sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Juristas não veem indícios de conduta ilegal de Moraes

Joice Bacelo e Marcelo Coppola / Valor Econômico

Para especialistas ouvidos pelo Valor, o que há é uma ‘confusão de papéis’, embora ela seja amparada pela Constituição

Ministros, parlamentares e integrantes do governo Lula saíram em defesa de Alexandre de Moraes depois de reportagem da “Folha de S.Paulo” revelar mensagens sobre suposto uso do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para embasar investigações conduzidas no Supremo Tribunal Federal (STF). Do outro lado, nomes ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e críticos ao ministro rascunham pedidos de impeachment e de nulidade das investigações. Mas, afinal, Alexandre de Moraes, agiu ou não fora da lei?

Juristas ouvidos pelo Valor dizem que existe, de fato, uma “confusão de papéis”, mas amparada pela Constituição. O desenho institucional da Justiça brasileira permite que um ministro do STF ocupe cadeira no TSE e exerça o “poder de polícia” da Justiça Eleitoral. Além disso, apesar do tom de excessiva informalidade entre os assessores, a maioria dos especialistas não vê elementos que coloquem em dúvida a conduta do ministro. Não é uma unanimidade. Há divergências também sobre a possibilidade de anulações.

Conduta
Cinco juristas ouvidos pelo Valor consideram que as mensagens até agora reveladas não são suficientes para afirmar que Moraes ultrapassou o limite legal. São eles: o advogado constitucionalista Pedro Serrano, os criminalistas Pierpaolo Cruz Bottini e Fernando Fernandes e os professores da FGV Direito SP Fernando Neisser e Eloísa Machado.

Os especialistas levam em conta, basicamente, três questões: o conteúdo das mensagens, que envolvem informações públicas, divulgadas em redes sociais; o fato de o ministro presidir o TSE quando houve contato entre os assessores - e, nesse caso, estar amparado pelo chamado “poder de polícia” -; e a atuação de Moraes no inquérito das “fake news” ter aval do STF.

Esse inquérito é alvo de críticas desde a origem. Foi aberto em 2019 pelo próprio STF para apurar ameaças a seus integrantes e disseminação de conteúdo falso na internet. O sigilo e a permissão para que um ministro tenha papel de investigador, acusador e julgador foram e ainda são contestados no meio jurídico. Mas essa situação, dizem os especialistas, está superada, pois o plenário do STF decidiu a favor do inquérito em 2020.

Poder de polícia
Além da função jurisdicional, a Justiça Eleitoral tem, por lei, a função administrativa de realizar as eleições. Em razão disso, também por lei, existe o que se chama de “poder de polícia”, que é a capacidade de atuar sem ter sido provocada por ninguém. “Se o juiz eleitoral estiver a caminho do trabalho e se deparar com uma placa de propaganda irregular, ele deve parar o carro, pegar a placa e levá-la apreendida para o cartório” exemplifica Fernando Neisser.

Significa, em outras palavras, que o juiz eleitoral pode investigar e determinar medidas com a função de salvaguardar o bom andamento da eleição.

A troca de mensagens ocorre no período em que Moraes era presidente do TSE. A Corte Eleitoral tem ministros do STF em sua composição por determinação da Constituição Federal. “Quando um ministro do STF exerce função de ministro também no TSE, ele acumula esses poderes, funções e deveres. Se toma conhecimento num cargo, aciona o outro automaticamente. É obrigado a fazer isso”, diz Serrano.

Comunicação informal
A troca de mensagens ocorreu principalmente entre Airton Vieira, juiz instrutor no gabinete de Moraes no STF, e Eduardo Tagliaferro, que atuava como chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE - criada em 2020, quando o ministro do Edson Fachin esteve à frente da Corte Eleitoral.

A maioria dos especialistas concorda que o tom da conversa foi bastante informal, mas não vê problemas de ter havido comunicação direta entre os dois.

“Falamos, no direito, que assessores são ‘longa manus’ do ministro. Atuam em seu nome e exercem funções que o próprio ministro pode exercer”, diz Serrano. “Se o ministro pede ao assessor que fale com um subordinado seu em outro tribunal, não há intervenção indevida. É o próprio ministro falando ao seu subordinado atrás de outro subordinado.”

Não haveria, portanto, necessidade de troca de ofício. O ofício, segundo os especialistas, é um instrumento de comunicação entre autoridades diversas. No caso envolvendo Moraes, apesar de os cargos serem diversos - STF e TSE -, o ministro é o mesmo. “Não há elementos para afirmar que tenha havido abuso de poder. O problema, se existe, está no desenho institucional da Justiça brasileira, que permite que um ministro do STF exerça o poder de polícia no tribunal eleitoral”, diz Eloísa Machado.

Conteúdo das mensagens
Segundo reportagem da “Folha”, Eduardo Tagliaferro, chefe da AEED, fazia varredura nas redes sociais dos investigados, elaborava relatório e enviava ao gabinete do ministro para ser incluído no inquérito. O trabalho era solicitado por WhatsApp pelo juiz instrutor do gabinete de Moraes no STF.

Para o professor Fernando Neisser, da forma como está colocado, dá a entender - de maneira equivocada - que houve produção de provas. “Passa uma impressão de que a AEED chutava a porta da casa do sujeito, fazia busca e apreensão do computador e entregava ao STF. Mas não é isso. A única coisa que fez foi olhar informações públicas que estão na internet”, ele diz. O criminalista Pierpaolo Cruz Bottini concorda e acrescenta que não se consegue, pelas mensagens publicadas até gora, identificar a conduta do ministro. “As referências são indiretas”, afirma.

Também ouvida pelo Valor, a advogada Vera Chemim entende de forma diferente. Para ela, os diálogos parecem remeter à “extrapolação da conduta do ministro”. O entendimento é de que pode ter havido uma exigência para que o perito do TSE procurasse provas sobre condutas de determinadas pessoas com a finalidade de elaborar os relatórios solicitados. “São supostos indícios. Terão que ser ratificados.”

Perseguição
Após a revelação das mensagens, bolsonaristas passaram a acusar Moraes de ter usado o TSE para, durante a campanha eleitoral, perseguir apoiadores do ex-presidente.

Para a professora Eloísa Machado, não há elementos até agora que confirmem isso. “Os diálogos não revelam a chamada ‘pescaria’ probatória, proibida pela Justiça brasileira, que é quando uma investigação busca pegar qualquer prova para incriminar uma pessoa. No caso, trata-se de uma prática de natureza muito diferente, coletar informações que são públicas, que foram veiculadas nas redes sociais”, diz.

Nulidade das investigações
Em princípio, levando em conta somente os diálogos revelados até aqui, não se veem elementos que possam gerar nulidade, segundo Pedro Serrano. Ele frisa, no entanto, que só será possível responder a essa pergunta com uma análise rigorosa de cada caso. “Porque, aparentemente, eram somente informações públicas. Mas, de repente, o perito do TSE olhou o público e o privado também. Isso só dá para responder olhando caso a caso. Do que está posto agora, nada impressiona”, ele diz.

Vera Chemim discorda. Para ela, é preciso considerar a jurisprudência que se criou na Lava-Jato, com o vazamento de trocas de mensagens entre o ex-juiz Sergio Moro e procuradores. “Vejo como situações similares. E a exemplo do que aconteceu na Lava-Jato deveria, agora, provocar a nulidade”, ela afirma.

Todos os demais especialistas ouvidos pelo Valor, no entanto, não concordam que exista semelhança entre as duas situações. “Não é um processo penal. Só por isso já é incomparável à Lava-Jato”, diz Serrano. “Não é um processo penal em que há duas partes que têm que ser tratadas de forma igual pelo juiz. Há uma investigação e durante a investigação a defesa nem se pronuncia.”

Bottini afirma, além disso, que o objeto das conversas da Lava-Jato é bastante diferente do caso envolvendo Moraes. “Apontam agentes cruzando a fronteira da legalidade. Procuradores debatem o uso de dados sigilosos, sob reserva de jurisdição, e a divulgação de elementos da investigação para a imprensa, com o objetivo de desgastar réus perante a opinião pública ou emparedar aqueles que poderiam reformar as decisões judiciais de interesse dos agentes da operação.”


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