Folha de S. Paulo
Economia feminista desvela as raízes
econômicas da violência doméstica
A Lei Maria da Penha completou 18 anos nesta
semana. Infelizmente, o avanço na conscientização sobre a violência
doméstica coexiste com a baixa
efetividade das políticas de proteção às vítimas.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública
de 2024, publicado pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança
Pública), mostra que ser mulher no Brasil é atividade de alto risco de
letalidade. Entre 2022 e 2023, os casos de violência doméstica registrados
cresceram 10%, de 236 mil para 259 mil. Esse dado é certamente subestimado.
Para entender isso, precisamos analisar a unidade familiar, idealizada por neoliberais, como Milton Friedman, como um espaço de harmonia e segurança a ser protegido da intervenção do Estado. Essa perigosa fantasia esconde as relações de poder desiguais que permeiam as dinâmicas familiares.
A economia feminista abre a caixa-preta da
sagrada família e desvela as raízes econômicas da violência doméstica,
apontando para a construção de políticas públicas mais eficazes e para a
redução das assimetrias de poder dentro do lar. Se o ambiente doméstico é visto
como espaço de produção e reprodução, as desigualdades de gênero ficam
explícitas, a começar pelo trabalho não remunerado, predominantemente realizado
por mulheres.
A economista Nancy Folbre, por exemplo,
destaca a importância do trabalho não remunerado para a economia e a sociedade.
Ao cuidar da casa, dos filhos e dos idosos, as mulheres garantem a reprodução
da força de trabalho e a manutenção da vida social. Esse trabalho não
remunerado subsidia o valor da força de trabalho e viabiliza a economia de
mercado. Liberais ignoram esse imposto regressivo e sem representação que
incide sobre as famílias.
O saber econômico convencional invisibilizou,
por séculos, esse trabalho essencial ao capitalismo. Como mostra Melinda
Cooper, em seu livro "Family Values", o neoliberalismo foi além:
romantizou a subordinação feminina e naturalizou a desigualdade de gênero.
O trabalho doméstico desvalorizado torna as
mulheres economicamente dependentes dos homens, sujeitando-as a vários tipos
de violência que
escapam ao radar masculino. Entre elas está a violência patrimonial, isto é, a
apropriação ou a destruição de bens, a limitação do direito de ir e vir e o
controle do dinheiro. Ao controlar os recursos financeiros da família, o
agressor restringe a autonomia da mulher e a impede de romper com a relação
abusiva. Essa é uma causa importante de subnotificação de ocorrências.
A economia feminista oferece subsídios
importantes para a construção de políticas públicas mais eficazes no combate à
violência doméstica. Valorizar o trabalho doméstico exige garantir direitos
trabalhistas e previdenciários às mulheres. O acesso à educação e ao mercado de
trabalho por meio de maciços investimentos na área de cuidados (como creches)
promove a autonomia financeira das mulheres e protege as crianças.
Estudo do Made-USP criou um Indicador de Infraestrutura Social de Cuidado (IISC) para
avaliar a desigualdade regional na oferta de serviço de cuidados. As mulheres
são maioria nesse setor, mas são mais informalizadas e recebem menos do que os
homens. O eixo centro-sul tem uma melhor provisão de cuidado em relação às
regiões Norte e Nordeste. Em outros recortes, o meio rural enfrenta aguda
escassez de serviços remunerados de cuidado e o setor privado domina a oferta
desses serviços, enquanto a maioria da população brasileira depende do cuidado
público.
A Lei Maria da Penha reforça o imperativo de
denunciar os agressores e proteger as vítimas. Ela indica, sobretudo, a
centralidade das políticas públicas que rompem com os ciclos de violência e
promovem a igualdade de gênero em todas as esferas da vida, em particular,
dentro do lar. Sem isso, a sagrada família continuará ocultando perniciosos
pecados.
Muito bom.
ResponderExcluirExcelente! Ótima combinação de análise sociológica e econômica. Parabéns ao autor, e ao blog por divulgar seu trabalho.
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