domingo, 29 de setembro de 2024

Dorrit Harazim - Guerra sem paz

O Globo

As intermináveis rodadas de negociações quadripartites acabam implodidas por novas exigências de Netanyahu

A História registra anos em que a Humanidade é forçada a se fazer perguntas. Em 2001, o mundo que testemunhou o ruir das Torres Gêmeas deixara de ser compreensível, e ficamos atarantados por um bom tempo. Outros anos da História exigem respostas, dão início a uma era de urgência, e 2024 parece elencado a ocupar esse papel. Estamos falando, é claro, da guerra sem paz no Oriente Médio.

Em seu aguardado discurso no plenário da ONU, na sexta-feira, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, tonitruou certezas por mais de meia hora. Orador eloquente, de sua boca não se ouviu uma única vez a palavra “cessar-fogo”. “Palestinos” só frequentaram en passant seu discurso de 3.979 palavras. Tal qual o solitário peixe-dourado que, embora aprisionado num minúsculo aquário, acredita estar nadando no oceano, Netanyahu deu braçadas múltiplas sem sair do lugar. Um lugar fincado na força.

As afirmações de maior impacto retórico do seu discurso podem ser contestadas sem grande esforço:

— O que está em jogo não é Gaza, não é o Hezbollah, é a existência de Israel.

Errado: Israel já existe e deve continuar a existir sempre, em segurança. O que está em jogo é a desocupação da Cisjordânia, de parte de Jerusalém e agora de Gaza, para a criação formal de um Estado palestino.

— Vamos vencer porque não temos opção.

Errado. A opção chama-se negociação visando a um cessar-fogo imediato.

— Não existe substituto para uma vitória total.

Errado: o que não existe é uma vitória total.

— Mando um recado para o mundo: estamos vencendo.

Errado. Israel está ampliando a guerra para o Líbano por não conseguir uma vitória total em Gaza.

As promessas do governo Netanyahu de “eliminar ou prender todo terrorista do Hamas ou da Jihad Islâmica que participou direta ou indiretamente no planejamento ou execução do massacre de 7 de outubro de 2023”, além da libertação dos mais de cem reféns (30 dos quais já estariam mortos) ainda em mãos do grupo e da erradicação do poder político do Hamas sempre soaram irrealizáveis. Com as Forças de Defesa de Israel no seu 359º dia de guerra em Gaza, a terra, ali, ficou arrasada. A população civil virou alvo colateral ou massa de manobra errante, faminta, mutilada, desenraizada. Os mortos da guerra já são mais de 60 mil. Noventa por cento da infraestrutura do território está destruída. Meses atrás o Birô de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU já estimava em pelo menos três anos o tempo necessário para tentar localizar perto de 10 mil palestinos desaparecidos entre os escombros.

Pelo menos até esta semana, nada disso levou até o esconderijo de Yahya Sinwar. Ele, como se sabe, é o líder máximo do braço terrorista do Hamas. Foi ele quem planejou o fatídico 7 de Outubro que chacinou indiscriminadamente 1.200 mulheres, crianças, adolescentes, bebês, idosos, civis e militares no sul de Israel. Foi dele também a ordem para que fossem feitos reféns, visando a usá-los como futura moeda de barganha.

Segundo o diário israelense Haaretz, existe uma equipe do Shin Bet, o serviço de segurança interna de Israel, dedicada exclusivamente à captura de Sinwar, enquanto uma segunda equipe de todos os serviços de inteligência somados se ocupa em localizar os demais terroristas. Por cinco vezes, afirma o jornal, o líder procurado escapuliu do cerco. Só se comunica por meio de notas escritas usando luvas. Em duas ocasiões, chegou a conversar em hebraico com alguns dos 105 reféns soltos em novembro passado, por ocasião de um cessar-fogo de seis dias.

Foi a última vez que Israel aceitou um acordo de cessar-fogo temporário em Gaza. Desde então, as intermináveis rodadas de negociações quadripartites acabam implodidas por novas exigências ou propostas de Netanyahu. A mais recente, formulada pelo coordenador das famílias dos reféns e aceita pelo governo, oferece salvo-conduto a Sinwar, à sua família e a milhares de membros do Hamas em troca da libertação de todos os reféns. Quem conhece Netanyahu e, sobretudo, Sinwar, sabe ser improvável que esse cenário se concretize. Além do que, um destravamento do impasse agora poderia servir à campanha eleitoral da vice-presidente de Joe BidenKamala Harris. E, para Benjamin Netanyahu, só interessa uma vitória de Donald Trump. Faltando pouco mais de um mês para a eleição de 5 de novembro, há quem suspeite que “Bibi” queira aguardar o resultado para presentear o seu eleito, de bandeja, com um trunfo diplomático. São pouco mais de 30 dias de guerra inútil contra Gaza, 864 horas a mais de terror para os reféns, uma eternidade sem paz.

Chegamos até aqui sem falar do alarmante desdobramento da mesma lógica de guerra na frente Norte, contra a milícia xiita do Hezbollah aquartelada no Líbano. Bombardeios, terra arrasada, “a batalha do bem contra o mal”, a primeira leva de mortos e deslocados. Tudo inútil. O nó da questão continua o mesmo: a criação de um Estado palestino soberano, não terrorista.


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