terça-feira, 13 de agosto de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Olimpíada de Paris traz sensação ambígua ao Brasil

O Globo

Mesmo com conquistas a celebrar, as frustrações expõem deficiências no incentivo ao esporte no país

Apesar das 20 medalhas, a participação brasileira na Olimpíada de Paris frustrou a expectativa. O próprio Comitê Olímpico do Brasil (COB) esperava bater o recorde obtido em Tóquio, melhor desempenho até hoje com 21 medalhas (sete de ouro, seis de prata, oito de bronze e a inédita 12ª colocação). Mas o Brasil teve de se conformar com três ouros, sete pratas, dez bronzes e o 20º lugar no quadro geral. Embora o número de pódios seja parecido, as medalhas de ouro recuaram, restringindo-se ao brilho de Rebeca Andrade no solo, Bia Souza no judô, Duda e Ana Patrícia no vôlei de praia.

Há, é verdade, resultados a celebrar, sobretudo a consagradora participação feminina, responsável pela maior parte das medalhas brasileiras. A ginástica artística, que ganhou musculatura nas duas últimas décadas, trouxe quatro, uma delas por equipes, inédita. O judô, esporte de tradição no Brasil, fez sua melhor campanha e conquistou outras quatro. O vôlei de praia feminino ocupou o alto do pódio depois de 28 anos. O futebol feminino, depois de 16 anos, também recuperou protagonismo com uma prata que igualou os resultados de Atenas-2004 e Pequim-2008. E o vôlei de quadra feminino levou o bronze, mantendo o Brasil no pódio desde Barcelona-1992.

Também é normal que o favoritismo num ou outro esporte decepcione. Isso ocorre com qualquer país. O que não faz sentido é o COB culpar a falta de vento ou de ondas por resultados frustrantes na vela e no surfe. Qualquer disputa está sujeita a condições imprevistas. O imponderável faz parte do esporte.

Conquistas enchem os brasileiros de orgulho, frustrações exasperam, mas nem umas nem outras devem encobrir as deficiências e os desafios que o esporte de alto rendimento enfrenta no país. A principal é a consistência. É preciso haver, em todas as modalidades, renovação de atletas individuais e das equipes. Rebeca Andrade, que se tornou em Paris a maior medalhista brasileira de todos os tempos com seis pódios, já anunciou que não competirá mais no solo e na categoria individual geral. Seria lamentável se a ginástica, depois de tamanho êxito com ela, entrasse em declínio gradual, como já aconteceu com o atletismo e a natação.

Encerrada a festa do esporte em Paris, fica a sensação de que o Brasil tem de melhorar seu desempenho para superar o teto de 21 medalhas. É preciso saber reproduzir noutras modalidades os trabalhos bem-sucedidos nesta edição. Não se trata apenas de aumentar investimentos no esporte, criar programas de incentivo como bolsa-atleta ou brindar medalhistas com a insólita e descabida isenção de Imposto de Renda.

O Brasil precisa ter políticas robustas para desenvolvimento do esporte, de modo a ampliar a base de atletas e permitir que novos talentos surjam nas diversas modalidades, mesmo naquelas em que não temos tanta tradição. Num país de mais de 200 milhões de habitantes, quanto mais competidores, maiores as chances de medalha. Nos últimos dias, viralizou nas redes sociais o vídeo do menino Miguel, de 13 anos, treinando salto com vara em barras improvisadas num chão de terra batida no interior do Piauí. Como ele, existem muitos outros à espera de uma chance. É preciso abrir-lhes as portas.

Regra para presentes a autoridades não pode depender do bom senso

O Globo

Norma precisa ser mais clara para não dar impressão de tratamento distinto a quem está no poder

Se prevalecesse o bom senso, não seriam necessárias regras para regular o destino de presentes valiosos recebidos por autoridades. É evidente que a intenção não é presentear o indivíduo, mas sim o cargo que ele ocupa. Portanto joias e outros objetos de valor deveriam se destinar ao patrimônio público. Não foi essa, porém, a decisão tomada na semana passada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) num caso envolvendo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O tribunal determinou que Lula não será obrigado a devolver um relógio de ouro e prata avaliado em R$ 60 mil, recebido em 2005 nas comemorações em Paris do Ano do Brasil na França.

A decisão chamou a atenção por contrastar com o que o próprio TCU estabelecera no ano passado ao julgar o caso de joias e presentes recebidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro dos governos da Arábia Saudita e de outros países. Por unanimidade, o plenário do tribunal determinou que ele devolvesse os presentes, alguns dos quais haviam sido postos à venda no exterior.

A decisão do TCU mobilizou o entorno de Bolsonaro a tentar recomprar relógios e outras joias vendidos nos Estados Unidos. O episódio levou a Polícia Federal (PF) a indiciá-lo por peculato, associação criminosa e lavagem de dinheiro, em inquérito que tramita no Supremo sob a presidência do ministro Alexandre de Moraes. Agora a defesa de Bolsonaro não perdeu a oportunidade de pedir tratamento idêntico ao dado pelo TCU ao relógio de Lula — e deverá usar a decisão para tentar deter as investigações.

No entender do TCU, porém, os casos são distintos. A decisão sobre Bolsonaro se baseou num acórdão emitido pelo tribunal em 2016 estabelecendo normas para o recebimento de presentes por autoridade. Elas lhes reservam o direito a manter apenas bens considerados “personalíssimos”. Em seu voto, o relator do processo, ministro Antonio Anastasia, argumentou que a regra não poderia retroagir a 2005, ano em que Lula ganhou o relógio. No final, prevaleceu a interpretação do ministro Jorge Oliveira, segundo a qual a legislação não estipula um critério para distinguir os bens de caráter “personalíssimo”, e não cabe ao TCU estipulá-lo, mas sim ao Congresso.

Num país em que é comum a confusão entre as esferas pública e privada, é preciso haver regras objetivas para que tais situações não estejam sujeitas a interpretações convenientes aos poderosos da ocasião. Se a regra do TCU não se mostra objetiva na prática, é preciso torná-la mais clara, e o Congresso faria bem aprovando legislação que dirimisse a questão. Não pode haver a percepção de tratamento diferente no que se refere a presentes recebidos pela Presidência. É arriscado apostar no bom senso das autoridades.

 Pesquisa do BC com empresas indica demanda aquecida

Valor Econômico

Resultados sugerem que os empresários acreditam que possa haver um bom espaço para repasse de custos ao consumidor

O Banco Central (BC) fechou uma lacuna importante no capítulo das expectativas econômicas. Ontem, divulgou os resultados de sua primeira pesquisa com empresas sobre suas previsões para o comportamento da economia, inflação, custos e margens de resultados. As pesquisas serão trimestrais, sempre feitas após a reunião do Copom mais recente. Em sua amostragem mais recente, de maio, coletou 92 respostas, pouco mais da metade das que colhe de 170 instituições financeiras e consultorias que participam do boletim Focus. O Firmus, como foi batizado, começou a procurar empresários em novembro de 2023.

Os primeiros números dissipam presunções difundidas, que se transformaram em críticas ao BC, fora e mesmo dentro do governo. Elas apontavam que o BC não se importava com o setor produtivo e que apenas sentia o pulso do mercado financeiro, pelo qual tabulava suas expectativas de inflação, um dos insumos determinantes para decisões de política monetária. Haveria um viés favorável ao setor financeiro, expresso em projeções sempre mais pessimistas da inflação - o que não ocorreria no mesmo grau se o setor real da economia fosse consultado. Da mesma forma, o Focus, ao errar quase sempre para baixo no cenário prospectivo do desempenho econômico, subestimaria constantemente o PIB.

Nas três pesquisas feitas até agora, porém, sobre a inflação, “a mediana das expectativas de inflação informadas pelas empresas na Firmus foi consistentemente maior que a mediana correspondente da pesquisa Focus”, concluiu o BC. Ao lidar com a produção material, as empresas teriam melhor condição de aferir com mais precisão o desempenho real da economia. Mas as medianas das expectativas para o crescimento do PIB em 2024 “ficaram virtualmente iguais nas duas pesquisas”.

O fato relevante é que o BC passou a ter mais informações, ainda que em grande parte indiretas, sobre temas que influem na determinação dos juros. O Federal Reserve faz isso, de forma diferente. Para a confecção do Livro Bege, um grande mapa da situação econômica feito pelos Fed regionais, que serve de base para as reuniões do banco que definem a taxa de juros, feita oito vezes por ano, são ouvidos diretamente empresários, economistas e especialistas de mercado de várias setores.

Nos grandes números, a mediana das empresas prevê IPCA de 4% este ano (44,6% das respostas) e no próximo (48,9%). Nestes dois anos, a inflação não atingirá a meta e há maior chance, embora fraca, disso ocorrer em 2026 (17,4% das respostas colocaram o IPCA em 3%). Na pesquisa Focus, as projeções são de 4,2% e 3,97%, respectivamente. O PIB crescerá 2% para a maioria dos pesquisados (51%).

Uma das preocupações do Copom é o comportamento do mercado de trabalho, que exibe agora a menor taxa de desemprego em dez anos, com aumento da renda do trabalho e da massa de rendimentos. Os empresários sentiram um aumento da demanda expressivo. Na comparação com seu plano de negócios, a procura projetada 12 meses à frente por seus produtos estava alinhada com o que foi planejado para 55,4% dos pesquisados e com discreto crescimento para 36,5% deles (dados de fevereiro). Questionados sobre o crescimento previsto para seus negócios em relação ao PIB de 2024, as empresas indicaram perspectivas muito positivas. A evolução está acima do esperado para 34,8%, muito acima para 13% e dentro da expectativa para 30,4%.

O Firmus mostra pressão salarial já nas respostas dadas em fevereiro (últimas disponíveis). Custos de mão de obra subiram acima ou muito acima da inflação para 50%, mas devem arrefecer de alguma forma nos próximos 12 meses, quando a parcela dos pesquisados que apontaram um cenário de alta moderada ou forte dos salários caiu para 36,5%.

Já na mais recente pesquisa de maio, outro dado relevante foi o do comportamento esperado dos preços dos produtos fornecidos pelas empresas em relação à expectativa sobre o IPCA nos próximos 12 meses. Ao menos 38% apontaram aumento acima do índice de inflação e 41,3%, pelo menos igual à inflação. Na mesma direção seguiram as respostas sobre o que as empresas esperam que vá ocorrer com sua margem de resultados. Em maio, 34,8% afirmaram que ela seria maior que a atual, enquanto 45,9% esperavam mantê-la e apenas 16,2%% viam uma pequena redução.

Ambos os resultados sugerem que os empresários acreditam que possa haver um bom espaço para repasse de seus custos ao consumidor e aumento dos lucros. Esses dados podem mostrar que o Copom está correto ao presumir que os bens industriais pararam de colaborar para a desaceleração da inflação e que a demanda, após a economia deixar de ter capacidade ociosa, permitirá tanto aumento dos custos salariais quanto da rentabilidade das empresas. O Firmus ainda será bastante aperfeiçoado, mas o que revelou indica mais trabalho à frente para o BC levar a inflação à meta - uma confirmação por outras vias, e de setores mais amplos da economia, dos grandes números do Focus e da necessidade de o governo conter gastos.

O poder e o professor Antonio Delfim Netto

Folha de S. Paulo

Ex-ministro teve biografia marcada por ação na ditadura, movido antes por afã de comandar economia que por autoritarismo

A morte de Antonio Delfim Netto aos 96 anos nesta segunda (12) priva o Brasil de um de seus economistas mais importantes. Estudioso profundo em sua área de atuação, "o professor", como o chamavam muitos de seus interlocutores, era também um frasista tão mordaz quanto espirituoso.

Homem público dos mais qualificados, tecnocrata sedento por poder antes de um defensor ideológico do autoritarismo, teve a biografia marcada pela participação na ditadura militar.

Era o último signatário vivo do AI-5 —ato que inaugurou, em 1968, a fase mais dura da repressão durante a ditadura militar (1964-1985)— e comandou a economia, como um verdadeiro czar, naquele período sombrio.

Entre 1967 e 1974, foi ministro da Fazenda, quando o Brasil viveu fase de forte expansão, com taxas de crescimento de dois dígitos. O "milagre econômico" foi impulsionado pelo fortalecimento de estatais e grandes obras de infraestrutura.

Nem todos foram igualmente beneficiados nos anos de prosperidade, e houve grande concentração de renda no período, além de um rápido endividamento externo —que resultaria em uma década perdida depois. Delfim sempre negou ter dito a famosa frase a ele atribuída à época de que seria preciso "primeiro fazer o bolo crescer, para depois distribuí-lo".

Em 1979, voltaria ao governo convidado pelo general João Figueiredo (1918-1999). Primeiro, como ministro da Agricultura; depois, do Planejamento. Deixou o posto em meio a grave crise econômica.

Em 1987, dois anos após o fim da ditadura, foi eleito deputado federal, função na qual permaneceria por duas décadas.

Em cargos públicos ou não, Delfim nunca deixou de contribuir para o debate desde sua influente tese acadêmica sobre as políticas para o café, em 1959. Foi conselheiro informal em administrações petistas. Atuou como colunista desta Folha por 35 anos.

Apaixonado por antropologia, Delfim procurava conciliá-la com a ciência econômica. Afirmava que os homens não são melhores que orangotangos ("Basta vê-los numa festa", dizia), mas que são capazes de realizar sua humanidade plena por meio do trabalho.

Neste contexto, "a mão invisível do mercado" de Adam Smith (1723-1790) seria um dos únicos instrumentos inventados pelo homem capaz de conciliar sua condição animal com igualdade, liberdade e relativa eficiência produtiva.

Fará falta o professor.

Abaixo do esperado

Folha de S. Paulo

Com queda do número de ouros nas Olimpíadas, COB deve rever alocação de recursos

Os Jogos Olímpicos de Paris terminaram com recuo do Brasil no seu histórico de quadro de medalhas. Embora mantendo praticamente o mesmo número de pódios, o país acabou em 20º lugar na contagem de ouros, após a 13ª posição no Rio (2016) e a 12ª em Tóquio (2020). Distanciou-se da meta, traçada na década passada, de ficar entre os dez primeiros.

Como de praxe, o balanço oficial do Comitê Olímpico do Brasil (COB) foi otimista, com explicações curiosas para algumas das medalhas não conquistadas —como as condições de vento e ondas.

Seria preferível que a entidade se dedicasse a entender as causas do problema e a alocar melhor seus recursos. Só de repasses às confederações foram previstos R$ 225 milhões, valor recorde, oriundo da arrecadação das loterias federais.

Chamaram a atenção o fraco desempenho da seleção masculina de vôlei, hegemônica em eventos anteriores, e a ausência de bons resultados na vela e na natação.

De positivo, o Brasil obteve bom número de pódios na ginástica artística e no judô. Notável também foi o desempenho da parcela feminina da delegação. Pela primeira vez, as mulheres ganharam mais medalhas do que os homens, incluídas as três de ouro conquistadas.

Na questão de gênero, as Olimpíadas de Paris deixaram um legado de avanço. Houve divisão quase equânime entre homens e mulheres no total de atletas, fruto da introdução de modalidades mistas no programa oficial.

Também foi perceptível o esforço contínuo do Comitê Olímpico Internacional para rejuvenescer o evento. Após o surfe e o skate, novidades de Tóquio (2020), o breaking chegou aos Jogos.

A redução de custo do evento também deve ser considerada. Paris desembolsou US$ 8,7 bilhões, pouco mais do que um terço do gasto do Rio em 2016. A melhoria da qualidade da água do rio Sena, ainda que aquém da idealizada, foi um dos frutos desse dinheiro.

O afastamento da Rússia do evento foi ainda mais radical, com a punição pela Guerra da Ucrânia. A disputa pelo topo do quadro de medalhas concentrou-se entre EUA e China, com vantagem do primeiro.

A chamada guerra cultural também se fez presente nos Jogos, com debates nas redes sociais sobre gênero e posição política dos atletas. Numa das repercussões mais esdrúxulas, o governo brasileiro se rendeu a pressões populistas, inclusive bolsonaristas, e isentou de imposto de renda a premiação recebida por medalhistas em Paris.

A hora da verdade para o Brasil na Venezuela

O Estado de S. Paulo

Os pretextos de Lula para sustentar sua ambiguidade estão se evaporando. Não interessa ao Brasil romper com a Venezuela, mas nem por isso precisa reconhecer um governo ilegítimo

O governo brasileiro ingressa na terceira semana de crise na Venezuela mantendo seu posicionamento ambivalente. No palco internacional, adota uma posição de cautela. Em contraste com vários governos latino-americanos, o Brasil não reconheceu a vitória do candidato de oposição Edmundo González Urrutia e tampouco denunciou (como o governo de esquerda do Chile) a fraude nas eleições. Junto aos governos esquerdistas de México e Colômbia, o Brasil cobra a apresentação das atas eleitorais antes de se manifestar. Por outro lado, essa atitude tem servido de pretexto para sustentar a indisfarçável simpatia do presidente Lula pelo regime bolivariano. Se não bastassem os contorcionismos de Lula para equiparar as alegações do governo e da oposição sobre um processo eleitoral que ele declarou “normal”, a nota entusiástica do PT – que, como se sabe, não pronuncia uma vírgula sem o aval do chefe – celebrando a “vitória” de Nicolás Maduro menos de 24 horas após o pleito escancara essa simpatia.

Se o pragmatismo é um álibi tão eficaz para a cumplicidade, é porque ele tem uma razão de ser. De fato, o Brasil tem interesses a preservar em relação a Caracas e há o risco de um “banho de sangue” prometido por Maduro. Romper relações, como fez agora o presidente argentino, Javier Milei, e no passado o então presidente Jair Bolsonaro, já se provou contraproducente tanto para esses interesses quanto para a pacificação na Venezuela.

O próprio governo dos EUA não declarou González o presidente eleito e tem promovido negociações sigilosas oferecendo anistia a Maduro e seus correligionários em troca de uma transição do poder. A opção pela diplomacia ao invés da punição é pertinente. A “pressão máxima” através de sanções econômicas se mostrou ineficaz, e o governo de Maduro tem vulnerabilidades que podem ser exploradas para uma solução de compromisso.

Todo regime autocrático depende de dois pilares para se sustentar: alimentar o povo e arregimentar as Forças Armadas. O primeiro pilar desmoronou na Venezuela. No passado, Maduro contou com o tempo e a repressão para esvaziar os protestos civis. Mas hoje a oposição está mais organizada. O governo depende totalmente do apoio dos militares. Na superfície, esse apoio é sólido. Mas há fissuras evidentes.

A lealdade dos militares tem um custo. Sob uma economia em deterioração, é cada vez mais difícil a Maduro financiar a sua rede de corrupção clientelista. As receitas do narcotráfico não bastam. O apoio geopolítico de China e Rússia é inequívoco; já o econômico, nem tanto. A Rússia quer manter os preços do petróleo altos e não tem interesse em colaborar com a Venezuela para impulsionar a oferta global. A China não porá mais dinheiro num país que já lhe deve bilhões. Além do empobrecimento das famílias dos militares, a humilhação ante os oficiais cubanos a serviço de Maduro e as prisões de soldados contribuem para aumentar o ressentimento nos quartéis. A combinação norte-americana de promessas de anistia a dissidentes e ameaças de sanções aos apoiadores do regime é projetada para ampliar essas fissuras.

O Brasil pode pouco neste jogo de forças, mas pode algo, e a hora de pôr em prática – ou não – aquilo que pode se aproxima. Uma vez que as tais atas eleitorais, para a surpresa de ninguém, não serão disponibilizadas (ou, se forem, dificilmente serão críveis), os pretextos de Lula se dissolverão. O Brasil não precisa romper com a Venezuela, mas nem por isso precisa reconhecer a vitória de Maduro.

O povo da Venezuela exprimiu sua vontade nas urnas e a maioria insatisfeita tem dado mostras de coragem e resiliência nas ruas. Está agendada para esta semana uma conversa entre Lula e os presidentes de Colômbia e México com Maduro. Um presidente brasileiro comprometido com os valores democráticos e os direitos dos venezuelanos deveria deixar claro que o Brasil apoiará a suspensão da Venezuela nos foros dos quais faz parte e, eventualmente, sanções dirigidas aos perpetradores da tirania. A questão é se Lula é presidente o suficiente para isso. A retórica do pragmatismo tem-lhe permitido se esquivar da resposta. Mas a hora da verdade está chegando.

Saneamento a passo de tartaruga

O Estado de S. Paulo

Adiar prazo de universalização para fornecimento de água potável e coleta e tratamento de esgotos por meio de mudanças no marco do saneamento não bastará para cumprir objetivos

Um país que conseguiu universalizar o acesso à energia elétrica e às telecomunicações deveria considerar vergonhoso não ter conseguido atingir essa marca elementar no saneamento básico. O Brasil, no entanto, se acostumou a uma realidade que expõe como poucas o tamanho de suas desigualdades, o preço de suas escolhas e o longo e acidentado caminho que ainda terá de percorrer para superá-las.

Embora tenha voltado a fazer parte das dez maiores economias do mundo, o Brasil ocupa o 81.º lugar entre 135 países com maior acesso da população à rede de esgoto e a 62.ª posição no ranking de acesso à água. Os dados são de um estudo do Banco Mundial, segundo reportagem publicada pelo Estadão.

A comparação internacional é útil para ilustrar uma situação que o País já conhece muito bem. Dados oficiais apontam que cerca de 15% da população brasileira não tem acesso à água e metade não conta com rede de esgoto, e do esgoto recolhido, quase 50% não recebem tratamento adequado.

Ao incentivar a entrada da iniciativa privada em um setor dominado por estatais, a aprovação do marco do saneamento pelo Congresso, em 2020, deu esperança de que essa mazela enfim seria enfrentada. Pela lei, até o fim de 2033, 99% da população terá de ser atendida com água potável e 90% deverá ter coleta e tratamento de esgoto. As metas teriam de ser incorporadas a todo contrato, e as empresas teriam de comprovar que têm condições econômico-financeiras de atingi-las no prazo estipulado.

Quatro anos depois, os investimentos aumentaram bastante, mas não o suficiente para alcançar as metas até 2033. Enquanto empresas como a Sabesp, que acaba de passar por um processo de privatização, prevê antecipar esse prazo para 2029 nos municípios paulistas, executivos do setor já consideram inevitável esticar esse prazo até 2040, pelo menos.

Segundo a Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), o investimento médio em 2022 e 2023 foi de R$ 24,6 bilhões ao ano, quando o necessário era de R$ 74,4 bilhões anuais, ou R$ 893 bilhões até 2033. Nesse ritmo, as metas de universalização só seriam atingidas em 2057.

Já a GO Associados, em estudo contratado pelo Instituto Trata Brasil, estimou os investimentos anuais médios em R$ 20,9 bilhões entre 2018 e 2022, enquanto o mínimo era de R$ 46,3 bilhões para alcançar a marca de R$ 509 bilhões até 2033. A continuar nessa toada, a universalização dos serviços se concretizaria apenas em 2046, no melhor dos cenários.

Não que descumprir prazos fixados em lei seja algo inédito. Se a Política Nacional de Resíduos Sólidos tivesse sido seguida à risca, o País não teria mais lixões ativos desde 2014. O cronograma foi estendido a 2021, para capitais e regiões metropolitanas, e a 2024, para municípios de pequeno porte, mas ainda há 3 mil lixões espalhados por todo o País. Apenas 40% do lixo gerado tem destinação adequada, segundo a Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema).

Investimentos em saneamento têm uma agravante. Como explicou o consultor Gesner Oliveira, há um hiato temporal entre a decisão de investimento e os reflexos na operação, superior aos quatro anos que se passaram desde a aprovação do marco.

Essa demora os torna pouco atraentes para gestores interessados em colher louros políticos a cada eleição. Além disso, o setor requer aportes elevados, quase sempre superiores às capacidades das estatais estaduais. Para a iniciativa privada, no entanto, trata-se de um ativo interessante, especialmente para quem busca retornos de médio e longo prazos, como fundos de investimento estrangeiros.

É preciso preservar o marco, insistir na capacitação dos municípios e auxiliá-los a elaborar contratos de concessão e a realizar licitações. Adiar prazos de universalização por meio de mudanças na legislação não bastará para que os objetivos sejam cumpridos. Foi assim – sem um compromisso temporal claro para a universalização – que a cobertura de saneamento avançou a passos de tartaruga perante a de outros serviços públicos.

Inflação no teto

O Estado de S. Paulo

IPCA acumulado no ano bate no teto da meta e Galípolo admite que cenário é desconfortável

A inflação acumulada em 12 meses bateu em julho o teto da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional (3%, com margem de 1,5 ponto porcentual para cima ou para baixo), como mostrou o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Apesar de representar mais um grau de pressão sobre a política de juros, o mercado continua apostando na manutenção da taxa básica em 10,5% no fim do ano, como mostrou o relatório Focus, que reúne projeções de 140 instituições financeiras.

Boa parte da contenção das expectativas pode ser creditada às declarações recentes do diretor do Banco Central (BC) Gabriel Galípolo, apontado como a provável indicação de Lula da Silva para suceder a Roberto Campos Neto na presidência do BC. Ao falar publicamente sobre a ata da reunião de julho do Comitê de Política Monetária (Copom), que manteve a taxa de juros em 10,5% ao ano e ampliou perspectivas sobre um novo ciclo de alta, Galípolo adotou um tom duro no discurso para afastar-se do “risco de tombinização” do BC.

Alexandre Tombini, que presidiu o banco entre 2011 e 2016, carregou, como é notório, o estigma de ter facilitado, por meio de operações sistemáticas de intervenção no câmbio (swap cambial), a queda dos juros básicos pretendida pelo governo da então presidente Dilma Rousseff. Galípolo admitiu que o atual cenário é desconfortável para o objetivo de perseguir a meta de inflação de 3% e comparou um diretor do Banco Central que tem medo de subir os juros a um médico que não pode ver sangue.

A boa reação imediata do mercado, que manteve em baixa as projeções para taxas longas dos juros futuros, mostra que surtiram efeito as declarações do “provável futuro” presidente do BC de fazer “o que for necessário” para perseguir a meta. Mas não afasta o risco que ronda a inflação – e, consequentemente os juros – no cenário atual. Tanto que o mesmo relatório Focus elevou de 4,12% para 4,20% a estimativa para o IPCA no fim deste ano, aproximando perigosamente as expectativas do teto da meta inflacionária.

Como fator de abrandamento do risco, o detalhamento do índice de inflação de julho mostrou que a alta de preços não foi generalizada. Alimentos e bebidas, que têm um peso relevante no índice, chegaram a registrar deflação. A alta foi extremamente concentrada em transportes, por causa do aumento da gasolina, que a Petrobras adiou o quanto pôde. Caso a pressão do câmbio e do preço do petróleo acabe por tornar inevitável um reajuste também no diesel, é possível haver espalhamento para os preços dos alimentos em razão do aumento de custos de distribuição dos produtos transportados por caminhões.

De qualquer forma, o recado dado por Galípolo é o de que o BC não agirá de forma diferente a partir do ano que vem por ter a maioria de seus diretores indicada por Lula da Silva. Mas tomou o cuidado de dizer que o presidente da República, como qualquer um, tem o direito de opinar sobre os juros. Com uma no cravo e outra na ferradura, o próximo ciclo do BC sob a gestão petista é uma incógnita. Resta torcer para que a independência técnica apregoada por Galípolo seja para valer.

Meio ambiente é tema de eleição

Correio Braziliense

Em tempos de alternância de poder, como agora, espera-se dos eleitores que considerem as pautas ambientais na escolha de quem decidirá sobre temas climáticos que os afetam diretamente

Políticas públicas baseadas em evidências científicas, "uma boa dose de humildade para dialogar" e o estabelecimento de projetos e parcerias que resistam à sazonalidade política estão entre os caminhos indicados pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, para enfrentar a crise ambiental e posicionar o Brasil em um local de destaque na geopolítica ambiental. Ao Correio, a ministra também garantiu que a fórmula tem efeito atestado — como a queda do desmatamento da Amazônia em 83% durante 10 anos —, mas nem sempre está entre as prioridades de gestores públicos e privados e é ameaçada pelo avanço do negacionismo pelo mundo.

No cenário nacional, Marina elenca como um dos maiores retrocessos a mudança na legislação ambiental durante a gestão de Jair Bolsonaro que flexibilizou a ocupação de áreas de preservação permanente. Os municípios passaram, por exemplo, a poder permitir a construção de edificações mais próximas a rios e encostas — uma configuração que pode potencializar tragédias climáticas como a que acomete o Rio Grande do Sul desde abril e os desabamentos registrados frequentemente em áreas periféricas do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Há, no país, um deficit de cerca de 10 milhões de hectares de área de preservação permanente que depende da mobilização de gestores públicos de todas as esferas para ser sanado. Em tempos de alternância de poder, como agora, espera-se dos eleitores que considerem essa e outras pautas ambientais na escolha de quem decidirá sobre temas climáticos que os afetam diretamente. Gestão eficaz do lixo, controle de construções em áreas verdes e um plano estruturado de resposta a emergências ambientais são alguns dos pontos imprescindíveis em qualquer projeto de governo — incluindo os municipais — que pretenda dialogar com as agendas ambiental e climática.

Mas eles ainda são poucos. Pesquisa da Confederação Nacional de Municípios (CNM) divulgada em março mostra que apenas 22% dos gestores brasileiros consideram que seus municípios estão preparados para enfrentar as mudanças climáticas, e o principal motivo para essa inaptidão é a falta de capacidade técnica e financeira — 68% relatam nunca ter recebido recurso de Estados ou do governo federal para atuar na prevenção à crise ambiental. Outro levantamento recente da CNM indica que, de 5.268 municípios brasileiros, 2.801, o equivalente a 87%, estão em situação considerada alta ou muito alta para a ocorrência de inundações, enchentes e alagamentos. 

Na avaliação da ministra, vivemos uma "verdadeira guerra", que exige das autoridades "sair da lógica da gestão do desastre para a da gestão do risco". Marina Silva cita como um movimento nesse sentido o atual programa de enfrentamento à crise no Pantanal. Baseados em evidências científicas, órgãos federais e locais começaram a se preparar para o período de incêndios deste ano em 2023. Ainda assim, o bioma enfrenta uma crise histórica — o primeiro semestre de 2024 é o pior dos últimos 26 anos.

Outro desafio é a preservação do Cerrado, que, para a ministra, precisa ser impulsionada por uma mudança de legislação. Segundo ela, enquanto a lei estabelece que 80% da Amazônia deve ser preservada e 20%, usada, a porcentagem referente ao Cerrado prega o contrário. O desprotegido bioma, porém, tem força de sobra para pautar os próximos debates eleitorais: ocupa 25% do território brasileiro e concentra as nascentes que alimentam oito das 12 regiões hidrográficas do país.

 

 

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