Valor Econômico
É preciso combater os extremistas
antissistema, mas também é fundamental melhorar a política democrática
Já houve época em que votar contra a classe
política era uma forma de protesto bem-humorado. Foi assim em 1959, quando o
rinoceronte Cacareco obteve quase 100 mil votos para vereador em São Paulo, ou
com o Macaco Tião, que recebeu cerca de 400 mil votos na disputa para prefeito
do Rio de Janeiro em 1988. Muitos outros tiveram sucesso no Legislativo
bradando contra o sistema, como o deputado Tiririca e seu famoso lema: “Pior
que tá não fica”. Ainda há excentricidades concorrendo por todo o Brasil em
2024, mas a antipolítica agora mudou de face: seu objetivo maior não é só
ridicularizar as instituições democráticas. É destruí-las para instaurar alguma
forma de autoritarismo.
A antipolítica ganhou força em boa parte do mundo nos últimos anos, geralmente presente em candidatos e partidos ligados a um extremismo de direita. E na maior parte desses casos, o discurso antissistema tem como propósito principal minar a democracia. Trata-se de uma mudança tanto na oferta das lideranças políticas, como também na demanda de parcela importante da população.
Do lado da demanda, o descrédito e a falta de
confiança no sistema político explicam parte desse apoio a radicais
autoritários. É preciso que os políticos ditos tradicionais aumentem a
legitimidade do sistema e tornem as políticas públicas mais efetivas frente às
demandas dos diversos grupos sociais. Fundamental auscultar mais os sentimentos
de vários segmentos da sociedade que se sentem abandonados e acreditam cada vez
mais em soluções disruptivas.
Junto com o descrédito frente ao sistema vem
um conjunto de preconceitos que produzem os “inimigos” que devem ser
extirpados: imigrantes, defensores do aborto e da “ideologia de gênero”,
“comunistas antipatriotas” e aqueles que impedem o povo de ser “livre”, entre
os principais. As falhas dos políticos são evidentes, porém, há rachaduras em
várias organizações da sociedade: escolas, igrejas, empresas, mídia e todos
aqueles espaços em que os indivíduos se socializam e constroem seus valores têm
sido incapazes de cultivar ideias democráticos em parcela importante da
população. O trabalho para modificar esse ambiente extremista e autoritário não
deverá se concentrar somente na política, e isso precisa ser dito e repetido
por todos que desejam revigorar a democracia.
Um exemplo é revelador do espírito de nossa
época: a falta de etiqueta que se espalha por lideranças políticas e seus
seguidores não nasce no momento do voto. Ela é semeada cotidianamente em vários
momentos em que as pessoas precisam conversar e ouvir outras com opiniões
diferentes. Por que será que as falas grosseiras e agressivas, quando não
flagrantemente preconceituosas, de Trump, Bolsonaro e Pablo Marçal cativam
parte do eleitorado? A sensação é de que essa receptividade à violência radical
dos modos e palavras é aceita em outros espaços sociais ou é até incentivada em
outras arenas externas à política.
Mas a demanda não explica todo o fenômeno da
antipolítica contemporânea. As lideranças políticas têm sempre um papel
importante na dinâmica democrática. O fato é que diversos grupos e líderes
abraçaram o discurso radical contra o sistema, propondo soluções por vezes
mágicas e milagrosas, mas sempre com o intuito de concentrar o poder em alguma
forma de autocracia. Gritam por liberdade, mas querem reduzir o pluralismo de
ideias e controlar os indivíduos no campo dos costumes. Só é possível cercear a
opinião e o comportamento dos outros nas esferas pública e privada neste grau
se a democracia for jogada no lixo.
Vale lembrar que não bastam cidadãos crentes
na democracia para que ela floresça; é fundamental também a existência de
políticos democráticos que defendam a sobrevivência das instituições. A demanda
não determina completamente a oferta na política, havendo um espaço bastante
razoável de autonomia das lideranças e partidos para propor novas ideias e
mexer com o comportamento do eleitorado. Exemplificando: a falta de confiança
no sistema não necessariamente levaria ao predomínio de radicalismos de direita
de cunho autoritário. Isso foi obra mais dos atores políticos do que dos
eleitores.
No Brasil contemporâneo, o modelo
antissistema com caráter autoritário é uma invenção do bolsonarismo. Esse
discurso moldou a campanha de 2018 e mais ainda o governo de Jair Bolsonaro. É
bem verdade que ele não foi reeleito, em boa medida por conta do seu fracasso
em captar os grupos além dos seus seguidores, o que poderia representar, em
tese, a fragilidade da extrema direita brasileira.
Em defesa da força do ex-presidente,
normalmente se argumenta que Bolsonaro perdeu por uma pequena margem de votos.
Contudo, esse não é o ponto mais importante. O mais relevante é que o
bolsonarismo conseguiu três grandes feitos. O primeiro é continuar cativando e
mobilizando constantemente cerca de um terço do eleitorado brasileiro. É uma
minoria, mas quando engajada é capaz de influenciar o sistema político e
limitar o poder de seus adversários.
Mais importante do que isso: conseguiu-se
criar um modo de se fazer política, que multiplicou o ódio aos “inimigos”, a
prática do discurso violento e grosseiro e moldou um monte de lideranças
bolsonaristas que agem praticamente sob o mesmo formato. Por fim, um partido
tradicional, o PL do velho líder fisiológico Valdemar Costa Neto, foi cooptado
para o movimento e se tornou o maior do país. O bolsonarismo ganhou a máquina e
o dinheiro (muito dinheiro) para se manter forte na oposição ao governo Lula e
poder atuar em cada rincão do país.
Criava-se assim a plataforma para uma grande
força antipolítica e antidemocrática, influente e respeitada pelos adversários,
especialmente pelo Centrão, que ora constrói alianças com os bolsonaristas para
barganhar mais recursos do governo federal, ora se coliga com o bolsonarismo
para não perder eleitores. Há, no entanto, uma contradição nesse jogo: o
discurso antissistema pode se utilizar das instituições para ganhar poder, mas
está condenado a traí-las. Não há como alimentar o radicalismo dos eleitores, prometer
uma destruição completa da “velha política” e ficar até o fim comprometido com
os valores democráticos, o respeito à lei e, sobretudo, com o restante dos
políticos.
Pablo Marçal desnudou a viabilidade desse
pacto permanecer por muito tempo. Esse é o ponto que tem sido menos falado
sobre esse fenômeno midiático e eleitoral, cujo discurso é límpido: é preciso
substituir todos os políticos e sua forma carcomida de atuar por uma maneira
completamente nova e diferente, comandada por ele e outros atores antipolíticos
pouco comprometidos com a democracia. A “cristianização” da candidatura do
prefeito Ricardo Nunes que vários políticos bolsonaristas querem fazer, em nome
de um apoio escondido ou explícito ao coach Marçal, no fundo é a rebelião
contra a necessidade de se depender do Centrão e afins.
Nem é necessário que Marçal vença a eleição
paulistana. Se ele mantiver o alvoroço atual até o final, quem sabe indo até o
segundo turno, ficará claro para os bolsonaristas que a antipolítica pode
adotar uma versão bem mais radical em relação ao sistema do que nas eleições de
2018 e 2022. Obviamente que se ele ganhar o pleito, aí então todo o
bolsonarismo terá de se radicalizar muito rapidamente, e o fato é que
Bolsonaro, ao aliar-se com Valdemar e estar na marca do pênalti do STF no ano
que vem, talvez não tenha mais como monopolizar a liderança da extrema direita
brasileira.
Mesmo que não tenha os resultados desejados
na eleição municipal, está claro que a antipolítica multiplicará bastante o seu
número de candidatos a todos os postos em 2026. O grupo político mais atingido
por esse processo será o centro político, especialmente o chamado Centrão. Ele
ficará espremido entre o lulismo - ainda comandado por um grande líder popular,
com seu poder de ter a máquina federal e um eleitorado fiel de mais de um terço
do país - e o “partido” do antissistema, herdeiro do bolsonarismo, mas que pode
ir além dele ao evitar um acordo com a “velha política”. Líderes como Nikolas
Ferreira e Pablo Marçal, aliás, podem exercer melhor esse papel no futuro do
que o pai fundador do movimento.
O risco maior está na forma como,
paulatinamente, a antipolítica já está minando a democracia, antes que ela
própria seja substituída por qualquer autoritarismo. Sem dúvida alguma é
preciso combater os extremistas antissistema, mas também é fundamental melhorar
a política democrática. Desde a redemocratização, nunca a classe política teve
tantos privilégios e esteve tão insulada da sociedade civil. A desmoralização
da política favorece o radicalismo do discurso ao estilo “que se vayan todos”.
O governismo lulista, o Centrão e a parcela
da sociedade que de fato representou a “Frente Ampla” precisariam pactuar uma
nova forma de atuação para aumentar a confiança da sociedade no sistema e
enfraquecer a antipolítica. Até porque o risco da ilusão momentânea é grande.
Como no filme, o bandido Pinguim não ganha a eleição em Gotham City e em 2026
se evita a volta do radicalismo autoritário. Porém, por quanto tempo o vulcão
extremista e autoritário vai ser contido? Pior, quanto já está custando à democracia
a transformação do debate público num circo de horrores que permite gente
ligada ao crime organizado se vender como o mocinho da história?
Muito bom! Como conclui o colunista: "quanto já está custando à Democracia a transformação do debate público num circo de horrores que permite gente ligada ao crime organizado se vender como o mocinho da história?"
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