quinta-feira, 8 de agosto de 2024

George Gurgel de Oliveira* - Brasil: Ciência, Tecnologia e Inovação para a Sustentabilidade

O imperativo da mudança: quais os desafios?

A dinâmica das relações entre a sociedade e a natureza muda qualitativamente a partir da revolução industrial. As inovações científicas e tecnológicas, através das máquinas incorporadas aos processos produtivos, modificam exponencialmente a escala de produção e consumo, colocando-se a necessidade de ampliação dos mercados, além do Estado Nacional, criando-se novas relações políticas, econômicas e sociais.

Desde então, desencadeou-se um processo de mundialização, transformando o modelo de ser e agir da humanidade nas suas relações entre si e com a própria natureza, impactando, como nunca antes na história, os ecossistemas, colocando em risco a sobrevivência da própria humanidade. Construiu-se uma lógica de produção e consumo que historicamente e atualmente mostrou-se insustentável.

Portanto, coloca-se a necessidade de construir uma outra perspectiva de sociedade, ampliando as formas e os conteúdos da democracia, a partir de novas relações políticas, econômicas e sociais, onde a ciência, a tecnologia e a inovação (C&T&I) podem e devem cumprir um papel de destaque.

Continua moderno e contemporâneo o desafio de melhor realizar a distribuição da riqueza material produzida pelos que trabalham, incorporando os ganhos proporcionados pela C&T&I a favor do bem estar e da felicidade humana, preservando e valorizando a diversidade cultural e espiritual da sociedade, afirmando os direitos, os deveres individuais e coletivos da cidadania, preservando as condições de vida no planeta.

Estas são as questões estruturais a serem enfrentadas para a construção dessa sustentabilidade, necessária para a sobrevivência da própria humanidade. Vamos fazer esta travessia? Continuamos, tanto nos períodos de guerras quanto nos de paz, excluindo bilhões de pessoas das conquistas sociais modernas? Até quando vamos nos agredir, nos autodestruir e a própria natureza? Quais os nossos compromissos com a nossa casa comum, com as gerações atuais e futuras?

A contribuição da Ciência, da Tecnologia e dos Sistemas de Inovação

Até os anos 1960 do século XX, a inovação era desenvolvida por meio de processos sucessivos e independentes de pesquisa básica, aplicadas fundamentalmente na área industrial. A partir de então, os processos de inovação passam a ser trabalhados a partir de uma visão além da indústria, relacionando a educação, o sistema financeiro, o mundo do trabalho e da cultura, construindo o que se passou a chamar de economia do conhecimento (OCDE et outros)

Assim, os Sistemas de Inovação (SIS) podem e devem incorporar novas áreas de conhecimento e de aprendizagem em cooperação que vão construindo novas relações com a própria comunidade científica, com os diversos atores governamentais, o mercado e a sociedade em geral. Portanto, os SIS devem ser estruturados para alcançar determinados objetivos científicos e tecnológicos, buscando melhorar a qualidade de vida das pessoas, consequentemente, os SIS estão desafiados para contribuir com a sustentabilidade econômica, social e ambiental nos planos Internacional, Nacional, Regional e Setorial.

Atualmente, as principais economias mundiais, concentradas no G20, particularmente os Estados Unidos, a China e a Rússia, consomem mais da metade dos recursos naturais do planeta. Estes grupos de países têm uma responsabilidade maior na perspectiva de mudança dessa realidade. As ações a serem implementadas a partir da Agenda 21 (ECO-92), em relação às inadiáveis transformações econômicas, sociais e ambientais continuam sendo postergadas com danos irreversíveis aos ecossistemas planetários, com reflexos econômicos e sociais negativos impactando a vida de milhões de pessoas em todos os continentes.

Assim, a dinâmica de funcionamento do sistema capitalista, do capital produtivo e financeiro, dos investimentos em C&T&I no Complexo Industrial Militar, do funcionamento dos organismos multilaterais, a exemplo da ONU, como também do FMI e do Banco Mundial, entre outros, não sinalizam de maneira efetiva para as mudanças necessárias apontadas nas conferências mundiais da ONU desde 1972, 3 referendadas pelos governos, maioria da comunidade cientifica e as organizações da sociedade civil a nível mundial. Desde então, iniciou-se um processo de tomada de consciência e de discussão das questões ambientais, em função dos graves problemas decorridos do modelo de desenvolvimento industrial e urbano, concentrador de populações e indústrias, ampliando o nível de poluição das águas, da atmosfera e dos solos, impactando, cada vez mais, os ecossistemas do planeta.

As conferências do Rio de Janeiro, em 1992, a de 2002, em Joanesburgo, na África do Sul e, novamente, no Rio de Janeiro, em 2012, a Rio+20 colocaram em pauta as demandas ambientais: a maioria das questões agendadas não foram enfrentadas e as soluções continuam sendo adiadas, a exemplo das questões climáticas, angústia de toda a humanidade.

Em 2012, na última conferência mundial, a RIO+20, o cenário era de frustração em relação ao que foi planejado em 1992, principalmente em relação às metas da Agenda 21 e as medidas que deveriam ser tomadas para minimizar os efeitos das mudanças climáticas, causadores de danos irreversíveis aos ecossistemas planetários, impactando populações em regiões litorâneas com o aumento do nível do mar em todo o planeta.

Por outro lado, constata-se a ampliação da consciência mundial, dos movimentos políticos e sociais e uma participação cada vez mais ampla da comunidade científica que clamam por tratar com a urgência devida as questões ligadas à degradação dos ecossistemas, das mudanças climáticas e das relacionadas com a exclusão social, como também a necessidade de uma nova economia, de baixo consumo de carbono, variáveis a serem consideradas no caminho da sustentabilidade econômica, social e ambiental, onde a ciência, a tecnologia e a inovação podem e devem cumprir um papel de destaque.

Ainda há que destacar o cenário internacional atual, desfavorável: as guerras Rússia x Ucrânia e Israel x Palestina são sintomas dessa complexa e preocupante realidade mundial. Os impactos econômicos, sociais e ambientais causados pelas guerras, os conflitos étnicos, religiosos e a migração de milhares de pessoas do continente africano e asiático para a Europa e as migrações internas no continente americano, apontam para realidades econômica, social e ambiental insustentáveis. A Paz, como nunca, coloca-se como um imperativo para a sustentabilidade humana no planeta.

Assim, em um contexto de crises econômicas recorrentes do capitalismo, desde a década de 1980, e as recentes nos Estados Unidos, em 2008, e as guerras e conflitos regionais, envolvendo diretamente os EUA, a Comunidade Europeia, Israel, a Palestina e a Rússia, pouco se tem avançado na perspectiva desta necessária sustentabilidade mundial.

Constata-se, ao contrário, a prevalência do complexo industrial militar, do capital financeiro em relação ao capital produtivo, subtraindo as conquistas do Estado de Bem-Estar Social na Europa, colocando populações e países em situação de graves retrocessos políticos, econômicos e sociais, com reflexos nos ecossistemas planetários. Ainda, a situação econômica, social e ambiental é mais grave na Ásia, África e América Latina. Essas realidades são muito distintas do que foi proposto e está sendo proposto nos relatórios e Agendas das Conferências da ONU, desde a primeira conferência mundial sobre o meio ambiente em Estocolmo, em 1972, até a atualidade.

O Brasil e os desafios de um Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação

Em relação a realidade brasileira, os desafios históricos continuam atuais, agregando-se novos desafios para a construção de uma sociedade democrática, com uma outra perspectiva política, no caminho de uma nova economia, social e ambientalmente sustentáveis.

A superação das desigualdades sociais, a construção de uma economia de baixo carbono, a preservação do meio ambiente, dos valores culturais e espirituais construídos ao longo da história da sociedade brasileira são horizontes a serem perseguidos para a construção de uma perspectiva sustentável para o Brasil, onde a ciência, a tecnologia e a inovação podem e devem cumprir um papel de destaque.

O Brasil atual é uma das sociedades com maior exclusão social e concentração de riquezas do planeta. A população brasileira é, aproximadamente, de 200 milhões de pessoas, com menos de 200 mil pessoas proprietárias da metade da riqueza nacional.

Como mudar esta realidade?

Desde o início da colonização, Portugal já percebia o potencial das riquezas brasileiras. Então, construiu-se um modelo extrativista e de exploração da natureza, com os seus diversos ciclos econômicos e o nosso processo de industrialização tardio que originaram o modelo de desenvolvimento brasileiro histórico e atual.

Os conflitos econômicos, sociais e ambientais gerados por esse tipo de desenvolvimento permanecem como resultado das relações predatórias e desiguais entre os diversos atores políticos, econômicos e sociais que histórica e atualmente moldaram o funcionamento do Estado, do Mercado e da Sociedade em geral, determinando as relações estabelecidas do Brasil com o mundo.

Os custos econômicos, sociais e ambientais deste modelo são alarmantes, a exemplo do que aconteceu historicamente com a destruição da mata atlântica. Nos últimos anos ampliou-se o nível de degradação da Amazônia, dos cerrados e do pantanal.

A partir de 1950 foi moldada a matriz energética brasileira (biomassa, hidráulica, petróleo-gás e nuclear), iniciou-se a construção de complexos parques industriais e a ampliação das fronteiras agrícola e pecuária, ampliando-se a escala de poluição do ar, do solo e da água, colocando o desafio de preservação do meio ambiente como uma questão nacional – do Estado, do Mercado e de toda a Sociedade brasileira.

O processo de urbanização acelerada, iniciado na década de 70 do século passado, agravou ainda mais as questões relacionadas à segurança pública, mobilidade, saneamento básico, moradia, educação e saúde, chamando a atenção para os graves problemas a serem enfrentados, historicamente adiados, pela sociedade brasileira.

Assim, o Brasil fez uma modernização conservadora. Avançou tecnologicamente em algumas áreas, a exemplo da indústria de petróleo e gás, alcoolquímica, aviação, armas e equipamentos militares, agricultura e pecuária. Por outro lado, ainda hoje, como na Colônia, continua exportador de recursos naturais e produtos de baixo valor agregado em larga escala: minérios de ferro, produtos agropecuários, alumínio, papel e celulose, soja e carnes, com consumos gigantescos de água e energia incorporados nestes processos produtivos.

Portanto, fica evidente a dependência-subordinação da economia brasileira às principais economias mundiais como fornecedora de matérias-primas, alimentos, água, energia e mão de obra. A economia continua muito dependente do valor das comodities, com uma vulnerabilidade muito grande em relação ao mercado mundial. Nas últimas décadas, agravou-se esta situação, com a diminuição do setor industrial na participação no PIB brasileiro.

Neste cenário internacional de ameaças e oportunidades, o Brasil pela sua dimensão territorial, pelas riquezas naturais, base técnica e científica que construiu nos últimos anos, aliado ao ativismo da sociedade civil, procura e tem participado na discussão de uma perspectiva sustentável para a sociedade mundial, desde a RIO+92.

Assim, a sociedade brasileira tem manifestado nas ruas e nas redes sociais o seu descontentamento querendo reformas e um outro tipo de representação política. A insegurança pública, as mortes e os assassinatos fazem parte do cotidiano brasileiro, particularmente nas regiões metropolitanas, sintoma da tragédia brasileira.

A implementação da Agenda 21 brasileira, compromisso do Brasil com a ONU, desde a ECO-92, ficou a desejar, por muitas razões. Fundamentalmente, porque os compromissos desta Agenda não são obrigatórios, mas sim declaratórios. Portanto, a sociedade brasileira quer resultados efetivos para a vida cotidiana, marcada por precárias condições econômicas, sociais e ambientais. Urgências que não podem mais serem postergadas para o futuro. Deve-se aproveitar a atual crise brasileira para discutir e realizar as reformas tão necessárias, inadiáveis, apostando em um novo pacto político, econômico e social, que ajude a avançar a democracia brasileira, rumo a este futuro sustentável.

Neste contexto, nem a ONU, nem as organizações multilaterais mundiais, nem os governos nacionais se sentem obrigados a implementar estas agendas propostas. Faltam as condições materiais, os investimentos, principalmente financeiros: esta é uma questão central. Em geral, os avanços sociais são reativos. Acontecem em função da pressão da sociedade em relação a determinados programas e projetos internacionais/ governamentais, ou quando acontecem tragédias com grandes impactos sociais e ambientais, com reflexos negativos na qualidade de vida das populações, o que vem acontecendo no Brasil e em várias regiões do mundo, cotidianamente.

Desde 1970, avançou-se no Brasil a consciência sobre a questão ambiental e as suas relações econômicas e sociais. No entanto, ainda não se incorporam estas questões nos processos de construção das políticas públicas, tanto a nível federal, como estadual, e também na maioria dos municípios brasileiros, que não consideram a variável ambiental, a ciência, a tecnologia e a inovação como valores estratégicos para a sustentabilidade.

A Constituição de 1988 declara no capítulo VI que todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, sendo responsabilidade do poder público e da sociedade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as atuais e futuras gerações.

A partir de então, consolidou-se a Política Nacional de Meio Ambiente, que tem como maior objetivo a preservação e a recuperação da qualidade ambiental do Brasil, criando as condições para a sustentabilidade econômica, social e ambiental. Assim, nos últimos 35 anos de redemocratização da sociedade brasileira foram criadas as condições para a construção de políticas públicas, que incorporem de maneira transversal as questões econômicas, sociais e ambientais, fundamentos para a construção de uma outra perspectiva de sociedade que se quer sustentável.

No entanto, a realidade é muito mais complexa. No Brasil, desde os anos 1970, os grandes programas e projetos de infraestrutura construídos não incorporam a questão ambiental como um valor estratégico. Via de regra, criam maneiras e artifícios para o não cumprimento da legislação, acarretando, muitas vezes, em graves acidentes e impactos sociais e ambientais. A questão da água, dos rios, dos aquíferos, do oceano atlântico e das florestas devem ter uma atenção especial: são ativos orientadores de uma Política Nacional de C&T&I, criando os fundamentos de uma nova economia rumo à almejada sustentabilidade brasileira.

Assim, devemos trabalhar a construção de uma Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil em função das suas realidades regionais e potencialidades nacionais: biodiversidade, território, riquezas minerais, água, energia solar e eólica, integrada com a América Latina e o mundo. Os limites impostos à economia baseada em carbono colocam o Brasil em uma situação de destaque, em relação à questão ambiental, com vantagens comparativas, na perspectiva de uma nova economia com base na inovação, no caminho da sustentabilidade da sociedade brasileira.

A superação deste modelo atual, insustentável, desafia a construção de novas relações políticas, econômicas e sociais entre os diversos atores do Estado, do Mercado e da Sociedade Civil. Nesta perspectiva, vão sendo criadas as condições políticas, econômicas e sociais para a construção de uma sociedade sustentável, onde a ciência, a tecnologia e a inovação devem cumprir um papel de destaque.

Finalmente, há que se compreender e trabalhar as relações entre ciência, tecnologia e inovação como parte integrante da história da humanidade em suas relações com a natureza, procurando entender os conflitos e contradições da sociedade atual, buscando soluções, sobretudo identificando as diferenças e os reais interesses entre os diversos atores políticos e sociais em questão, criando os fundamentos de novas relações políticas, econômicas e sociais, a partir da transformação de sua base científica e tecnológica no caminho da sociedade futura, que se almeja sustentável.

*Professor Doutor da UFBA e do Instituto Politécnico da Bahia

2 comentários:

  1. Ana Maria Mandim, jornalista9/8/24 14:57

    Excelente artigo! Faz histórico rápido e esclarecedor sobre como chegamos à situação atual e faz um chamamento à mudança ("travessia"), mostrando que ela é desejável, possível e urgente! Parabéns, Professor George!

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  2. Com clareza ímpar, baseada na análise do processo histórico, Gurgel alerta sobre a insustentabilidade do modelo atual de produção e consumo, que pressiona os recursos naturais e que aprofunda as desigualdades sociais. Repensar o modelo de desenvolvimento com base na C&T&I aliada ao capital ambiental brasileiro (biodiversidade e produção de baixo carbono) seria um caminho que Gurgel aponta e nos anima a todos. Eu, modestamente, incluiria a EDUCAÇÃO AMBIENTAL ESCOLAR como instrumento poderoso para uma formação que prepare o estudante para o novo mundo do trabalho (indústria 5.0) de forma aliada a uma visão dos diferencias brasileiros (biodiversidade) e uma consciência sobre a relação consumo, produção e a sustentabilidade. Parabéns professor!

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