sábado, 10 de agosto de 2024

André Barrocal - Luz nas sombras

CartaCapital

A investida do STF contra o ‘orçamento secreto’ é o prenuncio de um vendaval político e favorece Lula no congresso

Na eleição, o presidente Lula chamou mais de uma vez de “excrescência” o “orçamento secreto”, aquela invenção do Congresso na era Bolsonaro para controlar bilhões de reais sem ter de prestar muita conta a ninguém. Chegou a comentar em um debate em Brasília que o tal “mensalão” causou “um tremendo carnaval” e o “orçamento secreto”, não. “O presidente não tem poder sobre o orçamento, é a Câmara dos Deputados que dirige o orçamento”, disse. Eleito, Lula viu o Supremo Tribunal Federal decretar a morte dos sigilos às vésperas de tomar posse, com o voto decisivo de Ricardo Lewandowski, hoje ministro da Justiça. Voto dado um dia após Lula receber em um hotel, para uma conversa pouco amigável, o presidente da Câmara, deputados Arthur Lira, comandante em chefe do “orçamento secreto” juntamente com o senador Davi Alcolumbre.

Lewandowski entrou no ministério em fevereiro deste ano, no lugar de Flávio Dino, indicado pelo presidente para uma vaga no Supremo. Dino vestiu a toga em 22 de fevereiro. Três dias depois, um ministro de Lula dizia anonimamente a um jornalista de Brasília: “A gente cansou do Lira. Vamos lidar com ele a partir do Supremo”. Ao longo do primeiro ano de governo, Lula colecionou atritos com o deputado do PP de Alagoas, poderoso como nenhum outro mandachuva da Câmara graças ao “orçamento secreto”. Este havia ressuscitado da pena de morte aplicada pelo Supremo quando, dois dias depois, o Congresso votou o orçamento de 2023. Deputados e senadores deram um jeito de criar novas formas opacas de controlar verbas orçamentárias. Foi para acabar de vez com qualquer tipo de segredo ainda existente que Dino decidiu baixar ­duas liminares duríssimas, ambas com potencial para criar uma crise política e desvendar esquemas de corrupção.

Os deputados e senadores têm 49 bilhões de reais em emendas para torrar ao longo de 2024

Os despachos do magistrado promovem um cerco às emendas parlamentares, uma fortuna de 49 bilhões de reais em 2024: jogam luz sobre elas, permitem a Lula não pagar parte e respalda um órgão do governo, a Controladoria-Geral da União, para mapear e auditar bilhões nos próximos meses. De quebra, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, entrou em campo e pediu ao Supremo, na terça-feira 6, o fim de um tipo especial de emenda, aquela conhecida como “pix”, surgida em 2019. Caberá a Dino, na condição de relator, cuidar dessa ação também.

As liminares revoltaram parlamentares, para quem houve jogo combinado de Lula e Dino. Nos bastidores, é possível ouvir, de fato, reações satisfeitas dentro do governo com as decisões do ministro. O que os congressistas não sabem é como dar o troco, algo tramado a portas fechadas. Na Câmara, líderes partidários, sobretudo aqueles do tal “Centrão”, pediram uma reunião urgente com Lira. Foi o que um desses líderes contou à reportagem. A reunião deve ocorrer na segunda-feira 10. Os deputados estão de recesso informal, por causa da eleição municipal, e trabalharão apenas alguns dias até novembro. Uma das semanas de batente é a de 10 de agosto. Nem todos os líderes acham que vale a pena brigar com o STF. Em especial, por acreditarem que há uma bomba-relógio armada pelo gigantismo financeiro das emendas. É tanta grana para elas, e com pouca transparência, que a existência de escândalos é tida como certa. “Virou um cabaré”, diz um líder crítico das emendas.

O clima no Legislativo deve esquentar em novembro. É quando a eleição municipal terá terminado, e então deputados e senadores voltarão a Brasília em busca de liberação de dinheiro do governo para “emendas”. Serão dias também de debates e de votação da próxima lei orçamentária. E de avanço nas negociações para escolher os futuros presidentes da Câmara e do Senado. Haverá eleição para os dois cargos em fevereiro de 2025. Lira quer fazer o sucessor e Alcolumbre, voltar ao comando do Senado. Planos dificultados pelo cerco judicial ao “orçamento secreto”. “Sem dúvida, (a decisão de Dino) vai influenciar nas eleições (de fevereiro)”, afirma ­Neuriberg Dias, analista político do Diap. “Para o governo, traz um alento, pois equilibra a disputa pela sucessão na Câmara, diminui um pouco a força do atual presidente. Mas se verá também um movimento de união de partidos para manter a independência e a influência no orçamento.”

Em dez anos, o Congresso apropriou-se de fatias crescentes de verbas federais. As emendas, obras inseridas por deputados e senadores na Lei Orçamentária, saíram de 9 bilhões em 2015 para 49 bilhões em 2024, conforme dados do “Siga Brasil – Painel Emendas”, site mantido pelo Senado. Cada parlamentar controla neste ano, em média, 82 milhões de reais, quantia superior ao caixa de muitas prefeituras. A explosão de emendas teve um capítulo especial na era do “orçamento secreto”, iniciada na Lei Orçamentária de 2020. Naquele ano, as “emendas RP 9”, que são incluídas na lei pelo congressista encarregado de dar a cara final ao orçamento, atingiu 20 bilhões. Em 2021, 16 bilhões. Em 2022, 8 bilhões. Aí veio o julgamento do Supremo que matou, pero no mucho, os segredos.

As liminares de Dino revoltaram parlamentares, para quem houve jogo combinado com Lula

Quando Lula assumiu, havia 15 bilhões de “emendas RP 9” pendentes de pagamento em razão da palavra empenhada no governo Bolsonaro. Foram pagos 10 bilhões, faltam 5 bilhões, no relato de quem acompanha o assunto no Palácio do Planalto. Pelo despacho de Dino, o governo não precisa mais liberar verba para essas emendas nem para aquelas inseridas no orçamento por comissões temáticas da Câmara e do Senado, as “RP 8”. Estas foram usadas por deputados e senadores para driblar a morte do “orçamento secreto”. Tinham meros 300 milhões no orçamento de 2022. No de 2023, 6 bilhões. No de 2024, 15 bilhões. A proibição judicial de pagar atingiu ainda as “emendas pix”. Nos três casos, o governo só terá de pagar caso haja transparência prévia sobre cada emenda (congressista proponente e destinatário claramente identificados) e seja possível rastrear os recursos.

Dino também proibiu os congressistas de mandarem verbas para obras em estados diferentes dos quais foram eleitos. Um deputado da Bahia diz: o grupo político que manda na Câmara desde a era Bolsonaro sempre foi contra a transparência nas “emendas RP 9”, pois seria possível ver que parlamentar de um estado propôs obra em outro. A explicação dessa geografia seria comercial. Um congressista tem tantas emendas que “vende” algumas. Basta, por exemplo, uma empresa interessada numa certa obra prometer-lhe uma caixinha. A proibição judicial no capítulo “geografia” vale já para o orçamento de 2025, que o governo enviará ao Congresso até o fim de agosto.

Além de fechar torneiras, Dino também colocou a luz do sol sobre emendas, a fim de tentar dar a elas transparência e rastreabilidade totais. O time do ministro Vinícius Carvalho, da Controladoria-Geral da União, terá papel destacado na empreitada. Carvalho é da cota pessoal de Lula, não teve indicação partidária.

 *Fonte: Portal “Siga Brasil – Painel Emendas”

A CGU tem até setembro para preparar um relatório sobre as dez cidades que mais recebem repasses de emendas e uma análise sobre os riscos por trás das “emendas RP 8”. Ao lado do Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Congresso, mapeará até 21 de agosto tudo o que há e não há de informação a respeito de emendas e, também, de quais políticas públicas podem vir a ser prejudicadas pela torneira fechada. Por fim, terá 180 dias para colocar no Portal da Transparência informações completas sobre padrinhos e destinatários de “emendas RP 8 e RP 9”.

Caberá à CGU também auditar repasses feitos de 2020 a 2024 através de “emendas pix” e como a verba foi gasta na ponta. No ano passado, o TCU havia travado a Controladoria no exame do “gasto na ponta”, ao decidir que era uma atribuição dos Tribunais de Contas estaduais. Apesar disso, a CGU examinou a situação em três estados (Minas, Pará e Paraná) e observou que é difícil controlar a verba, por falta de transparência e de procedimentos rastreáveis. Por decisão de Dino, o órgão auditará, inclusive, ONGs beneficiadas por “emendas pix” e, também, por “emendas RP 8 e RP 9”. Não é raro que esse tipo de organização seja utilizada para canalizar dinheiro público ao bolso de quem separou os recursos no orçamento público. Por exemplo, em julho, a Polícia Federal concluiu que o atual prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, do MDB, tirou proveito de um esquema com ONGs quando era vereador, no caso conhecido como “máfia das creches”.

Na CGU, o plano para cumprir as ordens judiciais é fazer auditorias por amostragem. Considera-se que o grande desafio é descobrir se existem ou não informações sobre padrinhos e destinatários de todas as “emendas RP 8 e RP 9” desde 2020. E que, especificamente sobre “emendas pix”, será difícil rastrear verbas passadas, pois estas foram depositadas numa conta única da prefeitura ou do estado e, dessa forma, ficaram misturadas com recursos de outras origens.

“A decisão do ministro Dino confirma e parte de um importante pressuposto: o que o Supremo declarou inconstitucional não foram especificamente as emendas do relator, ou RP 9, mas sim uma forma de se destinarem recursos via emendas parlamentares sem transparência e controle. Por isso, qualquer outro mecanismo que tenha as mesmas deficiências da RP 9, como as emendas de comissão, ou RP 8, no modelo atual, também é inconstitucional”, diz Guilherme France, da Transparência Internacional Brasil. “A decisão veio, ainda, em um momento importante. As emendas parlamentares jorraram para os caixas de prefeituras e impactarão as disputas eleitorais de 2024, favorecendo os grupos políticos tradicionais que já estão no poder e/ou têm padrinhos fortes em Brasília. Isso será mais um obstáculo ao necessário processo de democratização e aumento da diversidade nos espaços de poder.”

Dino havia ressuscitado, em abril, o processo contra o “orçamento secreto”, graças a uma denúncia da Transparência Internacional Brasil, da Transparência Brasil e da Associação Contas Abertas. Na época, dera 15 dias para o Congresso e o governo se pronunciarem. Segundo a denúncia, tinha sido desobedecida aquela decisão do Supremo, de 2022, de abolir o “orçamento secreto”. A ação julgada naquele ano tinha como relatora Rosa Weber. Com a aposentadoria da juíza, em 2023, o processo fora herdado por Dino, seu substituto. A denúncia apontava três situações no orçamento de 2023 que evidenciariam a desobediência: falta de informações públicas sobre dinheiro de emenda destinado a dez ministérios, ampliação do cofre desses ministérios via emendas (estas só poderiam ter sido usadas para corrigir falhas) e utilização de “emendas pix” com espírito “secreto”.

As “emendas pix” foram objeto de uma ação judicial específica em 25 de julho, de autoria da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Um dos advogados que assinam a ação é o ex-juiz Márlon Reis. A Abraji pede que o Supremo declare inconstitucionais as “emendas pix”, por ser pouco transparente e rastreável o caminho da grana entre Brasília e o estado ou município a que se destina. Os recursos são repassados sem que haja um convênio específico, direto na conta única do estado ou da prefeitura. Em suma, há menos burocracia e, também, menos controle sobre a verba dessas emendas. Não é fácil saber quem é o padrinho de uma “emenda pix” nem onde, de fato, foi gasta. Problemas idênticos aos do “orçamento secreto”.

Não é fácil saber quem é o padrinho de uma “emenda pix”, nem onde, de fato, foi gasta

Na terça-feira 6, o procurador-geral jogou o peso do órgão contra as “emendas pix”. Gonet havia sido provocado a examinar o assunto por Dino em 18 de junho. A provocação havia sido feita no mesmo dia em que o juiz resolvera juntar numa mesma mesa, em 1º de agosto, todas as partes envolvidas na denúncia de desobediência ao fim do “orçamento secreto”. As respostas que pedira, em abril, ao governo e ao Congresso não foram consideradas satisfatórias por Dino. No despacho que marcou a audiência de conciliação, ele escreveu que, “até o presente momento, não houve a comprovação cabal” de cumprimento da ordem judicial de que o orçamento seja plenamente transparente. “Todas as práticas viabilizadoras do ‘orçamento secreto’ devem ser definitivamente afastadas”, anotou o magistrado, “não importa a embalagem ou o rótulo.” Foi após a audiência de 1º de agosto que o magistrado baixou as liminares. Uma delas, naquela ação da Abraji.

Para um senador, as decisões de Dino, caso sejam cumpridas e levem à morte final do “orçamento secreto”, têm três impactos potenciais. Todos contrários ao Congresso, que estaria numa saia justa para reagir diante da imagem negativa das “emendas”. Devolver ao governo o controle sobre parte do orçamento. Dar a Lula condições de (palavras do senador) “sair desse processo permanente de chantagem do Congresso” e formar uma base de apoio mais estável e confiável. E alimentar uma crise parlamentar, pois ficarão expostas (de novo palavras do senador) as “hipocrisias da extrema-direita”, que bate no Estado, mas se esbalda em verbas públicas, e a vantagem que certos congressistas ditos governistas têm em relação a colegas. Combustíveis capazes de levar a outro escândalo dos “anões do orçamento”, semelhante àquele dos anos 1990.

O mesmo senador que falou à reportagem acredita que o cerco aos segredos orçamentários terá “impacto direto” na sucessão de Rodrigo Pacheco, do PSD de Minas, como presidente do Senado, em fevereiro. Até agora, o favorito é Alcolumbre, do União Brasil. Este chefiou a Casa em 2019 e 2020. No ano seguinte, levou Pacheco ao posto. Um colega costuma chamar Alcolumbre de “verdadeiro pai do orçamento secreto”. Foi com ele que, em 2019, o Congresso botou 20 bilhões de ­reais em “emendas RP 9” no orçamento de 2020 e criou as “emendas pix”. É uma das razões para a enorme força política de um parlamentar oriundo de um dos menores estados do Brasil, o Amapá. Há quem diga que o poder dele repousa hoje naquelas emendas, as de comissão (RP 8), usadas para contornar a morte do “orçamento secreto”. Poder que Alcolumbre partilha com Pacheco e dois emedebistas: Eduardo Braga, do Amazonas, líder da própria bancada, e Marcelo Castro, do Piauí, relator do orçamento de 2023.

Quem está disposta a enfrentar Alcolumbre na eleição de fevereiro é Eliziane Gama, conterrânea de Dino. Ela licenciou-se do mandato em julho para ser secretária estadual no Maranhão e promete voltar a Brasília após a campanha municipal. É do PSD, partido de outro nome citado como possível postulante à cadeira de Pacheco: Otto Alencar, da Bahia. O líder do governo no Senado, ­Jaques ­Wagner, do PT, nunca se compromete com a candidatura de Alcolumbre, e o conterrâneo Otto é uma das razões. A outra é a avaliação de que o estilo de ­Alcolumbre é parecido demais com o de Lira.

O nome do coração do ­deputado alagoano para ser o próximo presidente da Câmara é Elmar Nascimento, baiano líder do União Brasil. Numa conversa a portas fechadas, Nascimento disse certa vez que gosta de Lula e identifica-se com ele. O problema do petista seria não ter um celular para o qual um parlamentar possa falar com ele diretamente sem o filtro de algum assessor ou da primeira-dama, Janja. Para um ministro, Nascimento seria melhor para o governo do que Lira, por não ter a mesma influência sobre os colegas, mesmo que faça parte do grupo que manda há tempos na Câmara. Um líder governista não tem dúvida também: o cerco judicial às emendas “diminui o poder de barganha” de Lira para levar Nascimento à vitória.

Um nome mais palatável para o governo é o do capixaba Marcos Pereira, presidente do Republicanos. Apesar de pastor e evangélico (os crentes em geral desaprovam o governo Lula e preferem Bolsonaro), Pereira é visto por um colaborador de Lula como alguém de trato mais fácil e não dado a autoritarismos. No início do ano, Pereira viajou no avião de Lula, a convite do presidente, para um evento em São Paulo. Em maio, comentou em um seminário em Nova York ser a favor de aprovar uma lei contra fake news nas redes sociais, para horror do bolsonarismo. O deputado tem buscado construir pontes com o governo. Um emissário dele, o deputado Silas Câmara, do Republicanos do Acre, foi em 11 de julho ao chefe da Casa Civil de Lula, Rui Costa.

Os próximos meses prometem fortes emoções em Brasília… 

Publicado na edição n° 1323 de CartaCapital, em 14 de agosto de 2024.

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