Folha de S. Paulo
Premiação laureou Pedro Almodóvar em trama
sobre eutanásia e o brasileiro ‘Ainda Estou Aqui’, sobre morte na ditadura
militar
Os grandes festivais tinham uma
desconcertante dívida com Pedro
Almodóvar: laureado diversas vezes com troféus secundários, o
espanhol ainda não tinha recebido um prêmio principal em Berlim, Cannes ou
Veneza, os mais importantes festivais do mundo. Pois os italianos se
encarregaram de corrigir isso na premiação deste ano: "The Room Next
Door", seu primeiro longa em inglês, ganhou um relativamente justo Leão de
Ouro.
Não é o melhor filme do cineasta, mas é um
Almodóvar de muito alto nível. Traz Julianne Moore no papel de uma escritora
que ajuda uma velha amiga com câncer, vivida por Tilda Swinton, em seus dias
finais. Ela lhe ajuda inclusive em sua eutanásia, em um filme muito bem
conduzido e que não tem o peso que a trama talvez faça parecer.
Há melancolia, mas há humor e uma grande fúria com um certo estado de coisas no mundo, que dá a esse filme uma vitalidade inesperada —uma energia de combate. É uma obra altamente política, que faz uma cáustica análise do mundo atual, com canhões voltados sobretudo a ideias reacionárias.
De certo modo, o tema também surgiu no
brasileiro "Ainda
Estou Aqui", de Walter Salles, que ganhou o prêmio de melhor
roteiro, reconhecimento ao trabalho de Murilo Hauser e Heitor Lorega —o
primeiro troféu veneziano em décadas a ir para um longa nacional.
Ao narrar a história do desaparecimento e
morte do ex-deputado Rubens Paiva, no começo dos anos 1970, por ordem do
governo militar, o filme é um libelo contra todo tipo de truculência de
governos autoritários e conservadores. Traz de volta esse passado para que ele
não seja revivido na prática.
A tônica do festival foi bem essa: um chega
para lá do progressismo em pensamentos e atitudes com origem no ódio. Ecoou o
tema da Bienal de Artes de Veneza, organizada pela mesma fundação Biennale,
deste ano: "Stranieri Ovunque", ou estrangeiros em todos os lugares,
frase que se refere tanto ao fato de que, no mundo global de hoje, é inevitável
encontraremos pessoas estrangeiras em qualquer local que formos. Ao mesmo tempo
em que nós mesmos também sempre seremos estrangeiros ao sairmos de nosso lugar
natal.
"Jouer avec le Feu", das francesas
Delphine e Muriel Coulin, fala sobre supremacistas brancos na França atual e
deu a Vincent Lindon o prêmio de melhor ator, na pele de um pai que se
desespera ao perceber que seu filho mais velho se uniu a um grupo neonazista,
cometendo violência contra imigrantes.
Outro premiado, o também francês "Leurs
Enfants Après Eux", trazia temática semelhante: Paul Kircher, vencedor do
prêmio Marcello Mastroianni para atores iniciantes, vive um rapaz em eterno
conflito com outro de origem árabe. E o tema apareceria também em "The
Order", do australiano Justin Kurzel, que não recebeu prêmios, mas que
também falava de xenofobia.
Vencedor do troféu de melhor direção,
"The Brutalist", do americano Brady Corbet, louva o papel de
imigrantes na construção de um país, a partir da trajetória de um arquiteto
húngaro que migra para os Estados Unidos após a Segunda Guerra. E o ganhador do
Grande Prêmio fo Júri, "Vermiglio", da italiana Maura Delpero, se
passa em um vilarejo no norte da Itália onde a questão também é tangenciada.
E a situação feminina não foi esquecida,
surgindo com força na defesa do direito ao aborto exposta no pungente
"April", da georgiana Dea Kulumbegashvili, que saiu de Veneza com o
Prêmio Especial do Júri. Foi um dos filmes mais comentados no boca a boca.
E também surgiu em "Babygirl", da
holandesa Halina Reijn, que propiciou a Nicole Kidman aquela que talvez seja a
maior atuação de sua admirável carreira, rendendo-lhe um merecido o prêmio de
melhor atriz. No longa, ela dá vida a uma bem-sucedida diretora de uma empresa
de robótica que se envolve com um estagiário bem mais novo. Ela finalmente pode
dar vazão a seus sonhos eróticos que jamais teve coragem de exercer com o
marido careta. Nunca é tarde para alguém requerer para si o direito a ter prazer.
E não se pode esquecer da crítica à idolatria
a figuras carismáticas, mas que pregam o ódio, habilmente exibida em
"Coringa: Delírio a Dois", de Todd Phillips, que pode ter passado sem
prêmios pelo evento, mas que trouxe um convite para uma reflexão importante, em
um filme com potencial de se comunicar com um grande público.
A mensagem geral desta 81ª edição,
percebe-se, foi a de resistência contra o avanço da intolerância nos quatro
cantos do mundo. A extrema-direita pode estar ganhando território em eleições
locais, mas Veneza mostra que a arte promete ser um campo privilegiado de
resistência a esse movimento.
Tomara!
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