Folha de S. Paulo
A medida do retrocesso brasileiro precisa ser
calculada e demonstrada
Do casamento da democracia com o
constitucionalismo nasceu o regime com maior legitimidade moral na história da
política. Um casamento conturbado. Enquanto uma pede poder para o povo, o outro
pede limite. Enquanto uma carrega a vontade agonística de governar, o outro
pede moderação. Uma extravasa o desejo coletivo, o outro institucionaliza
controle.
Democracias constitucionais minimamente merecedoras do nome ainda gozam de credencial de legitimidade padrão ouro. Eleições livres, competição entre adversários, possibilitar ao derrotado ser vitorioso amanhã e vice-versa; desconcentrar o poder político e econômico, proteger direitos, garantir que a fúria das maiorias não suprima a liberdade das minorias, que os mais fortes não esmaguem os mais fracos: há tensões por onde se olhe.
As constituições brasileiras tentaram se
matricular nessa tradição do constitucionalismo democrático. Uma história
bastante farsesca: constituições sem democracia, sem sufrágio universal, sem
eleições isentas de fraude, sem Judiciário independente, sem proteção de
liberdades, textos redigidos nas salinhas de estar da elite branca.
Constituições sem constitucionalismo.
A de 1988 tentou entregar algo diferente.
Produzida por Congresso constituinte
pós-ditadura, politicamente mais diverso, permeado por inédita participação de
múltiplos grupos sociais (e outros corporativistas). Mesmo vigiada por militares, que
aceitaram a transição para a democracia desde que permanecessem intocados fora
dela, saiu da Constituinte um texto inovador nas promessas, criativo na
engenharia institucional. Um pacto de equilíbrio, ideologicamente eclético, não
revolucionário.
Pela primeira vez um compromisso claro de
reduzir pobreza e desigualdades, de proteção da função social da propriedade,
do ambiente e das futuras gerações, de povos originários, de ampliação de
políticas públicas, de direitos universais e sistemas públicos de saúde e educação, de
livre concorrência.
Era um compromisso de redução gradual
do PIBB (Produto
Interno da Brutalidade Brasileira) e de nosso entulho
autoritário. Passados 35 anos, apesar dos avanços em programas sociais, o PIBB
aumentou. O entulho autoritário virou estoque renovado. A dívida histórica
parou na nota promissória.
Mas generalização retórica não basta. A
medida do retrocesso precisa ser calculada. Empiricamente e normativamente. Não
há parâmetro melhor para essa contabilidade do que voltar ao texto dessa
momentânea pretensão constitucionalista, quando foi possível olhar o passado e
imaginar o futuro a partir da utopia, da esperança e do ideal de progresso, não
da distopia, do pessimismo e da expectativa inevitável do retrocesso.
A marcha do retrocesso entrou numa nova fase.
Descobriram estar fácil esvaziar ou destruir a Constituição sem mudar seu
texto, sem decretar formalmente seu fim. O plano de liquidação de ativos
constitucionais se expressa, por um lado, numa tenebrosa agenda legislativa.
Por outro, por arranjos informais entre os Poderes que rejeitam
institucionalidade.
No varejo cotidiano de nossas indignações,
perdemos de vista a magnitude do projeto: turbinar o colapso climático,
multiplicar o fogo e o desmatamento, privatizar acesso a praias, anistiar
golpistas, militarizar escolas, milicianizar polícias, legalizar milícias, armar
milicianos, prender meninas estupradas e aliviar pena do estuprador de meninas,
violentar indígenas, afagar
milicos, desinvestir em direitos, transformar a família constitucional em
família colonial e patriarcal. Transformar jurisdição em negociação de direitos
indisponíveis, legislação em alocação clientelista de orçamentos secretos,
sufocar capacidade governamental do Executivo.
Caracterizar o momento como um embate entre
esquerda e direita perde de vista um confronto mais profundo entre Constituição
e forças pré-constitucionais e extremistas. Ainda nos resta, pelo menos, o
argumento constitucional. Que não pode permanecer monopólio de juristas. Para
que consigamos, pelo menos, descrever o que se passa e contar essa história.
Assim poderia começar o prefácio a um manifesto constitucionalista.
ESPETACULAR! PERFEITO! MAGNÍFICO! O penúltimo parágrafo é uma excepcional descrição da nossa atual realidade.
ResponderExcluirRealmente excelente!
ResponderExcluirO colunista é dos melhores,senão o melhor.
ResponderExcluir