quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Roberto DaMatta - Polarização é ato de má-fé

O Globo

Polarizar é, como tristemente testemunhamos, um modo de esvaziar o outro lado de razão

Temos corpos repartidos em esquerda e direita. Mãos, pés, olhos, narinas, ouvidos, dedos, hemisférios cerebrais, tudo tem um outro polo que não é “reserva” ou “duplicata”, mas complemento. Somos constitucionalmente duplos, e nossa natureza bipolar facilita a automistificação.

Polarizar é parte de nossa natureza. Entretanto ela tem sido usada mais para dividir e condenar que para compreender. Os lados se complementam, mas, na politicagem, o conceito bloqueia a relativização. Passa a ser prova de certezas, quando o que está em jogo são circunstâncias e limites.

Polarização é uma palavra mais apropriada para uma enfermidade em que represento a verdade, enquanto você exprime erro e ignorância. Tudo o que digo traduz boa consciência do mundo e das coisas; ao passo que você é a personificação da má-fé. Estamos afundados nessa dualidade não complementar e destrutiva faz tempo.

Lula 3 diz que o regime de Maduro na Venezuela é “desagradável”, mas não hesitou em equacionar a reação de Israel ao terrorismo do Hamas como genocídio. Aliás, esse episódio revela nossa infortunada capacidade de somar selvagerias...

Tudo o que está comigo é verdadeiro e não é relativizável, mas seu lado é, invariavelmente, falso, hipócrita ou mentiroso. Hitler e Stálin não exterminaram ninguém; simplesmente foram antipáticos. Como Fidel ou Ortega. 

A má consciência revela um autoritarismo rigoroso e, no limite, é o berço dos fascismos. O Diabo, que sempre desejou a morte de Deus e de suas incertezas, é fascista. Para ele, não pode haver outro lado além do seu. Eu tenho amor; você, ódio. A outra mão deve ser englobada em todas as situações. O aleijão resultante não é problema. Podemos viver sem um lado, como manda a lógica da má-fé e dos ficcionalismos modernos.

A má consciência é madrinha dos particularismos. Ser diferente é ser particular ou singular. Somos exclusivos em nossas identidades, mas não podemos equacionar peculiaridades com privilégios, exceto em casos especiais. Quando somos muito ricos, grandes ou poderosos.

Quando julgamos a esquerda subversiva e a direita reacionária, não contribuímos para a clareza. Pelo contrário, apagamos a luz do lado que consideramos inútil, malvado ou demoníaco.

Polarizar não é opor com objetivos de esclarecer ou enxergar melhor. É, como tristemente testemunhamos, um modo de esvaziar o outro lado de razão.

No fundo, trata-se de mutilar o debate, o contraste, a identidade e a compreensão pela eliminação moral ou ideológica do outro, porque temos a bala de prata do certíssimo, do claríssimo e do crudelíssimo. Só nós contamos, porque estamos absolutamente certos de que ultrapassamos a eterna dúvida humana que faz parte de nosso caminhar.

A certeza castra a competição. E a competição é a base do liberalismo democrático. É ela que testa a riqueza de certos caminhos e posições. Por causa disso, regimes democráticos têm como sina e determinação a mudança periódica dos cargos públicos. Todos regulados por ideais diversos, mas unidos num acordo pela transitoriedade do poder. Uma transitoriedade fundada em direitos individuais.

Para realizar tal objetivo, regimes democráticos articulam eleições — competição eleitoral em que se submetem ao julgamento da população de cidadãos, aqueles que votam e elegem seus candidatos por um período delimitado. A regra eleitoral é um dos melhores exemplos de norma universalista, pois vale para todos os candidatos e todos os votantes. Trata-se de “jogo inclusivo” e, como sabemos, arriscado.

Como um jogo de poder, ele desperta paixões espúrias e, em países cuja estrutura social se funda em valores aristocráticos e elitistas, existe permanente tentação de eliminar o opositor. O golpe nasce e cresce como malfadado projeto, justamente quando a polarização assegura certezas e armazena os argumentos das balas de prata que salvariam a sociedade. Trata-se de um pantanal ético de que — valha-me Deus! — ninguém escapa!

 

Um comentário:

  1. A argumentação é cuidadosa e correta, mas o título parece exagerado, distorcido e, portanto, dele discordo! Há polarizações positivas e necessárias!

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