Folha de S. Paulo
Lula cava trincheira de proteção ao redor de
Maduro pelo mesmo motivo que mantém solidariedade à guerra imperial na Ucrânia
Menos de 48 horas depois da descarada fraude
eleitoral, Lula declarou que "não tem nada de anormal" na Venezuela.
Verdade: a corrupção dos processos eleitorais é o normal no regime
"cívico-militar-policial" de Maduro. Dessa vez, contudo, o ditador
companheiro ultrapassou os limites aceitáveis por quase todos –mas não, claro,
por Lula. Também não há "nada de anormal" nas sentenças do presidente
brasileiro, que dissolveu cedo demais a farsa diplomática montada por Celso
Amorim.
"Mostrem as atas!" —exigiu a oposição, secundada pelos governos democráticos com um mínimo de vergonha na cara. O governo do Brasil somou-se ao pedido, embora aos murmúrios, em posição contrastante à do PT, que correu para o abraço com o ditador. Nos amplos círculos do jornalismo oficialista, disseminou-se a tese benevolente de que a posição brasileira equilibrava prudência e firmeza. Lula desfez o equívoco, antecipando um roteiro previsível.
"Como vai resolver essa briga? Apresenta
a ata. Se a ata tiver dúvida, a oposição entra com recurso e vai esperar na
Justiça andar o processo. E aí vai ter uma decisão, que a gente tem que
acatar." Atas eleitorais são documentos cuja autenticidade é facilmente
verificável por peritos. Mas Lula prefere transferir a prerrogativa aos juízes
amestrados da ditadura, os mesmos que encarceram opositores ou vetam suas
candidaturas. Qualquer ata falsificada serve —eis a mensagem que, sem corar,
Lula enviou a Maduro.
São atos, além de palavras. A abstenção
brasileira impediu a aprovação de uma resolução da OEA que solicitava não só a
apresentação das célebres atas mas, sobretudo, a análise delas por observadores
independentes. O veto tácito, mais um serviço prestado pelo governo Lula ao
regime venezuelano, oferece amparo ao plano de Maduro de confiar o veredito
eleitoral a seus juízes de estimação.
A valsa do apoio ao tirano desmoraliza a
denúncia lulista do golpismo de Bolsonaro, desencanta os eleitores atraídos
pela frente democrática no Brasil e divide até mesmo as bancadas do PT e do
PSOL. Por que Lula não segue o exemplo do chileno Boric e denuncia o golpe
contra a soberania popular na Venezuela?
Um tanto envergonhados, os áulicos lulistas
na imprensa recorrem à proverbial "casca de banana" que,
rotineiramente, provocaria "escorregões" de seu ídolo distraído.
Contudo, bananas na calçada não pertencem ao
domínio da análise política. Lula move-se por um cálculo de prioridades: em
nome de uma razão estratégica, aceita o pesado desgaste doméstico provocado
pelo abraço em Maduro.
No passado, a aliança do lulismo com o regime
chavista derivava da parceria ideológica com a ditadura castrista cubana. O
cenário mudou desde a inauguração de Lula 3, em meio à tormenta que desloca o
edifício da ordem mundial. A política externa do atual governo, conduzida mais
por Celso Amorim que por Mauro Vieira, emana do dogma
"anti-imperialista" e busca alinhar o Brasil ao "Sul
Global", rótulo quimérico aplicado ao eixo China/Rússia.
Lula cava uma trincheira de proteção ao redor
de Maduro pelo mesmo motivo que mantém solidariedade à guerra imperial russa na
Ucrânia. Ao contrário de Cuba, que é economicamente irrelevante, a Venezuela
possui as maiores reservas de petróleo do mundo. A ditadura venezuelana
estreitou laços com a China, sua maior parceira comercial, e com a Rússia,
principal fornecedora de material militar, transformando-se no mais importante
ponto de apoio geopolítico das duas potências na América
Latina. É nessa moldura que Lula organiza suas prioridades.
A revista The Economist depositou suas esperanças no passo inicial da valsa lulista, sugerindo que, depois de pedir a exibição das atas, o Brasil articule-se com o México e a Colômbia para endurecer o jogo diplomático com Maduro. Não acontecerá: para Lula, democracia é um bem supérfluo.
Ainda bem que eu não voto em ninguém.
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