segunda-feira, 26 de agosto de 2024

André Gustavo Stumpf - A crise do sistema

Correio Braziliense

As principais cabeças políticas brasileiras precisam pensar seriamente na adoção do parlamentarismo. É um sistema mais simples, de maior representatividade e vacinado contra crises

Por inércia e inapetência, o governo Bolsonaro deu início, por acaso e por consequência de sua omissão nos quatro anos de mandato, a um sistema de governo muito próximo ao parlamentarismo. O presidente entregou o Orçamento ao centrão, abdicou de determinar gastos e obras, abandonou o projeto de construir um novo país para tentar apenas a própria continuidade no Palácio do Planalto à custa do golpe de Estado comandado por alguns militares de alto coturno. Quando os gatos saem, outros bichos tomam conta da casa.

Os parlamentares descobriram que poderiam encaminhar verbas à vontade para suas bases sem qualquer tipo de controle. A famosa emenda Pix dispensava o seu autor de indicar o beneficiário, o nome do responsável e revelar as fontes de financiamento do Orçamento da República. Um festival de saques a descoberto. Sem qualquer responsabilidade e, pior, sem o mínimo respeito por qualquer tipo de planejamento ou atenção às urgências do município. Algumas cidades do Brasil receberam uma profusão de chafarizes para ornamentar seu centro. Sem noção da necessidade ou de outras carências. 

O governo Lula não tem maioria no Congresso. Isso é um problema conhecido. Ele precisa fazer manobras de todos os tipos para aprovar seus projetos. E não consegue evitar que a maioria aprove o que bem entender. É um governo disfuncional, culpa não do Lula, mas do sistema de governo adotado no Brasil. A última versão do texto da Constituinte de 1988 instituía o parlamentarismo no Brasil e reduzia o mandato do presidente da República para quatro anos. O presidente Sarney não gostou. Seus líderes conseguiram fixar o mandato em cinco anos (que originou a eleição solteira de 1989) e criar um presidencialismo esquisito, em que o decreto-lei foi substituído pela medida provisória com prazo definido para ser aprovada pelo Congresso. Se não for, ela perde o efeito.

Se o Brasil fosse parlamentarista, muitas crises políticas teriam sido evitadas. Talvez, nem tivessem existido. O mandato do presidente da República — invenção norte-americana — é uma fonte permanente de crises. O governo Bolsonaro, que nada realizou em favor do país, sofreu uma série de pedidos de impeachment, todos, mais de 100, engavetados pelos presidentes da Câmara dos Deputados. 

O Brasil tem tradição de impeachments recentes. Fernando Collor e Dilma Rousseff foram apeados do poder depois de executar erros fundamentais na condução do país. Os dois cometeram o pecado de não cultivar boas relações com o Congresso. Sem o aval do Congresso, no Brasil, nenhum presidente sobrevive. Jânio Quadros havia descoberto essa verdade em 1961. Renunciou achando que retornaria à Presidência com poderes ditatoriais. Terminou no exílio.

O chamado presidencialismo de coalizão, segundo especialistas, existia no Brasil quando o presidente e suas lideranças no Congresso conseguiam se entender, embora sempre tenha havido muita confusão em torno da Comissão de Orçamento. Ninguém deve esquecer do escândalo dos anões, que alegavam ganhar vários prêmios de loteria para justificar a quantidade de dinheiro que transitava em suas contas. O governo de coalizão acabou quando os parlamentares tiveram condições para fazer emendas no valor superior a R$ 50 bilhões. Nesse nível, o orçamento da República vira uma peça de ficção.

É preciso conciliar. Foi o que fez o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), junto com todos seus colegas, dois ministros do governo Lula e os presidentes da Câmara e do Senado. Houve uma trégua. Um cessar-fogo. As emendas Pix, entre outras medidas, serão mantidas, mas o autor precisa ser conhecido, o destino informado e depois examinada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). E deverão estar dentro das possibilidades financeiras. Pacificação temporária. Mas o avanço dos parlamentares sobre o orçamento da União foi mantido. O grupo, integrado por representantes dos Três Poderes, criou regras para permitir que o atual quadro se perpetue.

As principais cabeças políticas brasileiras precisam pensar seriamente na adoção do parlamentarismo. O principal argumento dos deputados para utilizar verbas do Orçamento é o de que eles conhecem o país. No parlamentarismo, eles seriam eleitos dentro de um distrito, por escolha direta. Ficaria mais fácil a relação entre eleito e eleitor. As maiorias constroem o governo. E, se o governo perder a maioria, ele cai. Em hipótese extrema, o presidente convoca eleições para montar um novo governo. Os funcionários públicos passam a ser estáveis e responsáveis por administrar a máquina do Estado. É um sistema mais simples, de maior representatividade e vacinado contra crises. Até na Itália, que consegue ficar meses sem primeiro-ministro, ele funciona.

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