Legislação continua a abrir brechas para privilégios
O Globo
Decisão judicial que restaurou benesse
descabida a servidores do TCU revela urgência da reforma administrativa
Uma ação na Justiça vencida por servidores do
Tribunal de Contas da União (TCU)
mostra a dificuldade para haver uma gestão sensata e equilibrada do
funcionalismo público com a atual legislação. Num processo instaurado pelo
Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo Federal e do Tribunal de Contas
da União (Sindilegis), a Justiça Federal de Brasília lhes concedeu o direito a
voltar a receber uma compensação descabida que havia sido extinta: o “quinto”,
compensação paga a cada ano do exercício de cargo de chefia.
No universo paralelo do funcionalismo, parece sempre possível usar uma legislação extensa e confusa para obter vantagens nos tribunais, sem qualquer preocupação com a qualidade do trabalho do servidor ou com a saúde das finanças públicas. A Justiça também determinou que sejam pagos, retroativamente, os “quintos” entre 1998 e 2001, devidamente corrigidos pela inflação. Os primeiros servidores do Tribunal de Contas da União (TCU), incluindo aposentados e pensionistas, já começaram a receber adicionais atrasados que poderão representar um gasto imprevisto de R$ 1,1 bilhão.
A Advocacia-Geral da União (AGU) foi vencida
na Justiça Federal de Brasília, mesmo lembrando que, em 2015, o Supremo
Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional o pagamento do adicional no
período de 1998 a 2001.
Em 2019, a Corte permitiu apenas o pagamento
àqueles cujo processo já fora julgado definitivamente. Não houve revisão da
sentença de 2015. Ainda assim, 500 servidores do TCU receberam, na semana
passada, a primeira parcela do adicional devidamente corrigida, e o próprio
Sindilegis estima que outros 500 também receberão.
Respaldados por um emaranhado de leis e
normas, sindicatos de servidores públicos federais e escritórios de advocacia
se especializaram em tentar obter alguma vantagem retroativa na Justiça. O site
do Sindilegis comprova que a principal função do sindicato, fora ações
assistenciais, é formular estratégias para obter indenizações judiciais e
adicionais não pagos a seus afiliados. Os argumentos costumam ser leis
aprovadas no Congresso Nacional, sob forte pressão do funcionalismo.
Outra ação na Justiça Federal de Brasília
exige que a União mantenha no pagamento a aposentados e pensionistas do Senado
um adicional recebido por assumir funções de “direção, chefia, assessoramento,
assistência ou cargo em comissão”, por cinco anos seguidos ou dez intercalados.
Em vez dos “quintos”, os servidores do Senado almejam nos tribunais a “Vantagem
Opção 481”, referência à decisão do TCU que mudou em 1997 o critério para
incorporar adicionais ao salário de servidores. Como sempre, o objetivo é obter
vantagens e privilégios.
Sem uma reforma administrativa que dê
transparência às carreiras e à gestão do funcionalismo, limite a estabilidade e
condicione promoções ao mérito, continuará funcionando em Brasília, de forma
silenciosa, a máquina de drenar dinheiro do contribuinte para garantir benesses
e privilégios.
É preciso dar início logo às mudanças
aprovadas para o ensino médio
O Globo
Implantação do novo modelo em todo o país
poderá reduzir desigualdade entre as redes pública e privada
Além dos muitos desafios que se impõem na
gestão do ensino médio,
autoridades educacionais precisam enfrentar mais um: o aumento da desigualdade
no desempenho de alunos de escolas públicas e privadas em matemática e ciências
da natureza. A diferença se acentuou no ano passado, durante o Enem, invertendo
a tendência de diminuição que vinha sendo observada desde 2019.
Como mostrou
reportagem do GLOBO com base em dados disponibilizados pela
plataforma SAS Educação, em matemática a nota das escolas públicas caiu de 507
para 503, enquanto nas instituições privadas subiu de 601 para 618. Em ciências
da natureza, baixou de 473 para 472 nas públicas e aumentou de 530 para 541 nas
particulares.
Na avaliação de pesquisadores, entre outros
fatores, a queda pode estar ligada às dificuldades, hesitações e confusões das
redes estaduais para implantar as mudanças no ensino médio aprovadas em 2017.
Parte dos estudantes que se submeteram ao Enem em 2023 conviveu com o novo
modelo.
As mudanças no ensino médio têm muitos
méritos, como a ampliação da carga horária total, a flexibilização dos
currículos (permitindo que alunos escolham áreas de seu interesse), a
valorização do ensino profissionalizante e maior sintonia com o mercado de
trabalho e a realidade dos estudantes. Mas não há dúvida de que a sua
implantação, que chegou a ser suspensa no início do ano passado, foi
conturbada.
Embora a nova lei determinasse que todas as
escolas adotassem as mudanças a partir de 2022, a implantação não foi uniforme.
Já em 2021, o Estado de São Paulo deu início ao novo modelo. Mato Grosso do Sul
e Santa Catarina seguiram caminho parecido, levando o novo ensino médio a parte
de suas redes. Outros o fizeram apenas em escolas-piloto. Além disso, muitas
alterações não foram bem recebidas por alunos e professores, como a carga
horária reduzida para a formação geral básica (comum a todos os estudantes) e o
tempo exagerado para a parte flexível do currículo, o que acabou gerando
distorções. Diante da confusão, muitos alunos de escolas públicas acabaram
tendo menos aulas de matemática e ciências da natureza.
O aumento da desigualdade entre alunos de
estabelecimentos públicos e privados reforça a necessidade de implantar logo o
novo ensino médio, para que todos os estudantes sigam uma mesma diretriz.
Depois de muitas idas e vindas, o projeto aprovado pelo Congresso, que, entre
outros pontos positivos, aumentou o tempo dedicado às disciplinas
obrigatórias, acaba de ser
sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Infelizmente
Lula vetou a inclusão das mudanças no Enem (o exame continuará exigindo apenas
a parte obrigatória do currículo). O governo deveria rever sua posição.
De qualquer forma, é preciso trabalhar com as
secretarias estaduais de Educação para que as mudanças comecem já em 2025.
Quanto mais rápido isso acontecer, mais rápido será o impacto no desempenho dos
alunos e, espera-se, na redução das desigualdades entre instituições públicas e
privadas.
Alívio externo nos juros não basta para o BC
Folha de S. Paulo
Indicação de queda nas taxas dos EUA é
bem-vinda; aqui, gasto do governo e alta do dólar mantêm as pressões sobre
preços
As reuniões dos comitês de política monetária
do americano Federal Reserve e do Banco Central do
Brasil, ambas ocorridas na quarta (31), evidenciaram cenários divergentes para
os juros nos
dois países.
Enquanto nos Estados
Unidos a indicação
clara foi de queda da taxa básica, hoje entre 5,25% e 5,5% ao ano,
aqui o BC ainda se depara com riscos altistas para os preços que dificultam a
redução da Selic, fixada em
elevados 10,5%.
Para o Fed, o cenário
é de convergência da inflação para
a meta de 2%. Embora a taxa acumulada em 12 meses ainda se situe em 2,6%, a
trajetória esperada é de redução nos próximos meses, com plena aderência em
2025.
Ademais, há sinais consistentes de
desaceleração da atividade econômica, que foram reforçados com a divulgação de
menor criação de postos de trabalho e aumento do desemprego em
julho. A desocupação subiu de 4,1% para 4,3%, e os salários já crescem em ritmo
compatível com o controle inflacionário desejado.
Embora seja prematuro considerar um quadro
recessivo, a mecânica normal da política monetária, que leva em conta tanto a
inflação quanto a atividade, recomenda o início de um ciclo de corte de juros
já em setembro —que pode levar o custo do dinheiro no principal centro
financeiro global para cerca de 3% até o final de 2025.
No Brasil, a situação é diversa. De positivo,
há o vigor do mercado de trabalho e da renda. Segundo o IBGE,
o desemprego ficou em 6,9% no trimestre encerrado em junho, a menor taxa desde
2014, e a massa salarial cresceu 6,4% acima da inflação em 12 meses.
Permanece a tendência de alta para a
atividade, e o crescimento do Produto Interno Bruto pode superar 2% neste ano.
Em contrapartida, a inflação se mantém pressionada pela demanda resiliente,
puxada também por excesso de gastos públicos.
Não é por acaso que as expectativas para o
IPCA deste ano e de 2025 têm subido nos últimos meses e se distanciado da meta
de 3%.
A alta do dólar, que passa dos 18% neste 2024
pelo cálculo do BC (a moeda nacional é a de pior desempenho entre emergentes),
encarece produtos importados.
Nas condições brasileiras, o maior
perigo vem da gestão do Orçamento federal pelo governo Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT).
As despesas cresceram 10,6% no primeiro semestre, muito acima do limite de 2,5%
fixado no marco fiscal, e o Planalto continua a mostrar falta de convicção para
lidar com o descontrole evidente.
Com gastos públicos acelerados, dólar em alta
e demanda interna pressionada, o BC terá mais dificuldade para acompanhar a
baixa global dos juros que se inicia.
Amazônia arde
Folha de S. Paulo
Aquecimento global e El Niño antecipam
queimadas, que se espraiam pelo bioma
Nos sete primeiros meses deste ano, a amazônia arde
como não fazia há duas décadas. Agora, com um padrão de incêndios que suscita
redobrada preocupação.
De 1º de janeiro a 26 de julho, monitoramento
do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais indicou
21.221 focos de calor, maior número desde 2005. No mesmo período de
2023, foram 12.114 pontos —o que representa alta de 75%.
Isso apesar de as taxas de desflorestamento
terem recuado 50% em 2023. Já a área queimada aumentou 36%, alcançando 107.572
km², ante 79.007 km² no ano anterior.
Entre os aspectos discrepantes da temporada
de chamas se encontra a multiplicação antecipada de focos de fogo. Até então,
eles proliferavam no segundo semestre, mas, com o intenso fenômeno El Niño, a
seca se alastrou pela região Norte facilitando a queima precoce da densa
vegetação úmida.
Na dinâmica usual de destruição da floresta,
primeiro ocorre o corte raso, que resulta em enorme quantidade de biomassa.
Esta é deixada para secar, sendo depois empilhada para posterior ignição
preparatória da semeadura de pasto.
O que se destacou nos últimos meses, no
entanto, foram incêndios em matas primárias, com 31,7% dos focos registrados,
ante 15,5% em desmates recentes.
A nova situação gera fenômeno relativamente
raro na amazônia: incêndios florestais propriamente ditos, quando as chamas
alcançam as copas das árvores, em vez de se propagarem mais na superfície.
Queimadas rasteiras, entrada de luz com
abertura de estradas e corte seletivo de madeira já vinham secando a floresta. Com
aquecimento global e El Niño, tal ressecamento levanta temor de que
o bioma sofra degradação irreversível, cenário chamado de
"savanização".
Segundo o governo federal, Ibama e
ICMBio contam com 3.000 brigadistas a mais neste ano para combater focos de
incêndio. Ademais, foram repassados R$ 405 milhões a corpos de bombeiros da
região.
Mas a devastação só arrefecerá de fato quando o poder público lograr vitória sobre as queimadas ilegais e a grilagem, que tem na abertura de pastos o primeiro passo para açambarcar terras públicas.
A inútil reprimenda do STF
O Estado de S. Paulo
Supremo finalmente reconhece a evidente
inconstitucionalidade da PEC com a qual Bolsonaro despejou dinheiro público
para tentar ganhar a eleição de 2022, mas decide não punir ninguém
O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu,
ora vejam, que era mesmo inconstitucional a escandalosa emenda constitucional
com a qual o governo de Jair Bolsonaro justificou o maná de dinheiro público
que choveu sobre os eleitores às vésperas da eleição presidencial de 2022.
Por 8 votos a 2, a Corte enfim reconheceu o
teor eleitoreiro da chamada “PEC Kamikaze”. De maneira acintosa, a proposta
fabricou um “estado de emergência” inexistente na Constituição, tendo como base
as consequências da guerra da Rússia contra a Ucrânia – isto é, a “elevação
extraordinária e imprevisível dos preços de petróleo, combustíveis e seus
derivados e dos impactos sociais decorrentes”. Na verdade, a única “emergência”
que havia era a da campanha de Bolsonaro, que patinava num incômodo segundo lugar
nas pesquisas eleitorais, o que rendeu ao texto o sugestivo apelido de “PEC do
Desespero”.
A proposta permitiu um segundo reajuste ao
piso do antigo Auxílio Brasil em menos de um ano, de R$ 400 para R$ 600. Além
disso, incorporou mais de 1,6 milhão de famílias aos 18 milhões que já
integravam o programa social, dobrou o valor do vale-gás, criou benefícios
sociais para ajudar caminhoneiros autônomos e taxistas e zerou a alíquota de
tributos federais sobre gasolina, etanol, gás de cozinha e diesel até o fim
daquele ano.
O pacote eleitoreiro custou nada menos que R$
41,25 bilhões em cinco meses, valores que foram desembolsados à revelia do teto
de gastos, da regra de ouro (dispositivo que proíbe o governo de se endividar
para pagar despesas correntes) e da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Mas o
País vivia tempos tão estranhos que nada disso foi capaz de impedir a aprovação
da proposta por ampla maioria do Congresso, inclusive da oposição, que temia
perder votos caso ousasse cumprir a Constituição.
Somente o então senador José Serra (PSDB-SP)
se posicionou contra o texto. Na Câmara, mais de 400 deputados deram aval à
proposta. Único a orientar voto contrário, o Partido Novo foi o autor da Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) protocolada há dois anos, quatro dias
após a promulgação, e finalmente julgada pelo STF nesta semana.
O relator, ministro André Mendonça, defendia
a perda do objeto da ação, uma vez que os efeitos da medida foram exauridos ao
fim de 2022. Para ele, o Novo não conseguiu provar que a emenda constitucional
violava a regra da anualidade eleitoral, pois a proposta, formalmente, não
alterou a legislação eleitoral a menos de um ano da disputa.
Felizmente, o ministro Gilmar Mendes divergiu
desse entendimento e defendeu o julgamento da matéria. O tema, afinal, não era
a proposta em si mesma, mas o uso abusivo da máquina pública para fins
eleitorais, algo que a emenda constitucional exacerbou, mas que vai muito além
do período durante o qual ela vigorou.
Como destacou o ministro, o fato de que as
bondades se extinguiriam ao fim daquele ano era “explícita ameaça aos
eleitores”, sugestionados a votar em Bolsonaro caso quisessem renová-las por
mais tempo. Como pontuou o ministro Alexandre de Moraes, “ninguém acredita que
esse pacote de bondades não teve impacto eleitoral”.
Ao julgar a ação, o STF reafirmou, ainda que
tardiamente, que o País, afinal, ainda tem uma Constituição que precisa ser
respeitada. A Corte, no entanto, optou por não punir ninguém por tamanha
desfaçatez.
O ministro Flávio Dino sublinhou a “dimensão
profilática” da decisão, que, em sua avaliação, cria um precedente para evitar
que novas propostas tão indecentes quanto a PEC Kamikaze voltem a surgir. “Que
possamos sinalizar que valeu uma vez, e não mais. Senão, nós corremos o risco
de aprimoramento desse modelo”, afirmou Mendes.
Tal entendimento denota otimismo ou
ingenuidade. Ao não censurar ninguém pela edição da PEC Kamikaze, o STF livrou
os integrantes do governo Bolsonaro da responsabilidade por propor uma medida
evidentemente eleitoreira, assim como os parlamentares que com ela compactuaram
desonrando seus mandatos por populismo, indiferença ou covardia. Não há,
portanto, garantia de que o vilipêndio à Constituição não voltará a ocorrer.
O comício de Lula em rede nacional
O Estado de S. Paulo
Convocado a título de prestação de contas, o
pronunciamento extemporâneo foi, na prática, um comício fora de hora e de
lugar, num escandaloso uso da máquina pública para fins eleitorais
No domingo passado, o governo convocou de
supetão uma rede nacional de rádio e TV para o presidente Lula da Silva. Um
ingênuo poderia pensar que Lula, que se julga um estadista, talvez quisesse
fazer algum comentário oficial sobre a vergonhosa eleição na Venezuela. Que
nada. Lula apareceu nas TVs do País inteiro sem pedir licença para dizer que
sua mãe lhe ensinou direitinho a não gastar mais do que ganha.
O extemporâneo pronunciamento, convocado a
título de prestação de contas após um ano e meio de governo, foi, na prática,
um comício fora de hora e de lugar, num escandaloso uso da máquina pública para
fins eleitorais e partidários. É o velho Lula de sempre – mas a reiteração
desse comportamento antirrepublicano por parte do chefão petista não o torna
menos grave.
Em longos 7 minutos e 18 segundos, Lula da
Silva praticou seu esporte preferido: apontar “heranças malditas” deixadas por
governos anteriores. Disse que, ao final de seu segundo mandato, em 2010,
deixou um país no caminho da prosperidade, sem desemprego, com inflação baixa e
grande crescimento econômico. “De lá para cá, assistimos a uma enorme
destruição no nosso país”, disse Lula. Na descrição do presidente – em cuja
narrativa obviamente não se consideram nem os dois anos de recessão provocados
pela inépcia de Dilma Rousseff nem a pandemia de covid-19 –, os governos não
petistas que se seguiram ao impeachment de sua dileta criatura desmontaram
programas sociais, tiraram verbas de saúde e educação, aumentaram os juros,
deixaram a inflação disparar, empobreceram e endividaram famílias, “espalharam
armas ao invés de empregos” e, máxima crueldade, “trouxeram a fome de volta”.
Como não se tratava de “assunto de relevante
importância”, como manda o Decreto 84.181, de 1979, que regulamenta a
convocação de rede nacional de rádio e TV, o pronunciamento de Lula não tinha
nenhum compromisso com a verdade. Sentindo-se autorizado por sua condição de
demiurgo, caprichou na mistificação.
Depois de relatar a suposta terra arrasada
deixada por seus antecessores, Lula enumerou seus alegados feitos, como se
estivesse no horário eleitoral. Sem dar qualquer contexto, como é típico das
bravatas de palanque, falou como se antes dele não houvesse um país, e sim um
inferno. Não citou os nomes nem do “genocida” Jair Bolsonaro nem do “golpista”
Michel Temer, mas nem precisava. Estava claro que o presidente estava mais uma
vez colocando os brasileiros diante de uma escolha crucial: o PT ou a barbárie.
Com a volta do PT ao poder, declarou Lula, “o Brasil se reencontrou com a
civilização”. Nada menos.
É evidente que se pode fazer todo tipo de
crítica ao governo de Jair Bolsonaro, que lidou de maneira criminosa com a
pandemia, ameaçou reiteradas vezes promover uma ruptura democrática,
desmoralizou o Brasil no exterior e destratou jornalistas e opositores. Lula,
como cidadão e presidente, tem todo o direito de fazer o pior juízo possível de
Bolsonaro, mas o lugar para fazê-lo não é numa rede nacional de rádio e TV –
que, além de não se prestar a isso, não permite o contraditório. Para quem
festeja a “vitória da democracia”, como Lula fez questão de fazer logo no
início de seu pronunciamento, trata-se de um comportamento bem pouco
democrático.
No mais, é o caso de perguntar quais eram as
motivações e os objetivos de Lula com seu comício em cadeia nacional. Ao
reiterar seu compromisso com o equilíbrio das contas públicas – numa única
frase em seus mais de sete minutos de discurso –, Lula apenas cumpriu tabela.
Citou as lições de economia recebidas da mãe como prova de que fala sério, e
mais não disse. Todo o resto do pronunciamento, em ano de eleições municipais
nas quais Lula está pessoalmente empenhado, serviu para dar o roteiro do embate
que ele pretende travar com Bolsonaro – e o uso vergonhoso da máquina pública
para isso mostra até que ponto Lula está disposto a ir nessa guerra imaginária.
Truculência não é competência
O Estado de S. Paulo
Alta da letalidade policial em São Paulo não
significa necessariamente mais segurança
Talvez não seja possível estabelecer
objetivamente uma relação de causalidade entre os discursos radicais das
autoridades paulistas na área de segurança pública e a atuação cada vez mais
violenta da Polícia Militar (PM) do Estado de São Paulo, mas não se pode
ignorar que, sob um governo que nunca escondeu seu ânimo para o confronto, a PM
paulista está matando muito mais.
Segundo a Secretaria da Segurança Pública, o
número de mortes cometidas por PMs disparou no 1.º semestre deste ano em
relação ao mesmo período de 2023. A letalidade saltou 68,78%, passando de 221
ocorrências para 373 de um ano para o outro. Considerando apenas os casos dos
agentes em serviço, o número cresceu 94,19% – de 155 mortes nos seis primeiros
meses do ano passado para 301 no mesmo período de 2024. Uma parte significativa
desses óbitos ocorreu sob condições pouco claras e até agora o governo não se mostrou
empenhado o bastante para esclarecê-los.
Depois de um longo processo que foi
deflagrado após o massacre do Carandiru, em 1992, para fazer dela uma polícia
mais eficiente e menos truculenta, aparentemente a PM, sob o governo de
Tarcísio de Freitas, recebeu nova orientação. Recorde-se que o secretário de
Segurança Pública, Guilherme Derrite, é um ex-policial que chegou a ser
afastado da Rota – o batalhão de elite que costuma ser associado à truculência
policial – por excesso de violência. Derrite elegeu-se deputado dizendo que era
“vergonhoso” um policial com cinco anos de serviço não acumular “pelo menos
três ocorrências” que tenham resultado na morte do suposto criminoso. Com esse
currículo, foi escolhido secretário de Segurança. A mensagem à tropa parece
clara.
O aumento de 170% no número de mortos pela PM
na Baixada Santista no 1.º semestre em relação ao mesmo período do ano anterior
pode servir para ilustrar esse ânimo. Foi justamente nessa região que o governo
Tarcísio, a título de responder a ataques de criminosos a policiais, deflagrou
operações sangrentas e repletas de denúncias de abusos. Em março deste ano,
Tarcísio disse ter “muita tranquilidade” com a atuação da PM na Baixada. Sobre
uma denúncia feita ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, disse que não estava
“nem aí”.
A Secretaria da Segurança atribuiu o aumento
de mortes pela PM à reação violenta dos criminosos. É possível, mas é preciso
que haja transparência nas investigações de cada caso para mudar a percepção de
que a polícia está matando mais do que deveria, numa escala maior do que a
verificada antes da adoção das câmeras corporais – aquelas que vieram para
constranger os maus policiais e que, a despeito disso, sofreram oposição tanto
do governador quanto de seu secretário de Segurança.
O número de suspeitos mortos não é indicador de eficácia policial. No Estado Democrático de Direito, a prática da vingança por parte das forças de segurança é diametralmente oposta ao conceito de justiça. Não há no País a previsão da pena da morte e não é legítimo nem legal, como parecem indicar os dados oficiais, levar a cabo execuções em supostos confrontos que, em tese, não deveriam ser normalizados como método principal de atuação policial. Da PM, esperam-se baixa letalidade e alta capacitação para enfrentar o crime e levar paz aos paulistas.
Venezuela é uma encruzilhada para Lula
Correio Braziliense
Até por uma questão de fronteiras, o Brasil
romper relações com a Venezuelana seria um erro, mas Lula também precisa
demonstrar uma visão de mundo diferente, visceralmente comprometida com a
democracia
A Suprema Corte venezuelana realizou, ontem,
uma sessão para auditoria do resultado das eleições na qual convocou os 10
candidatos presidenciais — Nicolás Maduro, Edmundo González e mais oito —
para comparecer ao tribunal. Ameaçado de prisão, González não compareceu.
Maduro já mandouclose prender
milhares de oposicionistas. E a Venezuela parece caminhar mesmo para se tornar
uma ditadura sob seu comando.
A reeleição de Maduro, proclamada no dia
mesmo da apuração, 28 de julho, é contestada por observadores internacionais.
Apuração paralela aponta González como vencedor do pleito, com 67% dos votos —
contra 30% de Maduro. A oposição exige a apresentação das atas eleitorais
completas pelo CNE, a autoridade eleitoral venezuelana. Estados Unidos,
Argentina e Uruguai declararam que o candidato da oposição venceu o pleito.
Segundo o Centro Carter, instituição que
acompanha eleições em todo o mundo, a Venezuela "não atendeu aos padrões
internacionais de integridade e não pode ser considerada democrática".
Além disso, o órgão afirmou que a autoridade eleitoral "demonstrou claro
viés" em favor do atual presidente, que, com o resultado, terá mais seis
anos de mandato.
A audiência na Suprema Corte foi uma
encenação para legitimar a permanência de Maduro no poder. Durante a sessão,
oito dos nove candidatos presentes assinaram um documento dizendo que concordam
com os resultados da eleição. Menos Enrique Márquez, que pediu que as atas
eleitorais sejam publicadas pelo CNE de forma imediata.
A escalada da crise venezuelana deixa o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva em uma encruzilhada da história. A
diplomacia brasileira vem atuando na crise com competência — o que é
demonstrado pelos pedidos da Argentina e do Peru para que assuma responsabilidade
por suas respectivas embaixadas e pela nota conjunta com os presidentes
da Colômbia e do México —, mas sem força suficiente para reverter a situação.
Maduro mantém seu projeto de poder autocrático e recorre a todas as estruturas
do Estado para seguir na presidência.
O autogolpe está em marcha desde 23 de março,
quando Marina Corina Machado, a candidata que unificava a oposição, foi
declarada inelegível. Daí pra frente, todo o processo eleitoral foi marcado por
tentativas de garantir uma "vitória eleitoral" a qualquer preço.
Fraudes em mapas eleitorais não são nenhuma novidade na América Latina. Porém,
no caso da Venezuela, são tão escancaradas que até as atas da votação
desapareceram, exceto as cópias em poder do governo.
A situação deixa o presidente Lula em uma
posição delicada internamente porque há amplo entendimento, na opinião pública
brasileira e nos meios políticos, de que as eleições foram fraudadas e que
Maduro se tornou um ditador. Aliado histórico do chavismo, o presidente
brasileiro precisa manter distância regular do colega venezuelano, sob pena de
ter a própria imagem contaminada.
É um problema político com muita repercussão internacional, pois abala a liderança regional de Lula e mais ainda internamente, já que pode sinalizar uma posição dúbia do petista em relação aos valores democráticos. Reconhecer Maduro por afinidade ideológica não é da nossa cultura diplomática. Até por uma questão de fronteiras, o Brasil romper relações com a Venezuelana seria um erro, mas Lula também precisa demonstrar uma visão de mundo diferente, visceralmente comprometida com a democracia.
Verdade!
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