sábado, 10 de agosto de 2024

Eduardo Affonso - Ao vencedor, a reverência

O Globo

Reduzem Beatriz Souza a ‘preta gorda’. Ela é também uma militar heterossexual, mas esse recorte não interessa

‘A arte de perder não é nenhum mistério’, escreveu Elizabeth Bishop no mais famoso dos seus poemas. Mas é uma arte que exige grandeza. Muita. Que o digam Simone Biles e Jordan Chiles, capazes de transformar a perda da medalha de ouro para Rebeca Andrade num dos momentos mais bonitos destes Jogos Olímpicos de Paris.

O que houve ali não foi a oficialização de uma vitória e duas derrotas, como em tantos pódios — destinados, por banais, ao esquecimento. Aconteceu o reconhecimento da excelência, da competição saudável e (lá vêm os inevitáveis clichês...) a celebração do espírito olímpico, o regozijo pela superação dos próprios limites.

Simone Biles, ginasta de primeira grandeza, teve um bloqueio mental e abandonou os Jogos de Tóquio, em 2021. Havia perdido a autoconfiança e se afastou das competições, para se reequilibrar. Rebeca Andrade passou por oito cirurgias, nos pés e nos joelhos. Jordan Chiles teve de lidar com a condenação da mãe, por fraude eletrônica (o início do cumprimento da pena foi adiado para que ela pudesse acompanhar a filha nos Jogos de Tóquio).

Lá estavam as três — deixando para trás as dores, as lesões, os traumas, os “demônios” — cada uma vitoriosa à sua maneira. As duas americanas (ou estadunidenses, como prefere parte da imprensa) reverenciando a grande campeã brasileira (ou republicafederativense, se quisessem ter um mínimo de coerência).

O esporte costuma ser pródigo em cenas assim, cheias de simbolismo — como a de Tamires Morena carregando nos braços a angolana Albertina Kassoma, lesionada, e provando que o oponente não é necessariamente um inimigo. No judô, a etiqueta prevê que a luta comece e termine com um cumprimento, em sinal de respeito e humildade. Naquele aperto de mãos ao fim das partidas há a celebração do fair play. O vencedor reconhece os méritos do adversário; o perdedor, a supremacia de quem o venceu.

Fora das quadras, pistas, campos e piscinas, o padrão é outro. Não falta quem queira usurpar os louros alheios. Como aqueles que, no afã de puxar a brasa (e a medalha) para a sua pauta, reduzem a também campeã Beatriz Souza a “preta gorda”. (Nota mental: Tentar entender em que momento o que já foi tido como depreciativo virou exaltação). A medalhista de ouro é também uma militar heterossexual — mas esse recorte não interessa.

No dia de glória para Rebeca Andrade, o Ministério das Comunicações houve por bem retirá-la do pódio e ali entronizar um programa de governo. Não era, como quis parte da claque oposicionista, só um desrespeito à mulher preta brasileira, mas, principalmente, a uma mulher bem específica — e ao bom senso coletivo. Foi um ato de estupidez, de amadorismo — e, ao contrário dos memes contra as taxas, a indelicadeza usou verba pública. Perderam a noção do ridículo.

Já fomos melhores na arte de perder. Um sorridente Fernando Henrique Cardoso, orgulhoso de ter dado mais um passo na consolidação da democracia, passou a faixa presidencial a Lula — por mais que preferisse vê-la no peito de José Serra. É essa a grandeza que faltou a Jair Bolsonaro e a Donald Trump, e falta agora aos da estirpe de Nicolás Maduro.

A perdedores assim, que se recusam a respeitar as regras do jogo e a reverenciar o vencedor, restam as sábias palavras do ministro Luís Roberto Barroso:

— Perdeu, mané. Não amola.

 

Um comentário:

  1. Não sei por que O Globo desperdiça um espaço razoável com este colunista. Não basta escrever bem, tem que ter o que dizer! E este incompetente já mostrou repetidamente que NADA tem a dizer!

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