Folha de S. Paulo
Economista ocupou a pasta durante o 'Milagre
Brasileiro', na ditadura militar
Antonio Delfim Netto, que morreu
nesta segunda-feira (12), em São Paulo, foi o ministro da
Fazenda mais poderoso da história republicana. Neto de um imigrante italiano
que fugiu do eito das fazendas de café e trabalhou no calçamento das ruas de
São Paulo no século 19, chegou ao poder em 1967, aos 38 anos. Pouco conhecido,
com o sotaque do Cambuci, solteiro, gordo e vesgo, vestia-se de preto com
camisas brancas. "Fantasia de viúvo", explicava.
Delfim chegava cedo ao ministério e saía
tarde, quase sempre para uma mesa do fundo do restaurante Le Bistrô, em
Copacabana, sentando-se com os amigos que colocara em postos-chave da
administração. De um lado o presidente do Instituto Brasileiro do Café (principal
produto da exportação nacional). Adiante, o presidente da Caixa Econômica ou o
responsável pelo conselho que controlava milhares de preços de produtos. Ao
contrário de Paulo Guedes, que acumulou ministérios, Delfim apenas espalhava
seus quadros no tabuleiro do poder.
Durante os seis anos em que esteve na Fazenda, a economia nacional cresceu na média 11% ao ano. Era o que se chamou de "Milagre Brasileiro". Cavalgando-o, poderia ter chegado à presidência da República. A conta era simples: em 1974 ele sairia do ministério, seria eleito (indiretamente) governador de São Paulo e quatro anos depois substituiria o general Ernesto Geisel no Planalto.
Delfim costumava dizer que a história do
Brasil tem enigmas e que um deles foi o desentendimento de D. Pedro I com José
Bonifácio, em 1823. Outro foi o surgimento de uma barreira afastando-o dos
generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva entre o final de 1973 e o
primeiro semestre de 1974. Geisel chegara a admitir que ele continuasse no
ministério. Logo mudou de ideia, até que resolveu cortar-lhe as asas, barrando
também sua pretensão de governar São Paulo.
Delfim achava que poderia ser escolhido pelo
partido do governo, contra a vontade do Planalto. Iludiu-se vendo tolerância na
ditadura a que servia. Geisel estava disposto a tudo para cortar seu caminho,
até que Delfim ouviu a sentença: "O regime é implacável". Meses
depois resignou-se aceitando um exílio dourado como embaixador do Brasil na
França.
Delfim reaproximou-se do poder numa conversa
com o general Golbery. Quando chegou à Granja do Ipê, onde morava o chefe do
Gabinete Civil da presidência, ele indicou-lhe o lugar onde deveria sentar-se.
"Achei que estaria gravando". Pode ser que tenha achado, pode ser que
não, mas havia um microfone embaixo do sofá e um gravador na cozinha. (Foram
colocados pelo coronel que comandava a tenebrosa reserva de mercado dos
computadores. Na ditadura era mais fácil passar por um aeroporto com um pacote
de cocaína do que com um computador cuja memória era inferior à de um celular
de hoje.)
A barreira que cortou o caminho de Delfim
teve diversos ingredientes. A plutocracia intrigava-o. Eugenio Gudin, o corifeu
do liberalismo nacional, dizia que "o homem é diabólico", engrossando
o coro que o acusava (com razão) de maquiar o índice da inflação de 1973.
Delfim também se desentendera com Geisel, presidente da Petrobras, por causa do
preço dos combustíveis.
Acima de tudo, a idiossincrasia derivou da
simpatia que Delfim teve por uma eventual prorrogação do presidente Emílio
Garrastazu Médici. Registre-se que Médici não aceitava que seu mandato fosse
prorrogado. Se aceitasse, teria continuado no governo. Geisel não se oporia.
O Delfim do Milagre triunfou porque
trabalhava duro e movia os cordões do poder com silenciosa frieza. Quem ficava
no seu caminho era atropelado. Assim sucedeu a um ministro da Indústria e a
outro da Agricultura. Mais tarde, quando o presidente do Banco Central saiu da
linha, detonou-o. No dia seguinte o defenestrado queria voltar ao Rio no avião
do Banco. "Manda ele voltar de ônibus", disse Delfim ao intermediário
que encaminhou o pleito.
Aquele italianinho gordo assumiu em 1967
conhecendo a economia nacional, sabendo que os seus antecessores, Roberto
Campos e Otavio Gouveia de Bulhões já "haviam feito o serviço de
salsicharia". Na tétrica reunião do Conselho de Segurança que baixou o Ato
Institucional nº 5 ele queria fazer mais, e fez. Com um Ato Complementar,
centralizou na sua caneta as autorizações de gastos dos fundos dos estados e
municípios. Ao contrário da maioria dos signatários do AI-5, ele nunca se
arrependeu de tê-lo assinado.
Delfim tinha uma biblioteca de leitor voraz e
doou-a à Universidade de São Paulo. Quando ia a Nova York, parava uma camionete
diante do supersebo Strand e enchia o carro com as compras. Seu outro gosto era
comer. Depois de mais de uma dúzia de ostras da cantina Roma, encarava um
espaguete ao alho e óleo. (Bebia quase nada e era capaz de passar uma noite com
um copo de uísque, renovando apenas a água.)
Delfim voltou ao ministério durante o governo
do general João Baptista Figueiredo (1979-1985). Seu retorno ao comando da
economia foi recebido com festas. Fracassou. O país quebrou, a inflação
ressurgiu e houve anos de queda do Produto Interno Bruto. As ruas voltaram a se
manifestar com o grito "o povo está afim da cabeça do Delfim". Ele
tinha nas paredes de seu escritório charges onde aparecia como o ministro
poderoso e também as da ruína, inclusive a capa da revista Veja na qual estava
decapitado.
Antes da pandemia, Delfim combinou com o
repórter Pedro Bial que gravaria um depoimento para a história. Podia perguntar
o que quisesse. Ficou devendo.
Muito bom! Fiquei na dúvida sobre a frase: "Delfim chegava cedo ao ministério e saía tarde, quase sempre para uma mesa do fundo do restaurante Le Bistrô, em Copacabana" - o ministério naquela época ficava no RJ?
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