O Globo
A tática já foi anunciada por Lula: construir
uma narrativa democrática, apesar de tantas evidências
Li uma entrevista de um homem de 100 anos
dizendo que seu segredo era deixar os problemas cotidianos fora do quarto de
dormir. Não tenho a pretensão de chegar aos 100, mas preciso banir dois
personagens de minhas divagações noturnas: o Flamengo e
o governo brasileiro.
Não vou aborrecer ninguém com minha paixão
pelo futebol, preciso de dois parágrafos para o Flamengo. É clube com orçamento
milionário e uma direção incompetente. O técnico de futebol é homem de pobres
sinapses. É possível antever a derrota apenas lendo a escalação do time.
Suas explicações nunca vão às causas do problema. Outro dia, após uma derrota, ele reclamou do calor, como se seu time jogasse no sol, e o vencedor numa redoma de ar-condicionado.
O problema com o Flamengo são os jogos
noturnos. Tenho o hábito de imaginar que entraram no gol as bolas que chutamos
fora e que bateram na trave os gols marcados pelos adversários.
Já o governo brasileiro mexe com algo muito
mais profundo: uma história de vida. Quando ouço Lula dizer
que a situação na Venezuela está
calma e que, em caso de conflito, a oposição pode reclamar na Justiça, sinto
uma oportunidade perdida: a do Brasil tornar-se um líder continental na defesa
da democracia e dos direitos humanos.
O caminho escolhido é mediar uma crise na
qual Maduro não faz nenhuma concessão. No fundo, a tática já foi anunciada por
Lula: construir uma narrativa democrática para a Venezuela, apesar de tantas
evidências.
Parte da imprensa parece gostar desse papel.
Já ouvi que as críticas de alguns países a Maduro não passavam de lacração.
Fala-se que há diferenças entre a esquerda,
uma nova, outra tradicional. Mas sempre houve contradições, e isso é a essência
mesmo do seu pensamento.
O primeiro grande cisma ainda acompanhei
muito jovem: os crimes do stalinismo separando os que os justificavam e os que
se afastavam deles, horrorizados.
Depois, veio a invasão russa da
Tchecoslováquia. Foi um novo divisor. Para mim, era evidente que nem o
socialismo nem outro tipo de regime político se impõem de fora para dentro na
ponta das baionetas. Fiquei muito feliz ao ouvir vozes que condenavam a invasão:
os filósofos Leandro Konder e Carlos Nélson Coutinho, o jornalista Janio de
Freitas.
Em seguida, a ditadura militar trouxe nova
divisão. Embarquei no caminho equivocado, mas paguei com bala, tortura, prisão
e exílio, como todos os outros.
A Revolução Cubana, a partir de certo
momento, também provocou uma clivagem decisiva. Toda uma geração de poetas e
escritores foi perseguida e arrasada pela polícia política. Dentro dos meus
limites, apoiei o poeta Raúl Rivera, que deixou a prisão e foi para o exílio,
onde morreu.
Finalmente, com a esquerda no poder,
discordei da maneira como se avaliava a corrupção. Isso me expulsou da família
de pensamento que sabe punir os que se afastam com campanhas difamatórias.
Mas tudo bem, parte do jogo. Estão de novo no
poder, e a melhor atitude é desejar que acertem, pois seu êxito será bom para
todos nós.
Infelizmente, as grandes abstrações,
imperialismo, ambição pelo petróleo, não permitem que sintam um povo de carne e
osso, lutando pela liberdade, querendo trazer os que saíram e impedir que saia
uma grande parte da juventude.
São escolhas históricas, que marcam nossa
vida. Eu já deveria tratá-las com mais naturalidade.
Afinal, temos um governo com hegemonia da
esquerda, confiança da maioria dos eleitores e apoio maciço de intelectuais e
acadêmicos.
Por seu lado, o Flamengo continuará
mascarando sua mediocridade graças à abundância financeira.
O escritor Coleridge sonhou com um poema
inteiro, inspirado num palácio feito por um imperador, que também o construiu
inspirado em sonhos. Acordo diariamente com proparoxítonas que não se encaixam
umas nas outras.
Quem sabe não entro nessa corrente onírica de
inspiração, deixando fora do quarto Flamengo e governo, sobre os quais tenho
pouca influência nas horas de vigília diurnal.
BRILHANTE. MAM
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