domingo, 25 de agosto de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Moderação no Parlamento

Correio Braziliense

Em um intervalo de duas semanas, o Legislativo impôs uma sequência de movimentos que suscitam questionamentos sobre o papel dos parlamentares na defesa do interesse público

Causam preocupação as recentes medidas tomadas por integrantes do Congresso Nacional. Em um intervalo de duas semanas, o Legislativo impôs uma sequência de movimentos que suscitam questionamentos sobre o papel dos parlamentares na defesa do interesse público.

Tome-se como exemplo o caso das emendas parlamentares. Em resposta às decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino de suspender a tramitação das proposições enquanto não fossem observados os princípios constitucionais de transparência e rastreabilidade de recursos públicos, retiraram-se da gaveta projetos de lei que buscam cercear o Poder Judiciário. Uma das iniciativas pretende anular os efeitos de decisões monocráticas do STF — quando o próprio tribunal já impôs, em resolução interna, limites a esse expediente. Acrescente-se que o entendimento de Dino sobre as emendas parlamentares não é mais monocrático: foi referendado por unanimidade pela Suprema Corte. O posicionamento do Judiciário sobre o tema, pois, passou a ser em nível colegiado, não havendo mais razão para questionamento. 

O outro projeto aventado no Parlamento em retaliação à postura do STF é um claro disparate. Delega ao Legislativo o poder de derrubar decisões colegiadas da mais alta Corte de Justiça. De tão absurdo, não merece maiores considerações. 

Outros movimentos revelaram à opinião pública o espírito que tem movido deputados e senadores. O mais notório é a flexibilização da Lei da Ficha Limpa. Em votação simbólica, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou projeto de lei que reduz o prazo de inelegibilidade de políticos condenados. A estratégia é clara: amenizar a punição de afastamento da vida pública o máximo possível. Assim, políticos com pesadas condenações por crimes como corrupção — algumas na casa de 10 anos ou mais de pena — ficariam impedidos de concorrer a cargos públicos por apenas duas eleições.   

O terceiro exemplo que desabona a conduta dos parlamentares pode ser considerado como fato consumado. Na última quinta-feira, o Senado promulgou a lei conhecida como PEC da Anistia. Além de perdoar de forma generosa partidos políticos que descumpriram a legislação eleitoral, reduz a destinação de recursos do Fundo Eleitoral para candidaturas negras — em um país em que os negros formam a maioria da população, mas são exceção nos espaços de poder. 

Espera-se que os integrantes do Parlamento com espírito público — e há muitos, sem dúvida — atuem para evitar os excessos que têm sido vistos nas últimas semanas. Deputados e senadores têm reivindicações legítimas — como a prerrogativa de apresentar emendas ao Orçamento —, mas deveriam buscar o aperfeiçoamento do trâmite legislativo em vez de partir para retaliações a outros Poderes. Do mesmo modo, é óbvio que matéria legislativa precisa ser aprovada levando-se em conta a opinião pública. Afinal, é o dinheiro do contribuinte que sustenta institutos como o bilionário Fundo Eleitoral e o salário e vantagens dos parlamentares. 

Mais responsabilidade, mais comedimento. Essa deve ser a conduta recomendável para o Congresso Nacional no trato das questões públicas, bem como na relação com os Poderes da República.

Envelhecimento da população pede mais do governo

O Globo

Haverá menos gente no Brasil a partir de 2042, segundo IBGE. É preciso preparar o país para nova demografia

Não há surpresa no envelhecimento da população brasileira. O relógio da demografia acelerou, e a proporção de idosos crescerá mais do que se previa. Isso exigirá mais urgência do governo na implementação de políticas públicas adequadas. Os principais desafios são dois: preparar os jovens da melhor maneira possível enquanto a população envelhece; oferecer oportunidades e apoio aos mais velhos.

As projeções mais recentes do IBGE, as primeiras com base no Censo de 2022, preveem que daqui a 18 anos — em 2042 — a população brasileira começará a cair (pela estimativa anterior, ela diminuiria só a partir de 2048). “Após a pandemia, a trajetória foi de queda [no crescimento]. E num ritmo cada vez maior”, diz Marcio Minamiguchi, gerente de Projeções e Estimativas Populacionais do IBGE. Por trás do movimento demográfico está a fecundidade menor. Em 2000, nasceram 3,6 milhões. Em 2022, 1 milhão a menos. Projeta-se apenas 1,5 milhão de nascimentos em 2070. A população também envelhecerá mais rápido. De 2000 a 2023, a proporção de idosos quase dobrou, de 8,7% para 15,6%. Hoje, a maior parcela da população (26,2%) está na faixa de 40 a 59 anos. Os idosos serão preponderantes em 2042 e chegarão a quase 40% em 2070.

O Brasil tem o custo adicional de ter deixado passar o ciclo em que a população economicamente ativa, entre 15 e 64 anos, aumenta sua participação no total, conhecido entre demógrafos como “bônus demográfico”. É um período que favorece o crescimento econômico apenas pela entrada de mais gente na força de trabalho. Essa participação começou a cair em 2018 (ou 2017 se considerada a faixa de 15 a 59 anos) e, a partir de 2030, a população ativa começará a diminuir. Será preciso encontrar meios de gerar mais riqueza com menos gente trabalhando. O nome que os economistas dão a isso é produtividade. Sem aumentá-la, o empobrecimento será consequência inevitável da nova realidade demográfica.

Não há país desenvolvido que não tenha aproveitado o bônus demográfico para aumentar a capacidade de inovação e a produtividade. A má notícia para o Brasil é que o tempo está passando, e o país ainda não resolveu problemas já superados noutros países que souberam se beneficiar ao máximo da entrada de jovens na força de trabalho. Os desníveis de renda e bolsões de pobreza são as marcas visíveis de distorções que persistem. Já está certo que o Brasil ficará velho antes de ficar rico.

É verdade que o envelhecimento também traz oportunidades. Um caminho é criar atividades em que os idosos também possam gerar riqueza. “Os pessimistas encaram a população da terceira idade como passivo e ‘peso morto’ para a economia”, escreveu em artigo no GLOBO o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves. “Mas o fim do primeiro bônus demográfico não é o fim do mundo, pois ainda temos o segundo bônus demográfico — bônus da produtividade — e o terceiro bônus demográfico — ou bônus da longevidade e da geração prateada.”

Seja como for, o impacto nas políticas públicas tem de ser avaliado desde já. Investimentos em saúde precisarão dar mais peso a idosos e à população de meia-idade. Cidades e transporte público deverão se adaptar à nova demografia. Sobretudo na educação, principal alavanca da produtividade, ainda há muito a fazer. O tempo, demonstram os números, não dará trégua.

Senado prestará desserviço ao país se relaxar controle de armas

O Globo

Decreto legislativo que revoga restrições impostas no início do governo Lula precisa ser derrubado

Os decretos baixados logo depois da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva restringindo compra, posse e porte de armas e munições foram medidas importantes para conter o “liberou geral” promovido durante o governo Jair Bolsonaro. Por isso são preocupantes as iniciativas do Congresso que visam a afrouxar tais restrições.

A despeito das tragédias diárias provocadas por armas de fogo no país, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 206/2024, que revoga itens importantes da atual política antiarmas, avança com celeridade no Congresso. Na semana passada os senadores aprovaram regime de urgência para tramitação do projeto, que deverá ser votado nos próximos dias sem a ampla e necessária discussão com a sociedade. A proposta já havia sido aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.

Um dos pontos mais controversos é a liberação para que clubes de tiro se instalem perto de escolas (a legislação em vigor diz que eles precisam ficar a pelo menos 1 quilômetro). O texto também permite que armas sejam usadas em atividades distintas das declaradas na compra; facilita a comercialização de armas automáticas e semiautomáticas restritas às forças de segurança; revoga a restrição à aquisição de armas de pressão por gás comprimido; acaba com a competência do Iphan para classificar e regular armas de colecionadores; e reduz o treinamento para atiradores.

Um dos argumentos dos defensores da medida é que as restrições impostas pelo atual governo inviabilizam as atividades dos atiradores desportivos, uma vez que muitos clubes já estão instalados nas imediações de escolas. Mas não é a lei que tem de se adaptar aos atiradores, e sim o contrário.

No governo Bolsonaro, imperou a estratégia equivocada de facilitar o acesso a armas e munições, sob o argumento falacioso de que a população precisava se defender. Sabe-se que a crise na segurança é um problema grave, mas ela só será resolvida com políticas sérias e consistentes envolvendo estados e União. Armar os cidadãos não é política de segurança. Em algum momento, a medida se volta contra a população, uma vez que boa parte das armas acaba desviada para o crime organizado.

O “revogaço” dos decretos de Bolsonaro e a fixação de novas normas foram medidas acertadas para conter o excesso de armas em circulação. No primeiro ano de vigência das restrições, os novos registros caíram quase 80%. Mas ainda há muito a fazer para reduzir o arsenal em mãos da população. Um recadastramento do Ministério da Justiça apontou quase 1 milhão de armas. Elas estão por aí, se prestando a assassinatos e outras tragédias. Revogar restrições em vigor para atender a interesses de setores armamentistas é um desserviço ao país. Esperava-se do governo um papel mais ativo contra esse desmonte. O Senado deveria impedir esse absurdo. A preocupação deveria ser avançar, não retroceder.

Privatizar Petrobras, Caixa e Banco do Brasil

Folha de S. Paulo

Trio de gigantes deve ser o próximo tabu a ser derrubado no bem-sucedido programa brasileiro de desestatização

Conduzido ao longo de mais de três décadas por governos democraticamente eleitos, o programa brasileiro de privatizações derrubou sucessivamente tabus, preconceitos e teses catastrofistas.

Na década perdida de 1980, quando o país se viu impelido a reformar o Estado empresário ineficiente e concentrador de renda, parecia impensável a venda de companhias portentosas como a Embraer e a Vale; dos setores de telefonia e energia elétrica; da vasta e deficitária rede de bancos estaduais.

Tudo isso foi feito —e com grande sucesso. O inconcebível hoje é que tais atividades e serviços públicos já tenham estado à mercê da ineficiência da gestão pública e das conveniências políticas dos governos de turno, em vez de regulados por agências autônomas e pela concorrência.

Mesmo administrações à esquerda, que mantêm oposição ideológica e corporativista à alienação de empresas, reconheceram as vantagens da concessão de estradas, ferrovias, portos e aeroportos. Promessas de reestatização, ademais, foram esquecidas.

Também resistências na sociedade vão sendo dissipadas. O Datafolha mostrou, no ano passado, que as opiniões favoráveis a privatizações já realizadas ou em curso —da telefonia ao saneamento, de rodovias e aeroportos à energia— superam as contrárias.

Espanta que remanesçam sob controle direto ou indireto do Tesouro Nacional nada menos que 123 empresas, entre as quais é difícil citar um exemplo além da Embrapa, de pesquisa agropecuária, em que o interesse público possa justificar tal condição.

Nesse conglomerado anacrônico, apenas três gigantes —PetrobrasBanco do Brasil e Caixa Econômica Federal— reúnem em torno de si 75 subsidiárias no Brasil e no exterior. Quase dois terços, portanto, do universo das estatais federais.

Esse aparato é custosamente mantido sob o comando do Estado, sobretudo, por interesses políticos e sindicais. Invocam-se pretextos nacionalistas e estratégicos para preservar o poder de lotear cargos, distribuir favores e bancar projetos de retorno duvidoso, para nem falar em lisura.

Petrobras e Caixa, especialmente, são assíduas no noticiário sobre aparelhamento e má gestão. Ajustes legislativos nos últimos anos trouxeram melhora da governança, sim, mas continuam sob assédio das forças reacionárias e intervencionistas à esquerda e à direita, sujeitos a retrocessos.

O caminho a seguir é a privatização criteriosa, com modelos que incentivem a competição e regulação que salvaguarde os interesses dos consumidores. Há um trabalho de convencimento a fazer e um longo processo de conhecimento a ser aproveitado.

Mudança climática envia sinal de fumaça

Folha de S. Paulo

Seca, fogo e fuligem espalhados pelo país são recado a governos, que precisam instituir planos de prevenção e contenção

Oscilações climáticas drásticas entre secas e inundações são sinais do aquecimento global. No Brasil, a natureza agora envia sinais de fumaça. O fogo na amazônia e no pantanal produz nuvens de fuligem que chegam até Santa Catarina; chamas no interior de São Paulo encobrem o céu do estado.

O período do inverno é de fato mais seco, propício a queimadas, mas os eventos registrados até o momento situam-se fora da curva.

Desde 2010, a amazônia vive estiagens mais fortes e prolongadas. Em 2023, o Rio Negro atingiu o menor nível em 120 anos, e a fumaça tomou conta de cidades da região.

Neste ano, com a mudança climática aliada ao El Niño, a seca no geral mais intensa no segundo semestre foi antecipada, o que aumentou os focos de calor já na primeira metade do ano.

Entre 1º de janeiro a 26 de julho, o bioma teve 21.221 desses eventos, ante 12.114 no mesmo período de 2005 — até então, ano com o maior número nas últimas duas décadas. A alta é de 75%.

Com menos umidade e temperaturas em elevação, a vegetação resseca mais rápido e de modo mais intenso, produzindo enorme quantidade de matéria orgânica inflamável. É por isso que, em 2023 e neste ano, pesquisas revelam mudanças no padrão das queimadas.

Agora, o fogo não está ligado apenas ao desmatamento produzido pela agropecuária, mas atinge também florestas primárias —as que ainda não sofreram mudanças por atividade humana.

Essa combinação letal de estiagem com altas temperaturas possivelmente está por trás dos incêndios e da fumaça que atingem dezenas de cidades em São Paulo.

De 1º de janeiro a 23 de agosto, o estado teve 4.973 focos, sendo que quase metade (2.316) deles foram registrados em 48 horas, entre quinta (22) e sexta (23). É a maior quantidade para o período desde o início da série histórica, em 1998.

Na capital, o céu também se avermelhou por causa da fumaça que migrou dos incêndios na amazônia e no pantanal, pelos chamados rios voadores, para o Sul e Sudeste do país. Do Acre ao Rio Grande do Sul, dez estados foram afetados.

O recado para o poder público é claro: deve-se incrementar o monitoramento ambiental, com diagnósticos que permitam algum grau de previsibilidade de fenômenos extremos, fiscalizar e punir com rigor atividades ilegais que abalam ecossistemas e, principalmente, instituir planos integrados de adaptação, prevenção e contenção para emergências climáticas.

O desafio de Kamala

Folha de S. Paulo

Democrata tenta fugir de estereótipo para disputa acirrada contra Trump nos EUA

Há dois meses, a eleição americana mostrava-se como um espetáculo moroso no qual Donald Trump, ex-presidente que busca voltar à Casa Branca, venceria por pontos.

De lá para cá, o atual mandatário Joe Biden abandonou a disputa —algo inaudito desde 1968— e o republicano foi alvo de um atentado frustrado. Ungido como mártir, sua vitória parecia ainda mais certa.

O democrata rapidamente apoiou sua vice, Kamala Harris, que conseguiu recompor a campanha situacionista de forma tão eficaz que hoje larga em vantagem na etapa final da corrida.

Kamala acordou candidata na sexta (23) tendo meros 75 dias até a eleição. Na véspera, havia coroado uma bem urdida convenção democrata com um discurso que, se não chegou ao brilho de oradores como Michelle Obama ou a apresentadora Oprah Winfrey, mostrou uma postulante competitiva.

Um dos motivos da derrota de Hillary Clinton para Trump em 2016 foi a aposta da então primeira candidata mulher ao cargo máximo nos EUA em seu gênero. A tal América profunda sequestrada pelo trumpismo associa qualquer identitarismo a elitismo e privilégio.

Oito anos depois, em um país no qual famílias multirraciais são grupo demográfico em expansão e a representação feminina está em alta, Kamala fez um jogo balanceado.

Deixou para outros evidenciarem seu lugar de negra, de origem asiática. Em sua fala, explorou a ideia de que ela, não o arestoso rival, representa a defesa de liberdades individuais e oportunidades promovidas pela mitologia americana.

Com isso, buscou vacinar-se contra rejeições a seu esquerdismo. Além das dificuldades que terá no tema da imigração, uma de suas parcas responsabilidades como vice, a visão crítica de Israel e principalmente teses intervencionistas na economia trarão questionamentos a sua campanha.

A vice abraçou o dissenso ao trazer como seu vice o desconhecido governador Tim Walz. Um achado de comunicação, ele abraça o progressismo enquanto maneja rifles, dando credibilidade à imagem de uma chapa "gente como a gente".

Por fim, Kamala virou o jogo do debate etarista ao substituir Biden, 81. Tem 59 anos de idade, 18 a menos do que Donald Trump.

Com tudo isso, a democrata fechou julho arrecadando quatro vezes mais do que o rival, um sinal vital de suas chances, e o ultrapassou levemente nas pesquisas nacionais. Nos campos de batalha estaduais, está em vantagem técnica, o que sugere o olho mecânico como juiz final de uma disputa agora de fato empolgante.

É urgente dar fim à farra das ‘bets’

O Estado de S. Paulo

Onipresentes e de fácil acesso, casas de apostas online viciam e arruínam famílias. Por isso devem ter o mesmo tratamento que cigarros e bebidas: proibição de publicidade e alta taxação

O poder público brasileiro fez uma aposta de alto risco. Por décadas os cassinos foram proibidos e os jogos de azar eram restritos a um punhado de apostas semanais nas loterias públicas. Agora, os brasileiros têm literalmente na palma da mão uma infinidade de cassinos acessíveis em qualquer lugar, a qualquer minuto. Para piorar, são bombardeados por um arsenal publicitário multibilionário que recruta de celebridades a clubes de futebol para vender ilusões de ganho fácil.

Ao legalizar as apostas online, o poder público replicou o padrão do jogador: com os olhos vidrados nos ganhos arrecadatórios, fez ouvidos de mercador aos conhecidos riscos da jogatina – do vício à lavagem de dinheiro, passando pela ruína financeira de famílias, fraudes e absenteísmo no trabalho, violência doméstica e prejuízos no varejo. Nas leis e regulações aprovadas, praticamente não há previsão de salvaguardas contra esses danos.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que até 5,8% da população pode preencher os critérios para o diagnóstico de ludopatia, a compulsão pelo jogo, e a porcentagem de pessoas impactadas pela prática é pelo menos três vezes maior. Jogos online agravam o problema. Algoritmos inteligentes monitoram comportamentos dos grupos de risco (tipicamente homens jovens de classe média baixa) para turbinar estímulos às apostas e reforçar a compulsão. São comprovadas, por sinal, as associações entre o vício no jogo e o abuso de álcool ou drogas, que se reforçam mutuamente numa espiral de degradação. Uma pesquisa na Austrália estimou 2% dos suicídios associados ao jogo.

O Brasil já é o terceiro maior mercado de apostas online do mundo. Segundo a consultoria PwC, elas movimentaram em 2023 entre R$ 67,1 bilhões e R$ 97,6 bilhões, quase 1% do PIB, e neste ano devem chegar a R$ 130 bilhões. A Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo constatou que a renda de dois em três apostadores foi comprometida. Segundo o Banco Itaú, os jogadores perderam R$ 23,9 bilhões para as casas de apostas – muitas delas sem sede no País, à margem da arrecadação. Pelos cálculos da PwC, as apostas devoraram 1,38% do orçamento das classes D e E; o Santander estimou em 2,7%. Ambas as análises, ainda que sem cifras precisas, dão por certo o prejuízo a outros setores da economia.

Há inúmeras pesquisas sobre políticas e intervenções eficazes para prevenir riscos e reduzir danos, como, por exemplo, mecanismos de checagem de solvência ou restrições ao acesso, aos gastos e ao emprego de crédito pelos usuários dos aplicativos. Regras de programação podem limitar a exposição dos jogadores a tecnologias desenhadas para excitar emoções autodestrutivas. Para os casos patológicos, os sistemas de saúde podem ser estruturados para promover intervenções psicossociais e farmacológicas, assim como o ordenamento jurídico pode prever intervenções de parentes para impedir a destruição do patrimônio familiar. Mas o poder público permitiu que os bolsos dos brasileiros fossem inundados por máquinas de torrar dinheiro, sem qualquer coordenação para traduzir medidas como essas em políticas públicas.

Uma delas deveria ser incontroversa, mesmo para quem, em nome da liberdade individual, defende a liberação dos jogos. A Constituição impõe restrições à publicidade de produtos que podem ser nocivos à saúde, como medicamentos ou álcool. No caso do tabaco, são acertadamente draconianas. Com muito mais razão, a publicidade dos jogos de azar deveria ser 100% banida.

Políticas de redução de danos deveriam ser em larga medida custeadas por quem os causa. Mas, para piorar, o poder público abriu a caixa de Pandora a troco de banana. O “imposto sobre o pecado” desperta surtos de piedade em governantes, que taxam como pecaminoso todo tipo de produto. Mas enquanto a tributação da gasolina chega a 60% e a da telefonia a 40%, a das casas de apostas ficou em irrisórios 12%.

Os neurônios de milhões de brasileiros não têm defesas contra a voracidade dos algoritmos de apostas. O SUS não está preparado para aguentar essa pressão. As famílias não estão preparadas. Só quem está preparado são os agiotas, que estão esfregando as mãos.

A tragédia de uma geração

O Estado de S. Paulo

Bem-estar material dos jovens é maior que o dos antepassados. Mas epidemia de distúrbios mentais impõe à nossa geração uma ação coletiva para melhorar seu repertório socioemocional

Algo terrível aconteceu com nossas crianças e adolescentes. Segundo levantamento do Estadão, no Brasil as internações de jovens de 13 a 29 anos por estresse e ansiedade aumentaram 139% em 10 anos. É um fenômeno encontradiço no Ocidente. O senso comum, corroborado por pesquisas, é o de que os índices de felicidade são tradicionalmente maiores entre os jovens, declinam na idade adulta e se recuperam na velhice. Mas, segundo o Relatório da Felicidade Mundial, desde 2010 a percepção de felicidade entre os jovens caiu drasticamente, a um patamar menor que o dos idosos. Os jovens socializam menos, dizem-se mais solitários, namoram menos, ficam mais tempo na casa dos pais, começam a trabalhar mais tarde e têm menos interesse em ter filhos que as gerações anteriores. O desempenho no Pisa, o teste global de educação, declinou.

É preciso cautela contra catastrofismos. As aflições dos jovens já são dramáticas o suficiente para serem exageradas por generalizações simplistas. Há aspectos positivos. Especialmente nas classes e países ricos, a delinquência juvenil, o abuso de drogas ou álcool e a gravidez precoce diminuíram. Nas últimas gerações, a qualidade de vida melhorou massivamente, especialmente nos países pobres. Miséria, analfabetismo, mortes infantis ou maternas caíram mais acentuadamente que em qualquer época da história da humanidade. A renda e o salário inicial dos jovens é maior que os de seus pais e avós.

Mas esse lado luminoso só torna o lado obscuro mais tenebroso, e o paradoxo, mais perturbador: por que a juventude materialmente mais privilegiada, mais escolarizada, com mais acesso à informação e que mais consome serviços de saúde mental na história está tão deprimida e ansiosa?

Há a herança dos antepassados. A elevação do bem-estar parece ter sido acompanhada por uma degradação do capital social, das comunidades locais e da confiança cívica. A combinação de desestruturação dos núcleos familiares e polarizações tóxicas na esfera pública intensificam fenômenos antagônicos, como o individualismo e o tribalismo, a apatia e o fanatismo.

As ansiedades dos pais com os riscos e a competitividade do mundo acentuaram uma cultura protecionista. Passando mais tempo sozinhos ou em atividades formativas, e menos em brincadeiras e jogos ao ar livre entre si, as crianças têm menos oportunidades de desenvolver habilidades socioemocionais como tolerância à adversidade, apetite a riscos e resolução de conflitos.

Tecnologias digitais agravam o problema. Videogames e redes sociais são programados para viciar. Num momento de intensas transformações físicas, cerebrais e hormonais, os adolescentes, especialmente sensíveis a comparações e intimidações sociais, interagem menos face a face, e são estimulados a competições performáticas por popularidade nas mídias digitais.

O psicólogo social Jonathan Haidt, autor de A Geração Ansiosa, um dos livros mais bem informados sobre a crise dos jovens, resumiu: “Acabamos hiperprotegendo as crianças no mundo real enquanto as subprotegemos no mundo virtual”. A psiquê humana, diz Haidt, possui um mecanismo adaptativo, como um termostato, que pode ativar o “modo descoberta” ou o “modo defesa” conforme a situação. É como se os termostatos da Geração Z tivessem sido alterados para o “modo defesa”. Nos campi, jovens hipersensíveis a “microagressões” equiparam palavras a “violência” e exigem “espaços seguros”. Nosso mundo é objetivamente mais rico e menos violento que o dos nossos pais, mas para nossos filhos é subjetivamente mais ameaçador. Além dos transtornos mentais, há outros danos, como atenção fragmentada, evasão social e perda de sentido.

Pode ser difícil para uma família individual restringir o acesso de crianças e adolescentes ao mundo virtual, e oferecer mais autonomia, atividades livres e responsabilidades no mundo real, mas será muito mais fácil se famílias, escolas e comunidades se coordenarem e agirem em conjunto. Muitos jovens estão presos em armadilhas coletivas que só ações coletivas podem desarmar. O futuro depende, literalmente, dessa cooperação.

PAC parado, a marca de Lula

O Estado de S. Paulo

Petista relançou programa para ter uma bandeira, mas boa parte dos projetos está no papel

O presidente Lula da Silva não esconde a sua ansiedade. Sem ter ainda uma marca para seu terceiro mandato à frente do Palácio do Planalto, o petista recorreu a antigas bandeiras na tentativa de apresentar algo à população brasileira, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e passou a fazer cobranças por entregas. A depender do andamento de sua principal vitrine, esse sentimento evoluirá para decepção.

Levantamento feito pelo Estadão/Broadcast sobre o ritmo das obras com base em dados da Casa Civil revela que há mesmo motivos de preocupação para Lula. O órgão, sob comando de seu homem forte, Rui Costa, ainda patina na condução do programa, que, vale lembrar, foi marcado no passado por atrasos, cancelamentos e suspensão de obras.

A história parece se repetir nessa empreitada de eleger o Estado como principal indutor do desenvolvimento econômico, como defende o ideário petista. E, mais uma vez, a inépcia na gestão trava o avanço de iniciativas listadas pelo próprio governo como prioritárias. Dos 11.656 projetos previstos quando do relançamento do PAC, há um ano, 5.666 ainda estão em “ação preparatória”. Em outras palavras, não saíram do papel.

Os números podem ser ainda piores. As ações divulgadas chegam a computar como “em execução” obras paradas. Dentre elas, foram localizados uma ponte sobre o Rio Juruá, no Acre, e os acessos a uma ponte sobre o Rio Guaíba, no Rio Grande do Sul. Se não há uma maquiagem, há, no mínimo, confusão na compilação dos dados.

No dia 11 de agosto de 2023, Lula afirmara que o programa recauchutado marcava o início de seu governo. Se isso é verdade, pode-se dizer que o governo Lula ainda não começou. E o petista parece saber disso. Em junho deste ano, queixando-se da burocracia, cobrou mais velocidade: “O mandato é só de quatro anos, daqui a pouco a gente termina o mandato e não consegue executar”.

Não se trata, porém, apenas de burocracia. O PAC de Lula promete muito, mas pode entregar muito pouco. Seria R$ 1,7 trilhão até 2026, com parte dos recursos oriunda do Orçamento, das estatais, de financiamentos e de desembolsos do setor privado.

Ocorre que os recursos da União estão cada vez mais comprimidos por gastos obrigatórios criados pelo próprio governo, como o aumento real do salário mínimo e a insistência em manter a vinculação com benefícios sociais. Além disso, as emendas parlamentares, hoje motivo de disputa entre Congresso, Planalto e Supremo Tribunal Federal, avançaram a ponto de quase se igualarem aos investimentos.

Agora, busca-se alguma racionalidade para as emendas após o STF cobrar transparência e suspender os pagamentos. O governo tende a se beneficiar e quer esses recursos no PAC. Mesmo assim, não parece ser suficiente para fazer do PAC o desejado símbolo das virtudes do governo Lula. Quando muito, será o símbolo da incapacidade de Lula e do PT de transformar em realidade as promessas megalomaníacas que costumam fazer.

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