador e a máquina

Folha de S. Paulo

O maquinário das democracias atuais está caindo frequentemente nas mãos de mecânicos ineptos

Para Giovanni Sartori (1924-2017), a democracia consiste em um maquinismo e um conjunto de maquinistas que têm que pôr a máquina para funcionar. Mas quando nos queixamos da democracia e denunciamos sua crise geralmente focamos o maquinismo e esquecemos os operadores. Ou atacamos os maquinistas e esquecemos o maquinário.

O maquinismo é a estrutura constitucional do país. Embora defenda que o maquinário das democracias atuais é "decente", embora esteja "caindo frequentemente nas mãos de mecânicos ineptos". Sartori é cáustico em relação a nossa Constituição, que é repleta de "dispositivos quase suicidas" e "promessas irrealizáveis". (Sim, a carta de 1988 continha um dos mais bizarros dispositivos já incorporados a uma constituição: o tabelamento da taxa de juros).

Mas o núcleo duro do nosso maquinário é o presidencialismo de coalizão com um Poder Executivo constitucionalmente forte, e com forte delegação de poderes ao Judiciário e Ministério Público. Não tenho dúvidas que o nosso maquinário é "decente": na realidade, o presidencialismo multipartidário é a forma modal de sistema de governo no mundo atualmente.

Ele produz, sob certa condições, governabilidade e bom governo. Os múltiplos pontos de veto garantem inclusividade —muitos atores participam dos processos decisórios— e certa irreversibilidade quando as decisões são tomadas (deixemos de lado por um momento a imprevisibilidade criada pelo STF). O sistema se move de forma lenta e ineficiente. Como um transatlântico. Mas por isso mesmo não permite transformações radicais, como aconteceu sob Bolsonaro.

O risco de imobilismo é perene, sim. As democracias sempre produzem bom governo em um sentido negativo porque impedem a tirania. Mas não são sinônimos de bom governo. As escolhas coletivas sob a democracia podem produzir resultados pífios. Mas há um mecanismo que potencialmente pode permitir correção de rumos —eleições novas—, e alternância de poder; (mecanismo que sob o parlamentarismo quando não temos mandatos fixos para o Executivo é eficiente). Como já discuti neste espaço, o mau governo pode resultar também de crenças tecnicamente infundadas que produzem resultados pífios nas políticas públicas.

A máquina também exige um operador eficiente, como insiste Sartori. Para forjar consensos e maiorias. Aí está o nosso principal desafio: não temos tido operadores que combinem capacidade de forjar coalizões efetivas, crenças tecnicamente fundadas, e apoio popular. Ausência de confrontos institucionais paralisantes, portanto, governabilidade, não equivale a bom governo.

 

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