sábado, 6 de julho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Vitória de Starmer aponta caminho a políticos de centro

O Globo

Em vez de ideologia ou guerras culturais, sua campanha voltou o foco para questões de ordem prática

A vitória avassaladora do Partido Trabalhista nas eleições britânicas traz lições não apenas para o Reino Unido, mas para Europa, Brasil e um mundo atônito com o avanço da direita de feições nacionalistas e populistas. O novo primeiro-ministro, Keir Starmer, um social-democrata clássico, comandará uma maioria com um controle do Parlamento comparável à avalanche Tony Blair em 1997.

A primeira lição é que, mesmo numa época em que vicejam figuras histriônicas como Donald Trump ou o britânico Boris Johnson, um político de perfil mais pragmático que carismático ainda tem chance de vencer — e de vencer bem. Nada mais distante do discurso histérico das redes sociais que a serenidade acanhada de Starmer.

Filho de uma enfermeira e um operário, Starmer se tornou um advogado de sucesso na luta por direitos humanos. Foi procurador-geral e só entrou na política aos 52 anos. É um trabalhista tradicional, preocupado com qualidade dos serviços públicos e proteções sociais. No Parlamento, destacou-se pela objetividade e habilidade na negociação e pelo desapego a ideologias na busca por resultados. Se há uma queixa em relação a Starmer, é justamente a falta de norte ideológico definido. Por isso agrada a diversos públicos.

A segunda lição está na campanha com mote vago — “mudança” —, mas foco concreto nas preocupações da população, e não em slogans ideológicos ou guerras culturais. O discurso de Starmer fala em recuperar o sistema de saúde, conter a inflação e outras questões práticas. Não em resgatar glórias perdidas do Império Britânico. Ao assumir o partido depois da gestão desastrosa de Jeremy Corbyn, ele promoveu uma limpeza das alas radicais. O movimento ao centro surtiu resultado, e os trabalhistas colheram vitórias em distritos que haviam perdido para os conservadores. A guinada do eleitorado mostra o êxito dessa fórmula para romper a polarização.

A terceira lição é que o populismo cobra seu preço. O objetivo implícito de Starmer é reparar as mazelas trazidas pelo Brexit, embora ele tenha evitado o tema na campanha. Depois de 14 anos no poder e de cinco primeiros-ministros, os conservadores deixaram esse legado inequívoco de retrocesso. Não havia como as promessas desvairadas de Boris Johnson — “comer o bolo e ao mesmo tempo guardá-lo” — virarem realidade. Políticas sem lastro nos fatos cedo ou tarde são desmascaradas. Se o Reino Unido foi o primeiro a embarcar na fantasia nacional-populista, desta vez as urnas transmitiram um recado nítido de arrependimento.

Por fim, uma última lição é que o nacional-populismo continua vivo. Ainda que o desempenho da ultradireita tenha ficado aquém do esperado (quatro cadeiras), dividiu o voto de direita e contribuiu para a derrota conservadora em vários distritos. Graças à divisão, mesmo com 24% dos votos, os conservadores levaram 19% das cadeiras. Beneficiados pelo sistema em que vence o mais votado no distrito, os trabalhistas, com 34% da votação— alta modesta ante 32% em 2019 — , conquistaram mais de 63% das cadeiras.

A comparação entre Starmer e Blair é inevitável, mas o novo primeiro-ministro herda um país mais complexo e desafiador. Tudo considerado, é preciso celebrar que, em desafio aos versos catastrofistas do irlandês William Butler Yeats frequentemente citados para descrever a política contemporânea, desta vez “o centro se segurou”.

Indiciamento de Bolsonaro no caso das joias deve ser visto sem paixões

O Globo

Polícia Federal fez trabalho técnico na investigação — e assim deve agora agir a PGR

O indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros 11 suspeitos no caso que investiga apropriação e negociação de joias dadas à Presidência da República por autoridades estrangeiras traz elementos robustos, que deverão levar a Procuradoria-Geral da República (PGR) a apresentar denúncia contra os acusados, como manda a lei. Depois caberá à Justiça analisar o caso e julgá-lo.

Declarado inelegível por oito anos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Bolsonaro é alvo também de investigações sobre a trama golpista para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sobre fraudes em cadernetas de vacinação. No caso das joias, a PF acusa Bolsonaro dos crimes de peculato (apropriação de bens do Estado por servidor público), lavagem de dinheiro e associação criminosa. As penas podem chegar a 25 anos de prisão.

De acordo com as investigações, ele se apoderou de presentes — entre os quais relógios, abotoaduras, rosário, esculturas e anéis — doados por autoridades da Arábia Saudita e do Bahrein em viagens oficiais. Alguns desses presentes, diz a polícia, foram vendidos e, quando o escândalo veio à tona, recomprados e devolvidos. A trama descrita pela PF envolve o ex-ajudante de ordens Mauro Cid e seu pai, Mauro Lourena Cid; o ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque; o advogado Frederick Wassef; o ex-secretário da Receita Julio Cesar Vieira Gomes e o ex-chefe da Secretaria de Comunicação Fabio Wajngarten.

A defesa dos acusados alega que o indiciamento a apenas três meses de eleições municipais tem objetivos políticos. Argumenta ainda que havia uma indefinição jurídica sobre o caráter pessoal dos presentes. E diz que, quando a dúvida foi sanada (uma decisão do Tribunal de Contas da União estabeleceu que os presentes deveriam ficar com o Estado), os objetos foram devolvidos. Diz também que, quando Lula enfrentou problemas semelhantes, o caso foi tratado na esfera administrativa, e não na criminal. É verdade que o TCU adotou entendimentos diferentes sobre o mesmo assunto, uma vez que Lula foi autorizado a ficar com um relógio de luxo recebido em 2005.

Evidentemente, tudo isso deverá ser confrontado com as investigações. É importante dar pleno direito de defesa a Bolsonaro e aos demais acusados para esclarecer a fundo o rocambolesco vaivém das joias nos bastidores da República. As acusações são graves, por sugerirem que, no Palácio do Planalto, funcionava uma espécie de camelódromo para negociar presentes que deveriam ser incorporados ao patrimônio do Estado. Não é esse o comportamento que se espera da autoridade máxima do país e de seus assessores. Se as acusações forem comprovadas, os responsáveis deverão responder à Justiça por seus atos. Como qualquer cidadão brasileiro.

Esquerda britânica se reciclou e ganhou

Folha de S. Paulo

Trabalhistas moderam esquerdismo, exploram o mau desempenho da economia, advogam pela estabilidade e voltam ao poder

O plebiscito que em 2016 decretou o divórcio entre o Reino Unido e a União Europeia inaugurou a era do novo populismo de direita nas democracias ocidentais. A vitória dos trabalhistas no Reino Unido, na eleição desta quinta-feira (4), mostra que a mesma competição política regular que deu à luz o radicalismo oferece antídotos a ele.

O Partido Conservador, agora despejado de Downing Street após um longo período de 14 anos no governo, foi diretamente atravessado e transformado pelo brexit.

As lideranças arejadas, que sob o premiê David Cameron patrocinaram o plebiscito na equívoca expectativa de derrotar os separatistas, foram varridas da legenda após o resultado desfavorável.

Sucederam-lhes figuras controversas, como o espalhafatoso Boris Johnson (2019-2022) e a brevíssima Liz Truss, que cogitou praticar experimentalismos nas finanças e caiu em 50 dias. Restou ao insípido Rishi Sunak (2022-2024) conduzir a massa falida até a eleição.

Todas essas figuras foram incapazes de lidar com o terremoto econômico provocado pela separação da União Europeia. E foi o esquálido desempenho da economia que enfraqueceu o Partido Conservador. A produção está praticamente estagnada há quatro anos, o que fez o país desviar-se da trajetória das outras nações desenvolvidas.

O mesmo jogo da política que fez explodir os custos da aventura do brexit sobre os ombros dos conservadores estimulou a oposição a se reorganizar para voltar ao poder.

Após a derrota de 2019 para Johnson, o Partido Trabalhista afastou-se do radicalismo esquerdista para onde havia rumado. Caminhou para o centro e reciclou suas ideias e quadros, permitindo a ascensão do pragmático Keir Starmer, eleito premiê, e da economista formada nos cânones do Banco da Inglaterra Rachel Reeves, a primeira mulher a chefiar o ministério das Finanças na história do Reino Unido.

A campanha oposicionista explorou prioritariamente a estagnação econômica legada por 14 anos de gestões adversárias. Prometeu a retomada do crescimento com respeito ao equilíbrio orçamentário, sem pesar a mão nos impostos e atenta aos gargalos microeconômicos, como os do comércio exterior, que atravancam os negócios.

"Estabilidade é mudança" tornou-se o lema de Reeves na caminhada para reconquistar para o seu partido a confiança da maioria dos cidadãos.

A eleição britânica escancara lições que contrastam com o que ocorre na França, onde o radicalismo ganha adesão popular, e no Brasil, onde o partido trabalhista não recicla suas tenebrosas ideias sobre a economia. Também mostra que a democracia sempre tem soluções para as mazelas da política.

Saúde, não polícia

Folha de S. Paulo

Medida que premia PMs por internações de usuários expõe prioridade equivocada

Quem precisa de polícia é traficante, não o usuário. Contrariando a sensatez, a política dos governos municipal e estadual para a cracolândia no centro de São Paulo privilegia em demasia a ação dos agentes da lei, em detrimento dos profissionais da saúde, para promover internações como solução preferencial do complexo problema.

Recente medida equivocada concede folgas a policiais militares que acumularem pontos convencendo dependentes químicos a se internarem. Tal registro rende 15 pontos, mais que a detenção de um procurado pela Justiça (10); 100 pontos garantem um dia de ausência.

No mesmo dia, dois PMs conduziram três usuários ao Hub de Cuidados em Crack e outras Drogas, desempenho que soa implausível. É razoável supor que alguma coerção possa ter sido empregada, ao arrepio do caráter humanitário inerente a intervenções de saúde.

Outro desvio está no encaminhamento de pessoas em surto por policiais sem comprovação de que sejam usuárias de drogas, condição para que sejam atendidas ali.

Ademais, há denúncias de internações involuntárias e violências praticadas por funcionários de segurança do próprio hub, o que sugere infração a direitos humanos.

A ineficácia da política fica evidenciada nos dados do governo estadual. Ao mesmo tempo em que aumenta a quantidade de internações, diminui o tempo de permanência nas instituições —no Hospital Lacan, ela caiu para menos de 40 dias, o pior nível registrado.

Não se justifica premiar agentes por obter internações. Para especialistas em segurança pública, o método peca tanto por recompensar o policial por fazer aquilo que é sua obrigação quanto por retirar de serviço, com a folga, aqueles cujo desempenho se destaca.

Ao que parece, as ações dos governos de Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do prefeito Ricardo Nunes (MDB) pendem mais no sentido da repressão do que para a promoção da saúde.

Usuários precisam sobretudo de tratamento digno. Enquanto a dependência for encarada como questão policial, e não social e sanitária, a cracolândia terá perenidade garantida na cidade.

Atropelo antidemocrático

O Estado de S. Paulo

Na reta final da tramitação da reforma tributária, deputados deixam decisões polêmicas para o plenário, de modo a diluir a responsabilidade e o desgaste pelos erros que forem cometidos

O grupo de trabalho responsável pela regulamentação da reforma tributária sobre o consumo na Câmara apresentou seu parecer nesta semana. Segundo seus integrantes, o texto só tratou de temas sobre os quais havia consenso entre as lideranças. Os assuntos mais polêmicos, e que devem gerar muitos embates entre os deputados, serão decididos em plenário.

Logo, não seria exagero afirmar que o parecer não é definitivo e que sofrerá muitas modificações até que seja aprovado. Essa indefinição não seria um problema se os debates que ocorrerão a partir de agora fossem realizados sem pressa, pautados pela transparência que um tema tão relevante para a economia quanto a reforma tributária requer. Não é o caso.

Relator oculto da reforma tributária, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já deixou claro que o cronograma que ele estabeleceu para a tramitação da proposta será cumprido à risca. Isso significa que os deputados terão pouco mais de dez dias para concluir as discussões.

No segundo semestre, afinal, os deputados só terão olhos para as eleições municipais. E Lira, conhecido pelo estilo rolo compressor que adota nas votações de matérias importantes, comprometeu-se a aprovar a reforma antes do início do recesso parlamentar, em meados do mês.

Seria cômodo culpar Lira por mais um atropelo antidemocrático, mas ele não é o único a compactuar com essa estratégia deletéria. A verdade é que o governo também tem todo o interesse em acelerar as discussões. Prova disso é o pedido de urgência constitucional solicitado pelo Palácio do Planalto para o projeto. O recurso dispensa a tramitação da proposta nas comissões temáticas e permite que o texto seja apreciado diretamente no plenário.

Para completar, a urgência também vale para o Senado. Isso significa que os senadores terão somente 45 dias para analisar o texto quando ele chegar da Câmara. Passado esse prazo, a reforma passa a trancar a pauta de votações no Senado. Assim, na reta final da tramitação da proposta, o que deve prevalecer não é a coerência da reforma nem a técnica legislativa, mas a força política das bancadas partidárias e setoriais.

Já há algumas bolas cantadas. Lira havia sinalizado que o parecer manteria as proteínas fora da lista de itens isentos de impostos na cesta básica. Assim foi feito. De fato, zerar os impostos sobre as proteínas na lista não faria qualquer sentido – nem econômico nem social.

Se as carnes fossem incluídas, a alíquota padrão do futuro Imposto sobre Valor Agregado (IVA), estimada em 26,5%, teria de ser elevada a 27,1%, o que daria ao Brasil a incômoda posição de líder mundial do ranking dos maiores IVAs do mundo. E, se a ideia é garantir uma alimentação mais saudável e completa para os mais pobres, há formas mais adequadas de fazê-lo, como a devolução do imposto aos que integram a base dos programas sociais do governo.

A questão é que zerar o imposto sobre as proteínas é uma das poucas demandas a unir gregos e troianos na Câmara – no caso, os petistas e a onipotente bancada ruralista. Ninguém menos que o presidente Lula da Silva quer a inclusão de frango e cortes bovinos mais baratos entre os itens isentos, à revelia da proposta defendida por sua própria equipe econômica.

Da mesma forma, a batalha do Imposto Seletivo será decidida em plenário. Todos os setores têm levantado argumentos para escapar do chamado imposto do pecado, mas o governo trabalha com os mais esdrúxulos.

Se a ideia é desestimular itens nocivos à saúde, não há lógica em isentar caminhões movidos a diesel somente porque o transporte de cargas no País é majoritariamente rodoviário. Da mesma forma, sobretaxar carros elétricos em razão da fonte de energia utilizada na fabricação de baterias na China parece mera desculpa para não retirar a competitividade dos veículos com motores a combustão.

Deixar a decisão final sobre qualquer tema ao plenário significa distribuir entre toda a Câmara a responsabilidade – e o desgaste – pelos erros que forem cometidos. É uma pena que os debates sobre a regulamentação da reforma tributária, cruciais para o futuro do País, estejam se dando dessa maneira açodada e opaca.

Primeira infância, prioridade absoluta

O Estado de S. Paulo

Lula da Silva assina decreto que cria Política Nacional Integrada para a Primeira Infância. Um comitê terá 120 dias para apresentar a proposta que pode, enfim, cuidar do ‘País do futuro’

O Brasil deu mais um passo na promoção, efetivação e proteção dos direitos de crianças de 0 a 6 anos. Decreto presidencial publicado no dia 27 de junho abriu caminho para a Política Nacional Integrada para a Primeira Infância e instituiu o seu Comitê Intersetorial. Trata-se de importante avanço, haja vista que é nesse período que estímulos adequados impactam indicadores de educação, saúde, trabalho, violência e desigualdade no longo prazo.

Não é de hoje que as crianças são apontadas como centrais na vida nacional. Há mais de três décadas a Constituição, em seu artigo 227, estabelece que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança”, e “com absoluta prioridade”, uma série de direitos, tais como “à vida, à saúde, à alimentação, à educação”. Fronteiras civilizatórias, as leis evoluíram para ampliar essas garantias, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, e do Marco Legal da Primeira Infância, em 2016.

Os dados da realidade, porém, descortinam os efeitos trágicos de omissões e as perdas imensas com a negligência. O Todos Pela Educação e a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal apresentaram no âmbito do Grupo de Trabalho Primeira Infância, do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, do governo Lula da Silva, um diagnóstico desolador que explicita a emergência da iniciativa do presidente.

O relatório Recomendações para a Construção da Política Nacional Integrada para a Primeira Infância traz números alarmantes de diversas fontes. Levantamento do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome para traçar o perfil da primeira infância no Cadastro Único (CadÚnico), por exemplo, mostrou que, de 18,1 milhões de crianças de 0 a 6 anos registradas no País – de acordo com o Censo 2022 –, 10 milhões (55,4%) viviam em famílias de baixa renda. Não para por aí.

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), em 2023, 45% das crianças brasileiras de 0 a 5 anos estavam em domicílios com renda mensal per capita de meio salário mínimo, enquanto, entre a população geral, o porcentual é de 27%. A pobreza, portanto, assola mais as crianças do que os adultos. E isso já foi evidenciado por estudo do Banco Mundial que apontou que o sistema fiscal brasileiro reduz a pobreza dos mais velhos e agrava a dos mais novos.

Indicadores nefastos colocam ainda essa parcela dos brasileiros entre os mais vulneráveis a saneamento precário, insegurança alimentar e educação deficitária. Não à toa o relatório afirma que “a educação infantil de qualidade, que engloba a creche (0 a 3 anos) e a pré-escola (4 e 5 anos), é uma das estratégias mais eficazes no combate às desigualdades que se iniciam desde o nascimento”.

O documento lembra que, na primeira infância, chega a ocorrer 1 milhão de sinapses por segundo, que não mais se repetirão com tamanha frequência com o passar dos anos. O relatório acentua que “o que ocorre ao longo desse período influenciará toda uma trajetória de aprendizados” – está aí uma saída para nossos índices educacionais tão sofríveis. Logo, uma boa educação no início da vida acarreta ganhos vindouros.

Mas, como as crianças não votam, o Brasil não cumpriu a meta do Plano Nacional de Educação (PNE), com duração de dez anos e que vence em 2024, de colocar 50% delas em creches. Hoje, apenas cerca de 40% das crianças de 0 a 3 anos têm uma vaga garantida. O novo PNE, mesmo assim, elevou a meta para 60%. Oxalá se concretize.

Contra esse quadro trágico, o comitê instituído pelo decreto terá 120 dias para apresentar ao País um plano com propostas para essa fase crucial para o pleno desenvolvimento humano. São representantes de 15 ministérios e 4 da sociedade civil que estarão empenhados em traçar a Política Nacional Integrada para a Primeira Infância, que demandará comprometimento e dinheiro. É chegada a hora de a criança ser, de fato, a prioridade absoluta. Se fizer a lição de casa, o Brasil pode, enfim, ser o “país do futuro”, começando já, no presente.

O Reino Unido do avesso

O Estado de S. Paulo

Trabalhistas diagnosticam corretamente seus desafios e os do país. Agora precisam vencê-los

Sem dúvida, foi uma virada histórica. Após 14 anos no poder, o Partido Conservador despencou de 373 cadeiras para 121 das 650 do Parlamento britânico, o pior resultado de sua história, enquanto o Partido Trabalhista foi catapultado de 197, seu pior desempenho em um século, para uma “supermaioria” de 411, uma das maiores de todos os tempos. Mas o que exatamente foi “histórico” é incerto: o repúdio aos incumbentes ou o entusiasmo com os ascendentes? Para complicar, o comparecimento às urnas também foi histórico: um dos menores da era moderna.

Foram cinco premiês conservadores e ainda mais doutrinas. Do big government ao “miniorçamento”; da convocação de um plebiscito por um relutante David Cameron ao “consumar o Brexit” de Boris Johnson à aproximação à União Europeia de Rishi Sunak; e um pouco de tudo entre os extremos. A carga tributária e a dívida pública são as maiores em décadas, mas os serviços públicos, o crescimento e a renda se deterioraram. As festinhas clandestinas de Johnson nos lockdowns destruíram a credibilidade moral do partido, e o governo libertário relâmpago de Liz Truss destruiu sua credibilidade econômica. Hoje, dois em três britânicos acham que o Brexit foi má ideia e todos estão fartos do psicodrama conservador.

O novo premiê, Keir Starmer, merece o crédito que os eleitores lhe deram. Ele expurgou o partido dos radicais socialistas e antissemitas prestigiados pelo ex-líder populista Jeremy Corbin e o moveu ao centro. Ele se esquivou das “guerras culturais”, apoiou a Ucrânia e Israel, adotou uma retórica amigável ao mercado, comprometeu-se a não aumentar impostos e focou nos reais problemas do país: um Estado ineficiente e uma produtividade estagnada.

Mas com toda a disciplina e pragmatismo impostos por Starmer, esse ainda é o partido que ofereceu duas vezes Corbin como primeiro-ministro. A vitória avassaladora nas urnas pode excitar seus mais primitivos instintos estatistas. Isso pode significar mais regulações; mais gastos nos serviços públicos, sem as necessárias reformas; mais quimeras de “carbono zero”; mais encargos trabalhistas; mais intervencionismo e subsídios; e, no fim, mais impostos. Com as restrições fiscais herdadas dos conservadores, a margem de manobra será bem menor do que no último governo trabalhista, e a lua de mel com um eleitorado volátil pode azedar antes do que se imagina.

Por ora, a pressão está toda sobre os conservadores. É a sua hora de se reinventar ou colapsar. Os votos abocanhados pela esquerda, pelo centro e pela direita populista e nativista são um choque de realidade que pede terapia intensiva.

Mas, com todas as incertezas e ansiedades somadas, as eleições ainda foram disputadas por um candidato de centro-direita e um de centro-esquerda. Compare-se esse cenário com o dos EUA ou da Europa. Se os conservadores fizerem sua autocrítica e os trabalhistas forem coerentes com suas promessas de campanha, o Reino Unido, a primeira nação europeia a abraçar o novo populismo, pode dar uma lição aos moderados e pragmáticos do mundo inteiro.

Um vizinho bem trapalhão

Correio Braziliense

É inimaginável nas relações bilaterais entre países vizinhos, como Brasil e Argentina, um presidente visitar o outro país sem se encontrar com o dono da casa e, ainda por cima, agredi-lo verbalmente

Presidentes histriônicos e dispostos a resolver os problemas com declarações bombásticas e atos de repercussão não são privilégio de nenhum país latino-americano, nós também já passamos por isso. Mas o que está sendo feito pelo presidente da Argentina, Javier Milei, em relação ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva passa de todos os limites. Nosso vizinho chega hoje a Santa Catarina para participar de um encontro de lideranças e partidos de extrema-direita, amanhã, no Balneário Camboriú, a convite do ex-presidente Jair Bolsonaro, sem sequer passar por Brasília.

É inimaginável nas relações bilaterais entre países vizinhos, como Brasil e Argentina, um presidente visitar o outro país sem se encontrar com o dono da casa e, ainda por cima, agredi-lo verbalmente. Há regras do jogo que precisam ser respeitadas na convivência entre os vizinhos, até mesmo nos condomínios. Após a derrota na guerra das Malvinas, contra o Reino Unido, os argentinos se aproximaram muito dos brasileiros. O confronto levou ao estreitamento das relações estratégicas entre os dois países, inclusive no plano da cooperação nuclear.

Não tem sentido jogar fora tudo o que foi construído em termos de amizade e cooperação. Entretanto, Milei ataca Lula grosseiramente desde antes de ser eleito. Tudo bem, havia uma campanha eleitoral e o petista apoiava o candidato oficial, o peronista Sergio Massa. Mas a eleição foi ganha por Milei. Mesmo ofendido por ele, o presidente Lula prontamente reconheceu sua vitória, e o Itamaraty tratou de manter as relações diplomáticas com a Argentina nos patamares consolidados historicamente.

Além do atrito pessoal, acontece que Milei opera um giro radical na política externa da Argentina, muito preocupante porque pode prejudicar, e muito, os países vizinhos. É o caso, por exemplo, de não comparecer à reunião de cúpula de chefes de Estado do Mercosul, na próxima segunda-feira, em Assunção, no Paraguai, e a sua anunciada intenção de deixar o bloco e abandonar as negociações do acordo com a União Europeia.

No fim de semana, num encontro de políticos de extrema-direita em Balneário Camboriú (SC), Milei deve se encontrar com o ex-presidente Jair Bolsonaro. É sua primeira visita ao país e passará longe do que seria o protocolo de uma visita presidencial, na qual, certamente, seria recebido com toda pompa no Palácio do Planalto, apesar de todas as divergências com Lula.

Há um profundo abismo ideológico entre eles, é certo. O presidente argentino é um político de ultradireita que discorda de Lula em quase tudo: política externa, política econômica, políticas sociais etc. Nada disso importa para as relações formais e os tratados assinados entre os dois países, a não ser que sejam rompidos. Xingar o presidente brasileiro e prestigiar um evento de oposição em território nacional, ainda que em Santa Catarina, um terreno politicamente minado para Lula, é uma desfeita inédita na história das relações Brasil-Argentina.

Milei tem alguns motivos de queixa, por causa do posicionamento Lula durante a campanha eleitoral, mas sua resposta está sendo muito desproporcional, não apenas porque fere o decoro das relações diplomáticas, mas também pelo desrespeito com os brasileiros.

O presidente argentino vem tendo um comportamento que foge aos padrões da política internacional. Seu problema não é apenas com o presidente Lula. Agride também outros chefes de Estado que se alinham à esquerda, sempre com grosserias. É o caso de Pedro Sanches, primeiro-ministro da Espanha, cuja mulher Milei chamou de corrupta durante encontro de políticos de direita naquele país.

 

 

 

 

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