O Globo
Na tumultuada história monetária brasileira,
existe o antes e o depois do Plano Real. E, por isso, este marco de 30 anos
deve ser relembrado
Quando pedi a entrevista a Edmar Bacha sobre o real, na preparação de um documentário, ele perguntou: “O que deu no Brasil? O real fez 1,5, 15, 29 anos e tudo bem. Faz 30 e todo mundo quer falar disso?” Verdade. Isso pode indicar que o Brasil é cauteloso. Quer ter certeza antes de comemorar. Nessas três décadas, houve momentos de perigo em que a inflação ficou em dois dígitos, mas acabou voltando a ser controlada. Em qualquer pesquisa de opinião pública, quando perguntada, a grande maioria da população responde que está preocupada com a inflação. A atitude de permanecer vigilante é parte desse sucesso.
Ex-ministro da Fazenda destaca as conquistas
da estabilização, mas diz que falta avançar na melhoria das contas públicas: 'A
ideia que, para ser responsável fiscalmente, você é irresponsável socialmente
nunca me encantou'
Outra dúvida que paira no ar é por que o
governo não fala dessa data, como se ela não tivesse importância? Existe na
tumultuada história monetária brasileira o antes e o depois do Plano Real. E se
teve pais certos e sabidos, é patrimônio do país. Todos os governos que vieram
depois se beneficiaram daquele esforço de aplainar o terreno econômico que
permitiu outras políticas públicas. Basta pensar na transferência de renda aos
mais pobres, em que o símbolo é o Bolsa Família. Ela se tornou mais eficiente porque
veio depois da estabilização.
Houve uma comemoração no Banco Central em
maio. Só uma parte da programação foi aberta à imprensa. Mas o governo Lula mesmo,
nada teve a dizer sobre esse marco da história do Brasil. Pode permanecer em
silêncio. O importante foi que, quando Lula assumiu pela primeira vez, o então
ministro Antonio
Palocci manteve as bases do Plano Real e do sistema de metas de
inflação, evitando os experimentalismos que eram propostos pelo seu campo
político. Sempre que as bases do real foram atingidas, como na contabilidade
criativa, o preço a pagar pelo país e pelo partido foi alto.
Eu perguntei a vários dos pais do real, no
documentário que fiz para a GloboNews, quando eles se convenceram de que a
economia estava estabilizada. A resposta quase unânime: “na transição para o
governo Lula”. Eu mesma passei a escrever meu livro “Saga Brasileira”, que
ganhou o Jabuti de Livro do Ano em 2012, depois que o país venceu esse último
teste, o da travessia política. A confirmação do plano pelos governantes que
assumiram em 2002 foi a última etapa daquele processo.
Rosilene Coutinho era caixa de supermercado
no Recife na época do real. Viu as pessoas exigirem moeda de troco, da mesma
forma que havia visto as cédulas desvalorizadas. Decidiu fazer o curso de
economia doméstica e, depois, organizou a Associação das Donas de Casa. Ela
disse uma frase de extrema sabedoria no documentário. “Quando a gente tem um
problema, ou a gente nega ou a gente aprende.” Isso serve para a vida.
O mérito de quem fez o Plano Real e da
população que o apoiou foi o de aprender com aquele sofrimento econômico. O
grande aprendizado é que inflação sempre haverá — está agora entre 3,5% a 4% —
mas não pode virar um monstro que nos consome. Por isso, o real continuará sob
olhar da população que aprendeu, da pior forma, como é difícil conviver com uma
moeda cujo valor derrete a cada hora do dia.
Depois do primeiro de julho de 1994, vieram
as crises. Houve a crise bancária em que três dos maiores bancos quebraram,
seus donos foram punidos e os correntistas protegidos das perdas monetárias. O
Proer foi uma obra cuidadosa de administrar a falência de bancos grandes para
que ela não se propagasse por todo o sistema, um plano a favor dos correntistas
e uma cirurgia de peito aberto no sistema bancário. Perigoso momento. A
desvalorização do câmbio em 1999 foi outro tempo de risco, mas acabou sendo contornado
com a introdução do sistema de metas de inflação.
Em 19 de maio de 1989, houve o lançamento da
nota de 100 cruzados novos com a efígie da poeta Cecília Meireles. No ano
seguinte, foi carimbada como 100 cruzeiros. Depois reimpressa com o nome de
cruzeiro. Então a história registra três tipos de Cecília, com duas unidades
monetárias e um carimbo no meio. Deixou de circular em 30 de setembro de 1992,
valendo um centavo e meio do valor que tinha ao ser lançada. Enfrentou nesses
40 meses da sua existência 630 mil por cento de inflação. Por que lembrar tudo isso?
A nossa poeta nos ensina em versos lindos que coloquei na epígrafe do meu
livro: “Porque há doçura e beleza na amargura atravessada, e eu quero a memória
acesa depois da angústia apagada.”
Lendo e aprendendo.
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