O Globo
Dobradinha foi formada em torno das
carências, rancores e egos feridos de cada um
Elon Musk e
Donald Trump formam, hoje, a dobradinha mais imprevisível e sinistra da cena
política americana. Foi formada em torno das carências, rancores e egos feridos
de cada um, podendo desembocar num projeto de poder inquietante se o candidato
republicano à Casa Branca sair vencedor nas eleições de novembro próximo.
Trata-se de uma atração fatal de conveniência, e ela é relativamente recente.
Desde que se tornou cidadão dos Estados
Unidos em 2002, o visionário Musk, nascido na África do Sul, manifestava
preferência por candidatos democratas. Até meados de 2022, tratava Trump com
desdém por tentar fazer deslanchar sua candidatura em 2024.
— Não odeio o cara, mas é hora de ele pendurar o chapéu e contemplar o pôr do sol — chegou a postar na rede social mais influente da época, o antigo Twitter.
Reciprocamente, Trump distribuía insultos
chulos ao dono da Tesla e da SpaceX.
O que fez o admirado inventor e cultuado guru
do Vale do Silício abraçar com estridência um movimento tão retrógrado como o
Make America Great Again (Maga) de Donald Trump? Para Charlie Warzel, que
escreve sobre tecnologia e extremismo on-line na Atlantic e acompanha a
trajetória de Musk desde 2010, parte da resposta está na errática compra do
Twitter em outubro de 2022. Até então, Musk era cultuado como o Thomas Edison
do século XXI, de genialidade ímpar. Esse encanto irrestrito foi quebrado
quando ele torrou US$ 44 bilhões (mais US$ 2,5 milhões em closing costs) para a
desastrada aquisição da rede social, transformou-a em geringonça ideológica e
ainda por cima lhe deu o nome de X. As elites do poder acharam prudente tomar
alguma distância do agora ex-mago.
Musk não aguentou a orfandade. Foi buscar
admiradores e seguidores junto ao núcleo mais duro da internet: a extrema
direita voraz. A partir daí, o homem mais rico do mundo tornou-se prisioneiro
da audiência conquistada — para cada maluquice postada, seus 197 milhões de
seguidores passam a demandar mais e mais. Desde que o Twitter virou X, por ali
circulam fake news como a criação, nas Ilhas Malvinas, de campos de detenção
para dissidentes políticos do governo britânico. Dias atrás, Musk também
endossou a sugestão de que mulheres não devem participar de governos por não
terem raciocínio crítico.
— Ele sempre foi um fio meio desencapado, com
claros sinais de desdém pelo Estado de Direito, só que isso ficava encoberto
por sua imagem de visionário — sustenta Warzel.
A aproximação com Trump se deu por etapas. No
final de 2023, em entrevista ao New York Times, Musk admitiu pela primeira vez
que não votaria no democrata Joe Biden.
— Vai ser uma escolha muito difícil — disse
ele, sem mencionar Trump.
Em março de 2024, ocorreu o primeiro encontro
entre os dois megaegos, em Palm Beach. Na ocasião, revelou o jornal, Musk abriu
a carteira de bilionário, acenando com polpudo aporte, mas pediu reserva sobre
o tête-à-tête. Foi somente em julho passado que saiu do armário.
— Apoio plenamente o presidente Trump e
desejo sua rápida recuperação — anunciou em rede social minutos depois do
atentado que atingira a orelha de Trump.
Aproveitou para também postar uma foto do
republicano ferido e legendou:
— Desde Theodore Roosevelt, a América não tem
um candidato tão valente.
A partir daí, deu liga; parecem feitos um
para o outro. Numa interminável “entrevista” recente de duas horas que Trump
concedeu a Musk pelo X, o ex-presidente logo tascou um elogio ao dono da
plataforma:
— Campeão de demissões de funcionários.
Também gostou da ideia de, se eleito, nomear
Musk para um hipotético Conselho de Eficiência Governamental — espécie de
auditoria do funcionalismo público federal. Ao empreendedor caberia cortar
gastos públicos com ímpeto semelhante à devassa que fez ao comprar o Twitter.
Musk, por seu lado, declarou-se lisonjeado de “servir à América” caso surja
alguma oportunidade e acrescentou que dispensaria salário, título e
reconhecimento. Por ora, melhor nem falar no cipoal de conflitos de interesses
que essa hipótese acarretaria, uma vez que SpaceX e Tesla recebem bilhões de
dólares em contratos e subsídios do governo americano.
E se Kamala Harris derrotar Trump nas urnas
em novembro? É então que a real influência e as verdadeiras ambições de Musk
serão colocadas à prova. Ele poderá tanto exercer seu absoluto controle no X,
para conter uma eventual insurreição da militância Maga, como dar espaço aos
libertários do ódio. Respondendo à Atlantic sobre qual será seu papel, afirmou:
— A vontade do povo deve ser respeitada. Se
houver dúvidas quanto à integridade das urnas, elas devem ser investigadas, não
descartadas de antemão nem questionadas sem fundamento.
Que assim seja.
Em tempo, e tudo a ver: acaba de chegar às
livrarias americanas (também no Kindle) o meticuloso e eletrizante “Character
limit: how Elon Musk destroyed Twitter”, dos repórteres Kate Conger e Ryan Mac.
Jornalismo investigativo dos bons.
Excelente (Dorrit Harazim, não o futuro).
ResponderExcluirMuito bom! Como "SpaceX e Tesla recebem BILHÕES de dólares em contratos e subsídios do governo americano", pra que Musk precisaria de salário deste governo? Ele já mama nas tetas públicas há décadas...
ResponderExcluirPois é.
ResponderExcluir