domingo, 25 de agosto de 2024

Ligia Bahia – Primeira opinião de médicos

O Globo

Há possibilidade de um perigoso retorno a um charlatanismo, desta vez oficializado por autoridades públicas

O resultado das eleições polarizadas, no início do mês, para uma das mais importantes entidades do país, o Conselho Federal de Medicina (CFM), afeta as boas práticas médicas ao renovar a presença de lideranças bolsonaristas na direção. Não é apenas uma recaída na batalha da cloroquina. A vinculação político-partidária e religiosa de médicos é relevante em duas dimensões. A primeira é a influência da categoria na sociedade, e a segunda é como esses posicionamentos alteram o modo de se relacionar com os pacientes.

Médicos, desde sempre, estiveram envolvidos com política e em polos opostos do espectro partidário. Estudos mostram que a maioria se identifica mais com uma determinada vertente ideológica. Grupos e entidades médicas também propõem, apoiam ou criticam políticas de saúde, nacionais ou locais, e doam tempo ou recursos para campanhas políticas. São fatos.

A segunda questão — se as tendências políticas de um médico repercutem sobre o tipo e qualidade do atendimento — não tem resposta tão direta. Pesquisas internacionais baseadas em situações politicamente divergentes não foram conclusivas, embora tenham sido registradas nuances no grau de preocupação em relação a abortomaconha e armas de fogo entre os médicos mais e menos tradicionalistas, respectivamente.

Um par de frases que entrou para a história da medicina resume uma prática exemplar. O então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, ferido à bala em 1981, em meio às luzes intensas e à equipe do centro cirúrgico, sussurrou entre piada e temor:

— Por favor, me digam que vocês todos são republicanos.

O cirurgião responsável pelo atendimento, um declarado democrata, respondeu:

— Hoje somos todos do seu partido.

Em emergências, não é possível recorrer à segunda opinião. Tecnologias de inteligência artificial são bem-vindas, mas não substituem a “primeira opinião”, a emitida com rigor pelas competências científicas, técnicas e humanistas dos médicos.

A medicina científica se afirmou quando foram fechadas faculdades com currículos variados, descoladas de centros de pesquisas, e pelo combate aos praticantes de curas mágico-religiosas. A proliferação de escolas médicas privadas — com currículos no mínimo insuficientes para estudantes brasileiros, inclusive em países como Paraguai e Bolívia, com preços menores — e dirigentes do CFM que recusam as melhores experiências e evidências nos conduzem ao ponto inicial dos esforços realizados para trazer a medicina à modernidade. Um perigoso retorno a um charlatanismo, desta vez oficializado por autoridades públicas, imbricado com interesses econômicos e políticos, que envolvem desde grandes grupos econômicos a eleições locais.

O cenário delineado pelo aumento contínuo no número de médicos — de mais de 200% nas matrículas entre 2002 e 2024, a maior parcela com péssima formação — não é passageiro. Caracteriza-se por alto rendimento econômico e eleitoral. Enquanto o CFM fez da recusa ao Mais Médicos uma bandeira de “luta”, governos, inclusive de Bolsonaro, seguiram de modo discreto ou tipo outdoor, contratando em volumes maiores ou menores médicos sem revalidação de diplomas. Alocar médicos em locais remotos e até em municípios grandes com renda elevada conta com apoio de população, prefeitos, vereadores. Governos não deveriam estimular a má formação de profissionais de saúde, e o CFM falha em sua atribuição de contribuir para políticas de saúde para toda a população.

Interseção entre medicina e partidarismo político é em si mais um risco à saúde. Requer compreensão, reflexão e ação. Uma só medicina, a favor dos pacientes, com suas diversas convicções e aflições, é vital para a saúde.

 

2 comentários:

  1. Perfeito. Tão letal quanto a politização da atividade médica é a proliferação de profissionais totalmente despreparados, (de)formados nas unimer**s espalhada$ pelo país e adjacências.

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  2. A esquerda ainda não superou o fim dos mais médicos, afinal o dinheiro mandado pra Cuba pelo jeito continua a fazer muita falta.....

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