domingo, 29 de setembro de 2024

Bernardo Mello Franco - A surpresa da jogatina

O Globo

É sintomático que a ficha tenha caído agora, após pressão de bancos e gigantes do varejo

O governo acordou tarde para o desastre causado pela jogatina eletrônica. Nos últimos dias, os ministros da Fazenda, da Saúde e do Desenvolvimento Social se mostraram alarmados com o problema. De Nova York, o presidente Lula prometeu se mexer. “Senão, daqui a pouco a gente vai ter cassinos funcionando dentro da cozinha de cada casa”, justificou.

Na terça-feira, o Banco Central informou que 24 milhões de brasileiros fizeram apostas online de janeiro a agosto. Empresas do setor receberam entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões por mês, mais de dez vezes o que foi arrecadado pelas loterias tradicionais.

O dinheiro sugado pela jogatina passou a faltar no orçamento das famílias. Segundo a Confederação Nacional do Comércio, as apostas produziram 1,3 milhão de inadimplentes no primeiro semestre. O BC estima que 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família tenham destinado R$ 3 bilhões ao jogo. O levantamento tem fragilidades, mas ajuda a dimensionar o estrago nas finanças dos brasileiros mais pobres.

A publicidade vende as chamadas bet como uma espécie de elevador social. Celebridades sorridentes endossam a promessa de enriquecimento fácil. Ditos influenciadores divulgam o jogo como uma diversão inofensiva, ao alcance do clique no celular. Por recomendação do Conar, os anúncios passaram a terminar com advertências como “jogue com responsabilidade”. Uma medida inócua, que mostra a urgência de regras para restringir ou banir a propaganda do setor.

Além de arruinar adultos, a jogatina começa a prejudicar crianças e adolescentes. Em junho, o Ministério Público de São Paulo cobrou medidas da Meta, dona do Facebook e do Instagram, para barrar a publicidade dirigida ao público infantil. A consequência já é vista nas escolas, invadidas pelo jogo do tigrinho e afins.

A única coisa surpreendente na crise é a surpresa das autoridades. O estrago estava contratado desde 2018, quando Michel Temer sancionou a liberação das apostas esportivas no último mês de mandato. A lei previa regulamentação em dois anos, prorrogáveis pelo mesmo período. O prazo coincidiu com o governo de Jair Bolsonaro, que cruzou os braços e deixou o setor faturar sem controle.

No fim de 2023, o Congresso aprovou uma regulação frouxa, em votações comandadas pelo Centrão e apoiadas pelo Planalto. Nesta quarta a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, esboçou uma autocrítica à Folha de S.Paulo. “Subestimamos os efeitos nocivos e devastadores sobre a população brasileira. É como se a gente tivesse aberto as portas do inferno”, penitenciou-se.

Lula entregou o assunto ao Ministério da Fazenda, que viu na febre das bets uma oportunidade para aumentar a arrecadação. Não fazia sentido deixar o setor livre de impostos, mas a realidade mostrou que o problema era muito maior.

Na sexta, o ministro Fernando Haddad disse que “está na hora de botar ordem no caos”. Em outra frente, a Polícia Federal anunciou uma investigação para apurar a ligação de casas de apostas com esquemas de lavagem de dinheiro do crime organizado.

É sintomático que a ficha do governo tenha caído agora, depois da pressão de banqueiros e grandes empresários do varejo. A turma está preocupada com a perda de receitas para a jogatina. “Não podemos pagar para ver”, resumiu o presidente da Febraban, Isaac Sidney.

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