domingo, 21 de julho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Indicadores melhoram, mas violência segue alta

O Globo

Apesar de queda nas mortes violentas nos últimos anos, Brasil ainda é um dos países onde mais se mata

A principal notícia trazida no panorama da violência no Brasil em 2023, traçado pelo 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, é positiva: a queda de 3,4% na taxa de mortes violentas (de 23,6 para 22,8 por 100 mil habitantes). É verdade que ainda é pouco diante da angústia que aflige os cidadãos, mas o levantamento mostra que a queda no indicador é consistente desde 2017, quando os números bateram recorde, com 64.079 ocorrências (30,8 por 100 mil habitantes). As 46.328 mortes do ano passado representam redução de 28% no período. Houve queda na maior parte do país.

Mas os números são altos demais. Por hora, cinco brasileiros perdem a vida em homicídios, latrocínios, lesões corporais letais, feminicídios ou ações policiais. A taxa brasileira é 18,8% superior à média de América Latina e Caribe (19,2 por 100 mil) e quase o quádruplo da média mundial (5,8 por 100 mil). O Brasil figura como 18º país mais violento do mundo, segundo dados do escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC). Com apenas 3% da população mundial, concentra 10% dos homicídios.

Outro problema é que a violência se mostra desigual. Numa ponta, está São Paulo, com 7,8 mortes por 100 mil habitantes. Na outra, Amapá, com 69,9, quase nove vezes. A explicação para a disparidade costuma ser a intensidade da disputa entre facções criminosas. Nos estados onde ela atravessa uma fase mais aguda, mata-se mais. Como a atuação dessas organizações transcende as fronteiras estaduais e até nacionais — elas tornaram-se multinacionais do tráfico —, a resposta para a crise de segurança não pode ser compartimentada.

Sozinhos, os estados mais afetados pela violência não têm recursos materiais nem humanos para enfrentá-las. Isso é verdade especialmente nas regiões Norte e Nordeste, onde facções do Sudeste travam guerras com grupos criminosos locais pelo controle dos pontos de venda de drogas, elevando os índices de criminalidade. Por isso o governo federal precisa se envolver e coordenar o combate ao crime organizado. Mas, evidentemente, a maior parte dos crimes ainda deve ser responsabilidade dos estados.

A persistência da violência contra a mulher é um ponto nevrálgico. Apesar do endurecimento da legislação e das políticas públicas, é uma vergonha que todas as modalidades de crime tenham crescido. Outro dado que expõe o despreparo das polícias em relação às novas práticas criminosas é a explosão dos golpes,sobretudo no meio digital (a cada 16 segundos, alguém é vítima desse tipo de crime no Brasil). Entre 2018 e 2023, enquanto os roubos caíram 46%, os estelionatos saltaram 360%.

É preciso avançar muito se o país quiser reverter o atual cenário. As respostas à crise da segurança têm surtido pouco ou nenhum efeito. Operações policiais mal planejadas ou truculentas acabam matando mais — a letalidade policial quase triplicou numa década — sem resultados. Para vencer as organizações criminosas que se espalharam pelo país, o Brasil precisa urgentemente de uma política nacional baseada na cooperação entre as diversas forças de segurança, em inteligência, investigação, tecnologia, compartilhamento de informações e metas a cumprir. Enquanto o governo federal não assumir o protagonismo no enfrentamento do crime organizado, restará apenas lamentar cada nova estatística divulgada.

Cânticos racistas entoados pelos campeões argentinos são abomináveis

O Globo

Fifa faz bem em abrir investigação sobre vídeo preconceituoso contra Mbappé e jogadores franceses

Faz bem a Federação Internacional de Futebol (Fifa) em abrir uma investigação sobre os abomináveis cânticos racistas entoados por jogadores da seleção argentina durante as comemorações pelo título da Copa América no último domingo. Embora os argentinos tenham derrotado a Colômbia, o alvo das ofensas eram a seleção francesa e seus atletas, batidos na final da Copa do Mundo em 2022.

Um vídeo publicado pelo volante Enzo Fernández mostra os atletas dentro do ônibus da delegação argentina entoando cantos preconceituosos contra o craque Kylian Mbappé e seus familiares, repetindo o comportamento lamentável de torcedores da Argentina no Catar. Depois da repercussão negativa e das ameaças de punição, Fernández pediu desculpas e disse que “aquele vídeo, aquele momento e aquelas palavras” não refletem suas crenças e seu caráter. Refletem então o quê?

A Federação Francesa de Futebol prometeu apresentar denúncia à Justiça e à Fifa “por palavras ofensivas de cunho racista e discriminatório”. O Chelsea, clube inglês onde joga Fernández, reconheceu as desculpas, mas anunciou abertura de processo disciplinar contra ele. O vídeo provocou repúdio de colegas do Chelsea. O zagueiro francês Wesley Fofana postou nas redes: “Futebol 2024: racismo sem pudor”.

O que já era ruim piorou com a declaração da vice-presidente da Argentina, Victoria Villarruel, em apoio a Fernández: “Nenhum país colonialista nos intimidará por uma canção de torcida ou por dizermos verdades que não querem admitir. Parem de fingir indignação, hipócritas. Enzo, te banco! (...) Argentinos sempre de cabeça erguida!”.

A seleção argentina tem direito a festejar efusivamente a conquista de mais um título. Mas precisa agir com a responsabilidade de uma campeã que inspira atletas no mundo inteiro. As ofensas racistas gratuitas aos franceses — que nem disputavam esse torneio — dão um péssimo exemplo ao futebol, que nos últimos anos tem penado para expulsar o preconceito dos gramados.

Demorou, mas aos poucos clubes e federações no mundo inteiro se mostram mais empenhados em combater a chaga. Em maio, a Fifa anunciou protocolos próprios para denunciar e coibir o racismo. As regras, compartilhadas com suas 211 filiadas, incluem encerramento do jogo e derrota do time acusado. Em junho, em sentença inédita, a Justiça da Espanha condenou três torcedores do Valencia por insultos racistas contra o atacante brasileiro Vini Jr. Eles foram banidos dos estádios. Mas, infelizmente, o racismo persiste, como demonstra o lamentável episódio dos campeões argentinos.

Não pode haver lugar para preconceito ou ódio no futebol. Na quarta-feira, em partida entre Botafogo e Palmeiras pelo Campeonato Brasileiro, torcidas organizadas alvinegras penduraram num viaduto bonecos enforcados que representavam a presidente do Palmeiras, Leila Pereira, e o presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues. Rivalidade faz parte do esporte, mas, quando manifestações de ódio disputam protagonismo com os jogadores, é sinal de que algo vai muito mal.

Fora da lei, prefeituras não têm transparência

Folha de S. Paulo

Portais de municípios falham em exibir dados sobre contratos e execuções orçamentárias; capitais também têm opacidade

Grande parte das prefeituras brasileiras exibe em seus portais na internet verdadeiras peças de ficção a fim de burlar a legislação que as obriga a prestar contas com transparência aos cidadãos. Tanto no que se refere à administração das taxas e impostos que arrecadam quanto ao detalhamento orçamentário e execução de obras.

O engodo fere frontalmente a Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000, e lei complementar subsequente de 2009 que obrigam as prefeituras, assim como os estados e a União, a disponibilizar documentos e demais informações, em tempo real e de forma minuciosa, sobre a execução orçamentária.

Levantamento recente da ONG Transparência Brasil sobre o tema revelou que, mesmo entre as capitais, três em cada quatro apresentam níveis "regular" ou "ruim" de transparência em aspectos como execução de emendas parlamentares, andamento de obras públicas e valores pagos, entre outros.

Assim, cerca de 21,4 milhões de pessoas —o equivalente à população de Minas Gerais— vivem em capitais com índices inadequados de livre acesso a dados públicos.

A pesquisa mostrou que apenas Vitória, no Espírito Santo, alcançou classificação "ótimo" no ranking, com nota 98,6 (em escala de 0 a 100). Nos últimos anos, o estado capixaba notabilizou-se como exemplo para o país no que se refere ao ajuste das contas públicas e a boas práticas administrativas.

São Paulo, a maior cidade brasileira, obteve 78,9 pontos e ficou em terceiro lugar, antecedida por Recife (79) —ambas com a classificação "bom". As seis piores ("ruim") estão no Norte e Nordeste: Natal, Rio Branco, Boa Vista, Belém, Teresina e Macapá.

Outro levantamento abrangente sobre a qualidade dos portais das prefeituras realizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), entre 2021 e 2022, avaliou 2.376 municípios em oito estados.

Nada menos que 66% dessas cidades não possuíam ferramenta adequada. E muitas das que as tinham não proporcionavam o direcionamento para dados ou informações de contratos, tal como a legislação exige, apenas conduziam o usuário do site a notícias da imprensa sobre o município.

Apesar de realizar outros trabalhos para estimular as prefeituras a divulgar informações de forma sistemática, o TCU reconheceu que há muitos desafios a serem enfrentados, à época do extenso levantamento de 2021-2022.

Em ano de eleição municipal, é fundamental que o tema seja abordado com seriedade pelos órgãos de fiscalização como o TCU e os tribunais de contas estaduais e municipais, além das câmaras de vereadores, assim como nos debates entre os candidatos.

Revolta contra turistas

Folha de S. Paulo

Regulação é o meio mais eficiente para conter ônus da visitação em massa

Europeus estão se rebelando contra enxames de turistas em cidades como BarcelonaVenezaAtenas e Amsterdã. Nelas, moradores têm organizado protestos contra os visitantes estrangeiros. Na Espanha, pessoas de fora chegaram a ser recepcionadas por locais com "tiros" de pistolas de água.

Há algo de ludismo nesses movimentos. Eles obviamente não expulsarão os turistas e nem interessa aos países que isso ocorra. O velho continente é a região mais visitada do planeta. O setor de turismo representa 10% do PIB da União Europeia, chegando a incríveis 25% em países como a Croácia.

No entanto se o turismo gera enorme bônus, também produz alguns ônus, e a distribuição dos dois não é equânime. Quem se apropria da maior parte dos lucros são as companhias aéreas e marítimas e redes hoteleiras. Proprietários de imóveis para aluguel, donos de restaurantes e de outros comércios e serviços também faturam.

Já o cidadão comum, embora se beneficie indiretamente com o aumento da arrecadação de impostos, é quem enfrenta mais diretamente os efeitos negativos.

O mais importante deles é o fenômeno da gentrificação —uma inflação geograficamente localizada associada à chegada de pessoas com maior poder aquisitivo.

Em Barcelona, os aluguéis subiram 60% em dez anos. Há ainda impactos ecológicos (consumo de energia e água, geração de lixo) e até sobre o sossego público.

Porém, quaisquer que sejam os problemas, a resposta sensata não é atacar visitantes, mas regulação.

O desenho específico depende muito das condições locais, e há várias ferramentas que podem ser utilizadas. A mais óbvia são taxas ou licenças que limitem o número diário de turistas.

Regras mais rígidas para aluguéis de curta temporada, com maior tributação, podem ajudar a conter a especulação imobiliária. O risco neste caso é errar na dose e acabar criando um mercado negro, que só beneficiaria os ilegais.

A regulação existe justamente para lidar com situações de interesses conflitantes. Ela não elimina os desentendimentos, mas pode torná-los administráveis.

 A ameaça do companheiro Maduro

O Estado de S. Paulo

Como Pilatos, o presidente Lula lavou as mãos após o ditador venezuelano ameaçar seu próprio povo com uma ‘guerra civil’ e um ‘banho de sangue’ se ele não for reeleito no próximo dia 28

O ditador Nicolás Maduro fez uma gravíssima ameaça ao povo venezuelano durante um recente comício em Caracas. Se ele não for reeleito no próximo dia 28, disse, a Venezuela entrará em “guerra civil” e o país testemunhará um “banho de sangue”. Até para os padrões de truculência do chavismo, trata-se de uma ignóbil incitação à violência política que merece o mais veemente repúdio de todas as nações democráticas.

Mas, em que pese ser uma potência regional e, ademais, ter sido um dos principais mediadores do pacto de Barbados – onde, em outubro de 2023, foi selado um acordo entre Maduro e a oposição com vista à lisura do pleito, o que se revelou um engodo –, o Brasil optou por se omitir diante da advertência, por assim dizer, do “companheiro” do presidente Lula da Silva. O petista, como Pilatos, lavou as mãos diante da iminência de uma barbárie no país vizinho.

Na sexta-feira passada, Lula indagou por que raios haveria de “brigar com a Venezuela”. Afinal, “eles (os venezuelanos) que elejam o presidente que quiserem”. Chega a ser uma declaração ultrajante, pois trata como regular uma eleição que tem sido sabotada de todas as formas pelo regime chavista.

É conhecido o apreço que Lula tem por Maduro. Mas, em nome de um antiamericanismo juvenil, que seria apenas ridículo na idade dele, não fosse tão prejudicial aos interesses do Brasil, Lula tem pisoteado os princípios constitucionais que regem as relações exteriores do País. Como se isso não bastasse, o presidente da República vilipendia a honrada tradição diplomática brasileira, fundada na defesa da democracia e dos direitos humanos.

A despeito de suas afinidades pessoais e ideológicas, a explícita incitação às armas feita por Maduro às vésperas da eleição merecia de Lula uma inequívoca condenação. Seu silêncio é inaceitável como chefe de Estado e de governo da segunda maior democracia das Américas. Em Washington, para onde viajou a fim de tratar, entre outros assuntos, da eleição na Venezuela, o chanceler de facto, Celso Amorim, limitou-se a dizer que as ameaças de Maduro não são sérias. “Eu acredito que tenha sido um arroubo sem consequências”, disse Amorim à GloboNews.

De acordo com a apuração da Coluna do Estadão, no Ministério das Relações Exteriores a ordem é manter silêncio sob o fajuto argumento de que ao governo brasileiro não cabe se manifestar sobre o processo eleitoral de outros países. Em primeiro lugar, não se trata de exigir que o Itamaraty palpite sobre os rumos de uma eleição em país estrangeiro, mas sim que manifeste o repúdio do Brasil a um chamado à insubordinação ao resultado das urnas que, no limite, terá sérias consequências para o País – a começar por uma nova onda imigratória de venezuelanos violentados pelo regime chavista.

Em segundo lugar, o governo Lula da Silva não tem pudores ou laivos de republicanismo quando quer meter o bedelho em eleições que lhe interessam. Basta lembrar do papel do governo brasileiro durante a última eleição presidencial na vizinha Argentina, quando o Palácio do Planalto se lançou de corpo e alma na campanha do peronista Sergio Massa contra o libertário Javier Milei.

Pesquisas independentes indicam que o oposicionista Edmundo González Urrutia tem quase 60% das intenções de voto, muito à frente de Maduro, com cerca de 25%. Urrutia, como se sabe, foi o único candidato habilitado pelo regime a concorrer contra o ditador, após a Justiça Eleitoral, controlada por Maduro, cassar, uma a uma, todas as candidaturas que representavam uma ameaça real ao poder do caudilho, sobretudo a de María Corina Machado, muito popular na Venezuela.

Diante desse quadro sombrio para o ditador venezuelano, mas promissor para os amantes da democracia, não surpreende que Maduro tenha subido o tom de suas ameaças. Ao contrário do que pensa Celso Amorim, que nada mais é do que o totem do pensamento de Lula da Silva, o discurso de Maduro deve ser levado a sério. Se não pela capacidade já demonstrada pelo ditador de atacar seus próprios concidadãos, por mal esconder seu genuíno receio de perder uma eleição em que prevaleça a vontade popular, não a fraude.

Um governo nas sombras

O Estado de S. Paulo

Esconder a Declaração de Conflito de Interesses do ministro de Minas e Energia, impondo-lhe sigilo de até 100 anos, se não é pilhéria, é uma banalização ridícula do próprio o sigilo

O governo Lula da Silva alegou que a Declaração de Conflito de Interesses (DCI) do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, deve permanecer em sigilo, pasme o leitor, por até 100 anos. A DCI é um documento que os ministros de Estado têm de assinar quando ingressam na administração pública. A razão para a exigência é clara: conhecer de antemão os eventuais interesses privados dos tomadores de decisão na mais alta esfera do Poder Executivo é uma proteção da sociedade contra a influência perniciosa que esses interesses possam ter sobre o interesse público.

Fosse de apenas um dia, portanto, o sigilo sobre a DCI do ministro já seria absurdo, pois é em tudo incompatível com a própria natureza do documento e com aquilo que se pretende preservar. Sendo o sigilo de até um século, é puro deboche, uma demonstração de desdém do governo pela transparência e pela ética na administração pública. Em 2124, a memória e o legado do sr. Silveira só interessarão, por óbvio, à sua descendência, não à sociedade em geral.

Já em julho de 2024 recai sobre o ministro de Minas e Energia a suspeita sobre o grau de participação que ele teve na edição da medida provisória (MP) que beneficiou diretamente uma empresa do setor de energia, a Âmbar, cujos donos são os irmãos Joesley e Wesley Batista, do Grupo J&F. O Estadão revelou que altos executivos da Âmbar foram recebidos na pasta ao menos 17 vezes fora da agenda oficial do ministro e de seus subordinados. Mas, para Silveira, o fato de a MP ter agradado aos irmãos Batista poucos dias após essa sequência de visitas clandestinas é “mera coincidência”.

Ora, é dado à sociedade conhecer se, de fato, o acaso imperou, sendo os irmãos Batista dois sujeitos de muita sorte, ou se algo de antirrepublicano, para dizer o mínimo, maculou o processo de elaboração dessa MP. Foi o que o portal UOL tentou saber ao pedir ao governo a íntegra da DCI do ministro Alexandre Silveira, sem sucesso.

Primeiro, o pedido foi feito ao próprio Ministério de Minas e Energia e à Casa Civil da Presidência da República. Diante da negativa, o veículo jornalístico apresentou recurso à Controladoria-Geral da União (CGU). Outra parede foi erguida entre a informação e o interesse público. Por fim, veio a negativa definitiva, sem possibilidade de recurso, dada pela Comissão Mista de Reavaliação de Informações (CRMI). O órgão justificou a decisão alegando que o pedido se refere a “aspectos da vida privada e intimidade do titular e, portanto, não ‘publicizáveis’ (sic) pelo prazo máximo de 100 anos”.

Chega a ser constrangedor para este jornal ter de dizer que as informações pessoais de Alexandre Silveira, não fosse ele um ministro de Estado, são insignificantes para a posteridade. Dar-lhes a mesma proteção reservada aos segredos existenciais do Estado brasileiro, se não é pilhéria, é uma banalização ridícula do próprio sigilo. Essa parece ser a regra de um governo que prefere as sombras, a ponto de impor segredo até sobre as visitas recebidas pela primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja.

Toda DCI, necessariamente, contém informações pessoais dos declarantes, inclusive as de natureza patrimonial. Essas informações precisam estar registradas justamente para que, quando necessário, possa ser feita a contraposição entre os interesses privados das autoridades e os impactos das decisões que tomam na esfera pública. Como é próprio de países democráticos como o Brasil, esses dados só devem ser acessados – por cidadãos ou por veículos jornalísticos – sob fundada justificativa no interesse público, como é o caso envolvendo o ministro Silveira.

Por mais absurda que seja a imposição de sigilo de até 100 anos sobre informações pessoais de um ministro de Estado, não chega a surpreender. Afinal, o mesmo Lula que se elegeu prometendo acabar com a “farra do sigilo” promovida por seu antecessor não hesita em cobrir com o manto do mistério tudo o que possa representar uma ameaça à história que ele deseja contar aos brasileiros – não necessariamente a verdadeira.

Escândalo seletivo

O Estado de S. Paulo

Lula empilha declarações que atingem minorias, mas a esquerda, sempre tão zelosa, se cala

A defesa dos direitos das minorias, em tese, é universal. Todos, sem exceção, devem respeitar mulheres, negros, homossexuais, indígenas e outros tantos grupos, conforme preconizam as cartilhas de direitos humanos e os manuais de bom comportamento. Os ativistas da chamada esquerda “identitária”, aquela que superou a luta de classes e investe na afirmação política de grupos ultraminoritários, são particularmente dedicados a essa defesa, exercendo o papel de vigilantes do discurso alheio para flagrar o que, em sua opinião, fere a sensibilidade desses grupos. Ninguém escapa da fúria censória desses zelotes. Apenas um cidadão brasileiro está livre do “cancelamento”: é o presidente Lula da Silva.

Diga a barbaridade que disser – e como ele diz! –, Lula não será repreendido pelos esquerdistas. Parece ter salvo-conduto para dar declarações machistas, homofóbicas e capacitistas à vontade. A última do demiurgo petista foi num evento no Palácio do Planalto, em que ele, a propósito de uma pesquisa segundo a qual a agressão doméstica a mulheres aumenta em dias de jogos de futebol, declarou que, “se o cara (que agride mulher) é corintiano, tudo bem”. Mal se ouviram críticas de petistas a essa blague lamentável; as escassas reprimendas vieram na forma de sussurro obsequioso. Afinal, Lula é uma ideia.

As grosserias de Lula são tratadas por seus devotos como “gafes” ou “deslizes”. Desrespeitou a própria mulher, Janja, ao dizer que ela poderia atestar o vigor sexual que comprovaria sua disposição para seguir na política apesar da idade. Afirmou, ao anunciar medidas de socorro ao Rio Grande do Sul, que uma máquina de lavar roupa é “muito importante” para as mulheres. A uma beneficiária do Minha Casa Minha Vida que aos 27 anos tem cinco filhos, Lula perguntou: “Quando é que vai fechar a porteira?”. Numa cerimônia dedicada a pessoas com deficiência, o presidente disse que Janja o instruiu a escolher bem as palavras porque “essa gente tem a sensibilidade aguçada”. Noutra ocasião, declarou que “afrodescendente gosta de um batuque de um tambor”. E tudo isso apenas neste ano.

Nada disso é trivial ou desimportante. Lula é presidente da República e, como tal, representando o Estado brasileiro, deve servir de exemplo de compostura e respeito. Ainda estão frescas na memória as inúmeras declarações ultrajantes de Jair Bolsonaro, na condição de presidente, a respeito de diversas minorias, e isso mereceu justa condenação. Recorde-se ainda a enorme proporção que teve o movimento “Ele Não”, liderado por mulheres, para protestar contra a candidatura presidencial de Bolsonaro, em 2018, em razão de suas seguidas ofensas.

Não se trata, aqui, de avaliar o grau de desfaçatez de um e de outro, como se Lula e Bolsonaro estivessem a disputar um certame de cafajestagem. Ambos merecem a mesma admoestação por parte de todos os que prezam a civilidade, mas sobretudo daqueles que fazem da defesa das minorias a causa de suas vidas. Ou então a causa não vale nada.

 

 

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