terça-feira, 2 de julho de 2024

Míriam Leitão - Por que lembrar o Plano Real?

O Globo

Na tumultuada história monetária brasileira, existe o antes e o depois do Plano Real. E, por isso, este marco de 30 anos deve ser relembrado

Quando pedi a entrevista a Edmar Bacha sobre o real, na preparação de um documentário, ele perguntou: “O que deu no Brasil? O real fez 1,5, 15, 29 anos e tudo bem. Faz 30 e todo mundo quer falar disso?” Verdade. Isso pode indicar que o Brasil é cauteloso. Quer ter certeza antes de comemorar. Nessas três décadas, houve momentos de perigo em que a inflação ficou em dois dígitos, mas acabou voltando a ser controlada. Em qualquer pesquisa de opinião pública, quando perguntada, a grande maioria da população responde que está preocupada com a inflação. A atitude de permanecer vigilante é parte desse sucesso.

Ex-ministro da Fazenda destaca as conquistas da estabilização, mas diz que falta avançar na melhoria das contas públicas: 'A ideia que, para ser responsável fiscalmente, você é irresponsável socialmente nunca me encantou'

Outra dúvida que paira no ar é por que o governo não fala dessa data, como se ela não tivesse importância? Existe na tumultuada história monetária brasileira o antes e o depois do Plano Real. E se teve pais certos e sabidos, é patrimônio do país. Todos os governos que vieram depois se beneficiaram daquele esforço de aplainar o terreno econômico que permitiu outras políticas públicas. Basta pensar na transferência de renda aos mais pobres, em que o símbolo é o Bolsa Família. Ela se tornou mais eficiente porque veio depois da estabilização.

Houve uma comemoração no Banco Central em maio. Só uma parte da programação foi aberta à imprensa. Mas o governo Lula mesmo, nada teve a dizer sobre esse marco da história do Brasil. Pode permanecer em silêncio. O importante foi que, quando Lula assumiu pela primeira vez, o então ministro Antonio Palocci manteve as bases do Plano Real e do sistema de metas de inflação, evitando os experimentalismos que eram propostos pelo seu campo político. Sempre que as bases do real foram atingidas, como na contabilidade criativa, o preço a pagar pelo país e pelo partido foi alto.

Eu perguntei a vários dos pais do real, no documentário que fiz para a GloboNews, quando eles se convenceram de que a economia estava estabilizada. A resposta quase unânime: “na transição para o governo Lula”. Eu mesma passei a escrever meu livro “Saga Brasileira”, que ganhou o Jabuti de Livro do Ano em 2012, depois que o país venceu esse último teste, o da travessia política. A confirmação do plano pelos governantes que assumiram em 2002 foi a última etapa daquele processo.

Rosilene Coutinho era caixa de supermercado no Recife na época do real. Viu as pessoas exigirem moeda de troco, da mesma forma que havia visto as cédulas desvalorizadas. Decidiu fazer o curso de economia doméstica e, depois, organizou a Associação das Donas de Casa. Ela disse uma frase de extrema sabedoria no documentário. “Quando a gente tem um problema, ou a gente nega ou a gente aprende.” Isso serve para a vida.

O mérito de quem fez o Plano Real e da população que o apoiou foi o de aprender com aquele sofrimento econômico. O grande aprendizado é que inflação sempre haverá — está agora entre 3,5% a 4% — mas não pode virar um monstro que nos consome. Por isso, o real continuará sob olhar da população que aprendeu, da pior forma, como é difícil conviver com uma moeda cujo valor derrete a cada hora do dia.

Depois do primeiro de julho de 1994, vieram as crises. Houve a crise bancária em que três dos maiores bancos quebraram, seus donos foram punidos e os correntistas protegidos das perdas monetárias. O Proer foi uma obra cuidadosa de administrar a falência de bancos grandes para que ela não se propagasse por todo o sistema, um plano a favor dos correntistas e uma cirurgia de peito aberto no sistema bancário. Perigoso momento. A desvalorização do câmbio em 1999 foi outro tempo de risco, mas acabou sendo contornado com a introdução do sistema de metas de inflação.

Em 19 de maio de 1989, houve o lançamento da nota de 100 cruzados novos com a efígie da poeta Cecília Meireles. No ano seguinte, foi carimbada como 100 cruzeiros. Depois reimpressa com o nome de cruzeiro. Então a história registra três tipos de Cecília, com duas unidades monetárias e um carimbo no meio. Deixou de circular em 30 de setembro de 1992, valendo um centavo e meio do valor que tinha ao ser lançada. Enfrentou nesses 40 meses da sua existência 630 mil por cento de inflação. Por que lembrar tudo isso? A nossa poeta nos ensina em versos lindos que coloquei na epígrafe do meu livro: “Porque há doçura e beleza na amargura atravessada, e eu quero a memória acesa depois da angústia apagada.”

 

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