quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Vera Magalhães - A convenção democrata e um novo jeito de enfrentar extremistas

O Globo

Reviravolta na estratégia do Partido Democrata, desde a inédita abdicação de Biden até o tom e o teor dos discursos, mostram nova forma de enfrentar candidatos antipolítica

As eleições norte-americanas são uma pauta obrigatória para todo mundo que trabalha com política --de jornalistas que cobrem o tema a marqueteiros, passando pela academia e os próprios políticos. Uma série de dilemas inéditos está posta diante dos eleitores da chamada maior democracia do mundo, a começar da circunstância nunca antes experimentada de um ex-presidente com múltiplas condenações e investigado por uma conspiração contra a democracia conseguir ser indicado pelo seu partido para disputar a Casa Branca novamente, como ocorreu com Donald Trump no Partido Republicano. E ter largado com grandes chances de ser bem-sucedido!

Diante de algo assim tão novo e perigoso, a solução do Partido Democrata também foi histórica: Joe Biden anunciou, com a campanha já iniciada, que abdicaria de disputar a reeleição por aquiescer com a ideia, cristalizada depois do primeiro debate entre ele e Trump, de que não está em condições de saúde ideais para mais quatro anos no posto. A reviravolta levou à indicação da vice-presidente, Kamala Harris, e à injeção de novo ânimo, mais dinheiro e chances reais na campanha democrata.

Diante de um panorama que rasga os manuais anteriores de campanha (e os americanos são reis em receitar o que se deve ou não se deve fazer em eleições), vão-se criando uma linguagem e um discurso novos para enfrentar a tentativa de ressurreição de Trump, e isso interessa ao resto do mundo, pois o tipo de candidato antipolítica, com discurso sectário para minorias ou maiorias minorizadas, que aposta na desinformação e no achincalhe às instituições, sobretudo à imprensa, e no desrespeito no trato com os adversários é um fenômeno que se repete em vários países, inclusive no Brasil, com Jair Bolsonaro e seus assemelhados.

O que os dois dias da Convenção Democrata até aqui mostram é que, a despeito de oradores que arrebatam mais o público, discursos mais e menos emocionados, existe uma linha condutora na forma de tratar Trump e assuntos delicados que foi definida por estrategistas e está sendo seguida à risca, e que pode servir para nortear a maneira como políticos lidam com esse tipo de adversário antipolítica (e, como tal, difícil de combater) em muitas partes do mundo. Listei alguns desses pontos:

1. Não fugir de temas espinhosos. A forma como os democratas estão tratando a pauta do aborto, tratando-a como uma discussão a respeito de liberdade reprodutiva e esvaziando o estigma que mistura reacionarismo e discurso religioso enviezado, é em tudo nova. Os tais manuais preceituam que esse é o tipo de tema que deve ser evitado a todo custo por candidatos, inclusive progressistas, mas Kamala Harris e os democratas trataram de se apropriar da discussão, trazendo para a convenção, como reforço dessa estratégia, depoimentos de mulheres que têm famílias convencionais, portanto são "pró-vida", mas que tiveram de se submeter a abortos por terem sofrido estupro ou por riscos à própria vida, e que teriam a possibilidade negada depois de a Suprema Corte ter revisto a jurisprudência sobre o tema. A mesma coragem é mostrada para tratar da discussão do Medicare e da proposta republicana de cercear a permissão para fertilizações in vitro. Assim, os democratas tentam resgatar o sentido da palavra "liberdade", que nas últimas décadas foi tomada pela extrema-direita para defender a desinformação e toda sorte de teorias da conspiração.

2. Apontar com clareza os riscos do discurso de Trump. Praticamente todos os discursos na convenção apontaram as inúmeras recorrências de machismo, misoginia, racismo, preconceito de classe, xenofobia e teoria da conspiração no discurso do ex-presidente. Mas o fizeram de forma firme, energética, sem dar margem para que a reação seja colocada na conta do "mimimi", outro truque recorrente à extrema-direita derivada do trumpismo mundo afora. Com autoridade e doses estudadas e precisas de ironia ("shade", na linguagem consagrada pelas redes sociais), Michelle e Barack Obama produziram frases de tremendo impacto para atingir Trump naquilo que ele tem de mais caricato e antidemocrático, algo que os democratas até ontem pareciam ter prurido em fazer.

3. A tal frente ampla. Os democratas se cercaram de cuidados para não dar a Trump um dos últimos discursos que parecem ter lhe restado: o de que Kamala seria "comunista". Várias falas ridicularizaram o expediente resgatando o histórico da vice-presidente. A jornalista Ana Navarro, emigrante nicaraguense, fez uma fala forte apontando os autocratas que se apresentam como de esquerda (Daniel Ortega, os irmãos Castro e Nicolás Maduro) e apontando neles características que os aproximam de Trump, e não de Kamala. Ao mesmo tempo, repudiou sem meias palavras a ditadura que grassa nesses países. Da mesma forma, é inteligente a presença de republicanos, inclusive ex-mandatários do partido, na convenção, mostrando que o repúdio a Trump e ao que ele representa em termos de rebaixamento da política não é uma batalha restrita ao partido adversário.

4. O resgate da esperança e a aposta na diversidade. Talvez embalados pela origem de sua candidata, os democratas fizeram sua convenção mais colorida e representativa. Na longa rodada em que os Estados sucessivamente anunciavam os votos de seus delegados em Harris, houve um desfile de tipos que formam a identidade americana, uma maneira também nova e corajosa de combater de frente o discurso anti-imigração de Trump. O apelo em alto e bom som aos valores democráticos, em contraposição ao fato de a candidatura republicana representar um projeto eminentemente pessoal de revanche, também têm o condão de neutralizar uma arma responsável por eleger Trump em 2016, a da instrumentalização do ressentimento e do ódio.

3 comentários:

  1. "Um ex-presidente com múltiplas condenações e investigado por uma conspiração contra a democracia", isto é, CRIMINOSO GOLPISTA! Estamos falando do Bolsonaro ianque ou do Trump tupiniquim?

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  2. "Inúmeras recorrências de machismo, misoginia, racismo, preconceito de classe, xenofobia e teoria da conspiração no discurso do ex-presidente." Estamos falando do GENOCIDA ianque ou do GENOCIDA tupiniquim?

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