sábado, 3 de agosto de 2024

Eduardo Affonso - Pedra, papel, tesoura

O Globo

Numa discussão entre uma mulher branca e um homem preto, quem tem razão? A cor da pele prevalece sobre o gênero?

Existe a lógica matemática (se A > B e B > C, logo A > C) e existe a da brincadeira infantil em que a pedra amassa a tesoura, que corta o papel, que embrulha a pedra. Nesta, cada elemento é forte e fraco, maior e menor, vencedor e derrotado, a depender da circunstância. Quem inventou esse jogo devia estar querendo ensinar às crianças que tudo é relativo e — mais que isso — que o mundo dos adultos não é para principiantes.

Com a distorção (intencional) do conceito de “lugar de fala”, critérios como etnia (equivocadamente chamada de “raça”), gênero (outrora conhecido como “sexo”) e orientação sexual passaram a ter mais relevância que os argumentos. Mas ninguém ainda definiu a hierarquia, o peso de cada um desses fatores.

Numa discussão entre uma mulher branca e um homem preto, quem tem razão? A cor da pele prevalece sobre o gênero, assim como a tesoura sobre o papel? E entre uma mulher cis e um homem trans? A identidade de gênero será agora a pedra que esmaga a tesoura? Que categoria tem mais créditos acumulados por opressões ancestrais e prioridade no resgate dessa dívida (impagável, diga-se de passagem)? Por quem os sinos do Estado brasileiro deveriam dobrar: por seu cidadão (porém judeu), assassinado por terroristas estrangeiros, ou pelo líder do grupo terrorista (porém palestino) que o assassinou? Não precisa responder — a pergunta é retórica.

Nos Jogos Olímpicos de Paris, a boxeadora italiana Angela Carini, portadora de cromossomos XX, perdeu a luta contra a argelina Imane Khelif, portadora de cromossomos XY. O embate desigual durou 46 segundos, e é preciso decidir se lamentamos a derrota de uma mulher para uma pessoa com níveis de testosterona compatíveis com os de um corpo masculino ou se comemoramos a vitória da ideologia sobre a biologia.

Houve recentemente episódios de racismo e antissemitismo em escolas de elite. Era imperativo condenar a discriminação, mas como agir com firmeza em relação aos agressores sem incorrer no igualmente abominável delito do punitivismo? As instituições devem estar penando até agora para descobrir uma receita de omelete que mantenha os ovos intactos e a frigideira fria.

A democracia é melhor que um regime eleitoral de viés totalitário, que é melhor que uma ditadura. Eleições limpas são melhores que eleições suspeitas, e estas melhores que eleições fraudadas. Mas se for de esquerda, a ditadura com eleições flagrantemente fraudadas (e o bônus de 1.200 presos políticos e uma dúzia de mortos) há de prevalecer sobre a democracia — pelo menos para o partido que nos governa e que se gaba de haver salvado nossa periclitante vocação democrática. Em casos assim, cesse tudo o que a musa humanista canta, que outro valor mais alto se alevanta: o do antiamericanismo (ops, antiestadunidentismo), que é mais relevante que a causa dos direitos humanos, da liberdade de pensamento e expressão, do combate à corrupção, da preservação do meio ambiente, da proteção às minorias, da erradicação da fome e da miséria etc.

Era bem mais simples quando não se precisava recorrer a malabarismos para justificar escolhas racistas, sexistas, excludentes, autoritárias, antidemocráticas. Quando os princípios éticos e a vergonha na cara eram uma espécie de água, que levava a pedra, desfazia o papel e enferrujava a tesoura. Sem contemporizações.

 

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