Folha de S. Paulo
Diante de Musk, Bolsonaro ou Marçal, Estado
de direito não pode hesitar
Aplicar a lei não é tarefa mecânica. Esse
lugar-comum tem ao menos dois sentidos. Primeiro, o jurídico: não é mecânica
porque normas precisam de interpretação (não admitem o vale-tudo, mas não se
reduzem a um algoritmo). Segundo, o político: aplicar a lei a atores poderosos
traz obstáculos para além da hermenêutica.
As garras da lei costumam ser inversamente proporcionais ao poder de indivíduos que a violam. Para Estado de direito digno do nome, ter leis justas importa, mas aplicar a lei de forma coerente e não seletiva importa ainda mais. Esta tarefa só pode ser desempenhada por tribunais e juízes com independência, imparcialidade e coragem.
A aliança entre magistocracia e advocacia
lobista dilui essas premissas em favor de cultura jurídica
patrimonialista. No livre mercado do argumento jurídico, a fronteira entre o
legal e o ilegal se define em termos financeiros e relacionais. Leva quem pode
pagar mais, oferecer jantares, construir laços de mútuo interesse. Ou quem
ameaça retaliação. Soa reducionista só até você olhar os corredores de cortes
superiores.
Somente numa cultura jurídica assim se torna
possível dizer que Bolsonaro, apesar da criminalidade serial, não deveria ser
punido pelo caso da
reunião com embaixadores, mas pelo caso das
joias; que Pablo Marçal,
apesar dos ilícitos, não deveria ser derrotado pela Justiça, mas pelas urnas;
que direitos indígenas devem ser negociados em
sala de tribunal com o agronegócio e a indústria da mineração,
ao modo "bom para todas as partes" (enquanto ministro do STF vai a
evento lobístico da mesma indústria para falar de segurança jurídica).
Somente num ambiente assim se pode afirmar
que, para evitar o pior, não se deve sancionar Elon Musk.
Musk decidiu que sua empresa pode operar no país sem respeitar ordens judiciais
que desagradem. Invoca, em tom heroico, a liberdade. Em resposta, alguns
apontam desonestidade: ele passou a escolher
países onde obedecer ou desobedecer a lei, conforme cálculo
econômico, não a liberdade. Outros apontam cinismo jurídico: a lei impõe
limites à liberdade de expressão.
Mas, além da dimensão empresarial, moral e
jurídica, poucos observam um terceiro aspecto: plataformas digitais não são
praça pública, onde todos podem falar e ser ouvidos. O dono das redes controla
o que pode ser dito, cria câmaras de eco artificiais e decide quem e o que é
silenciado e escutado. Um debate sobre algoritmo e transparência. Nessa
engrenagem opaca, liberdade de expressão é uma quimera.
Pode-se criticar Alexandre de
Moraes pela extravagância imprevisível de suas medidas. Não se
pode tolerar Elon Musk. É possível aperfeiçoar o modelo de atuação do STF. Não
é possível fazer vista grossa para a delinquência política e o gangsterismo.
Nem confundi-los com liberdade.
Diante da inércia do legislador e da omissão
do PGR, cabe ao STF inovar com consistência e apuro jurídico. Inovação não é
incompatível com segurança jurídica. A segurança democrática não dispensa
segurança jurídica, mas depende dela.
Millôr Fernandes disse que "imprensa é
oposição, o resto é armazém de secos e molhados." Poderia dizer que Estado
de direito é fidelidade à lei, o resto é o grande bazar da confraria
magistocrática.
Muito bom! "Não se pode tolerar Elon Musk. ... Não é possível fazer vista grossa para a delinquência política e o gangsterismo. Nem confundi-los com liberdade."
ResponderExcluirPerfeito.
ResponderExcluir''Muito bom e perfeito'',concordo.
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