terça-feira, 23 de julho de 2024

Pedro Cafardo - A economia do bem-estar e a perigosa certeza de estar certo

Valor Econômico

Para pesquisadores da longevidade, desvinculação da previdência do reajuste do salário mínimo jogaria no superendividamento uma parcela ainda maior da população de idosos

Está no ar a discussão sobre a desvinculação do salário mínimo dos benefícios da Previdência Social. Se os defensores da desvinculação ganharem o debate e convencerem os deputados e senadores, os benefícios passarão a ser corrigidos apenas pela inflação e não mais pela inflação acrescida do índice de crescimento da economia (do PIB).

Na prática, portanto, os beneficiários, idosos na esmagadora maioria, seriam isolados dos ganhos reais da economia. Teriam seus benefícios estagnados, na melhor das hipóteses, porque o reajuste pela inflação nem sempre acompanha os gastos dos idosos - os medicamentos e os planos de saúde, por exemplo, normalmente aumentam muito mais que a inflação oficial.

Fica para outro momento, porém, a discussão dessa questão, que envolve o problema do sacrossanto equilíbrio das contas públicas. Apenas vale abrir um parêntese para citar os pesquisadores Jorge Felix e Guita Grin Debert, estudiosos da economia da longevidade. Eles sugeriram em artigo recente que a desvinculação jogaria no abismo do superendividamento uma parcela ainda maior da população de idosos. Cerca de 40% deles já são inadimplentes atualmente, ou seja, aproximadamente 14 milhões de pessoas não conseguem viver com a aposentadoria e tomam empréstimos impagáveis, principalmente os tais consignados.

Mas o objetivo aqui é citar reflexões sobre o papel dos economistas no debate atual, algo que se faz pelo mundo, mas ainda está fora de moda no Brasil. Em março passado, Angus Deaton, economista Prêmio Nobel de 2015, publicou artigo no F&D Finance and Development, do FMI, com o título “Repensando minha economia”. Fez um mea culpa para reforçar arrependimentos já expostos por ele no ano passado no livro “Economics in America”, que teve ampla repercussão internacional.

Deaton diz que em contraste com economistas desde Adam Smith e Karl Marx, passando por Keynes, Hayek e Friedman, “paramos de pensar na ética e no que constitui o bem-estar humano. Somos tecnocratas que pensam apenas na eficiência”. A economia do bem-estar, segundo ele, desapareceu há muito dos currículos, e não se aprende mais nada sobre o que os filósofos dizem a respeito da desigualdade. Muitas vezes, o bem-estar é equiparado apenas ao dinheiro e ao consumo.

Deaton critica o seu próprio comportamento durante décadas como economista liberal. Refere-se ao pensamento dominante entre seus pares, porque sempre houve, obviamente, muitos “não convencionais”. Ele diz que a eficiência é importante, mas está sendo valorizada acima de outros fins, a ponto de muitos subscreverem a ideia de que os economistas devem se concentrar na eficiência e deixar a equidade para os “outros”, para políticos ou administradores. Mas como os “outros” em geral não se preocupam com isso, diz Deaton, as recomendações dos economistas tornam-se licenças para pilhagem.

Deaton acha que falta humildade aos economistas, que muitas vezes “têm certeza de que estão certos”, embora existam pressupostos não válidos em todas as circunstâncias. Ele reconhece que durante muito tempo considerou os sindicatos como um incômodo que interferia na eficiência econômica e saudou o seu lento desaparecimento. Hoje, porém, nos EUA, os sindicatos têm pouca voz e as grandes empresas, demasiado poder sobre condições de trabalho e salários. E os lobistas são mais influentes do que os sindicatos nas decisões de Washington. O declínio dos sindicatos, enfim, contribuiu para a queda dos salários e o aumento da desigualdade. Não deveriam agora ficar fora das mesas que já discutem inteligência artificial.

O conselho final de Deaton aos colegas é que eles poderiam se beneficiar de um maior envolvimento com as ideias de filósofos, como fez Adam Smith. Lamenta que recebam hoje pouca formação sobre os objetivos da economia, sobre o significado da economia do bem-estar, que há muito desapareceu dos currículos, e sobre o que os filósofos dizem a respeito da igualdade.

Ao ler sobre esses arrependimentos de Deaton, um grande economista brasileiro disse: “Antes tarde do que nunca”.

Mas voltemos à questão da desvinculação dos benefícios da Previdência para lembrar de um passado recente. Quem viveu o período da hiperinflação no Brasil, nos anos 1980 e 1990, certamente se lembra como os benefícios da Previdência ficaram defasados porque não eram devidamente corrigidos.

Naquela época, os idosos tinham que ir ao banco para receber a aposentadoria. Muitos, em São Paulo, deixavam acumular três ou quatro meses para ir ao banco, porque o benefício mal cobria o valor da passagem de ônibus de ida e volta. O nome disso, usando a expressão de Deaton, é pilhagem.

 

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