Valor Econômico
Entre os grandes problemas atuais, o
primeiríssimo da lista é a questão ambiental e climática. A resolução dela é
essencial para evitarmos uma destruição enorme de nossas estruturas econômicas
e sociais
Países que não enfrentam urgências severas
podem pagar um custo muito alto. E não se trata apenas dos efeitos mais
imediatos, capazes de matar pessoas, como na pandemia de covid-19, ou gerar
recessão e perda de empregos. Algumas questões prementes têm consequências
temporais mais longas.
O Brasil tem hoje temas urgentes a enfrentar
que podem piorar as condições de curto e de longo prazo. Se a sociedade não se
mexer para tirar a classe política do modo tartaruga ou avestruz de ser,
teremos uma década muito difícil pela frente, com perdas que afetarão
fortemente a qualidade de vida dos cidadãos.
A procrastinação das urgências é uma marca da
história brasileira. A abolição da escravatura é o melhor exemplo. O país tinha
sido colonizado por um padrão escravocrata que gerara uma sociedade muito
desigual, embebida na barbárie. O patriarca da Independência, José Bonifácio,
já propusera em 1823 o fim gradual da escravidão, que teria terminado, se sua
proposta tivesse sido aceita, na década de 1850.
Mas o fim desse modelo bárbaro só se deu em 1888, quase 40 anos depois do que imaginava o membro mais ilustrado da elite brasileira. E assim o Brasil foi o último país ocidental a sair da lista infame dos que escravizavam pessoas, com efeitos terríveis no curto prazo de então e consequências nefastas até hoje.
A resolução da questão educacional passou por
um processo ainda mais longo de procrastinação. Embora a primeira legislação
(Lei da Instrução Pública) seja de 1827, o acesso e a permanência das crianças
pobres na escola só foi efetivamente garantida depois da Constituição de 1988!
Durante mais de 160 anos, a imensa maioria da
população infantil não teve suas oportunidades educacionais garantidas, gerando
uma desigualdade profunda. Ou não havia vagas e infraestrutura escolar por
perto ou então, e da forma mais relevante depois da Segunda Guerra Mundial, o
processo pedagógico fora montado para expulsar os estudantes mais pobres dos
níveis mais altos de escolarização, com taxas de repetência e distorção
idade-série gigantescas, colocando o Brasil entre os líderes no fracasso
escolar pelo mundo.
Ao perder o acesso às oportunidades
educacionais, a grande maioria da população tinha menos chance de ascensão
social. Por décadas o Brasil reproduziu essa enorme desigualdade em termos de
formação escolar, com efeitos para os que viviam aquilo e para seus filhos,
netos e bisnetos.
Começamos a mudar esse cenário recentemente,
mas ainda há uma longa lista de urgências no campo da educação, como o
investimento na primeira infância e a transformação do ensino médio numa
alavanca para o desenvolvimento dos jovens.
Apesar desse triste legado, em alguns
momentos o Brasil soube lidar satisfatoriamente com as urgências. Assim foi com
o trabalho liderado por Oswaldo Cruz no combate à febre amarela, que reduziu
drasticamente a doença num curto período de tempo, produziu reformas sanitárias
e gerou uma geração brilhante de cientistas, pais fundadores do sanitarismo
moderno cujo filho mais dileto é o SUS, um marco civilizatório para o país.
Vargas também soube na década de 1930 criar
um novo padrão de desenvolvimento de que o país precisava urgentemente, acima
de tudo para tirar a nação do ruralismo arcaico e oligárquico. Contra a
República Velha, a ação varguista foi essencial para a industrialização e
urbanização do país. Além disso, foram criadas as bases de uma administração
pública moderna, mesmo que em apenas algumas parcelas do governo federal, mas
que geraram sementes para outras transformações no Estado brasileiro no século
XX.
Nem toda a modernização varguista foi
perfeita, pois havia incompletudes e fragilidades em seu projeto, como a
ausência de um projeto educacional e seu modus operandi autoritário, depois
copiado pelos militares no poder. No entanto, para os desafios daquela época,
Vargas foi um grande reformador.
No período mais recente, é possível destacar
dois eventos em que o sentido de urgência venceu a letargia e produziu
transformações positivas. Um foi o Plano Real, que, aprendendo com o fracasso
das iniciativas anteriores, gerou uma enorme mudança no padrão inflacionário do
país e plantou, ao longo de alguns anos, reformas que têm garantido uma
estabilidade econômica inédita na história do Brasil. Ainda há tarefas
importantes no front econômico, mas sem esse passo estaríamos tal qual a
Argentina de hoje, com um novo populista - no caso, extremista autoritário -
tentando corrigir os erros anteriores dos populistas peronistas.
O outro exemplo é o da Constituição de 1988,
que propôs um novo modelo civilizatório baseado nos direitos dos cidadãos.
Deu-se um sentido de urgência ao combate das desigualdades e à construção da
democracia, tarefas postergadas por quase toda a história brasileira.
Desse pacto constitucional emergiram várias
reformas durante três décadas, com melhorias evidentes na vida da população.
Entretanto, a realidade mudou bastante e novos (e enormes) desafios têm
surgido. Só que o ímpeto reformista da redemocratização perdeu o fôlego.
O Brasil precisa recuperar o sentido de
urgência frente a alguns temas para não perder o rumo da história. Entre os
grandes problemas atuais, quatro se destacam pelo tremendo impacto que podem
causar hoje e no futuro da sociedade brasileira. O primeiríssimo da lista é a
questão ambiental e climática. A resolução dela é essencial para evitarmos uma
destruição enorme de nossas estruturas econômicas e sociais. Não haverá
agronegócio sem equacionarmos tal problema, bem como teremos menos águas para
consumo humano, uma qualidade do ar insuportável e perda irreparável da fauna e
da flora. Em suma, trocaremos a riqueza de nossa diversidade territorial pelo
cenário distópico dos desastres sem fim.
Muitos chamariam esse cenário de fantasioso
antes de o Brasil se transformar numa grande labareda que se espalhou por
grande parte do território nacional. A necessidade de uma autoridade climática
é para ontem e sua urgência deve vencer tanto os negacionistas e os que só
pensam em manter seu modo arcaico de produzir riqueza, quanto os que acham que
o desenvolvimento industrial e energético do século XX tem algum futuro.
A segunda urgência que assombra o Brasil
atual é a do crescimento do poder e da influência do crime organizado. Quando
as pesquisas constatam que os eleitores das capitais consideram a segurança
pública o seu maior problema, candidatos apresentam soluções tópicas para
reduzir a sensação de medo da população.
Muitas dessas propostas não estão erradas em
si, mas elas contornam a causa maior da violência urbana: são grupos
organizados, com franca entrada em setores estatais, que produzem os crimes em
larga escala. E para manterem essa força, as facções criminosas têm entrado na
política eleitoral, inclusive apoiando candidatos em grandes cidades. Será que
estamos próximos de ter um Al Capone governando alguma capital brasileira?
A ação conjugada de todos os entes
federativos, o investimento maciço em inteligência policial, a
profissionalização de todas as organizações da segurança pública, a
transformação do sistema penal e penitenciário para que ele não seja um
combustível para termos mais criminosos, entre os pontos principais, são
tarefas fundamentais. Mas tais reformas precisam de lideranças e de consensos
mobilizadores, sem os quais o crime organizado continuará aumentando seus
tentáculos.
O enfrentamento de qualquer urgência depende
da melhoria da efetividade das políticas públicas. Está aqui um terceiro ponto
que não tem merecido a atenção devida. Pensa-se em geral a reforma
administrativa como corte de custos, o que pode ser até um dos objetivos. A
tarefa maior, contudo, é melhorar o desempenho do Estado brasileiro. Além do
mais, é preciso atuar em temáticas que não estão no topo das prioridades da
agenda pública. O crescimento do eleitorado que apoia propostas extremistas
e/ou exóticas será tanto maior quanto menos avançarmos na gestão pública.
Entra aqui a urgência das urgências, pois é o
pontapé inicial para a mudança: a democracia brasileira tem sido garantida
pelas instituições e pelos atores políticos, porém tornou-se fracamente
reformista num cenário de grandes desafios.
Boa parte da classe política precisa ser
retirada de seu mundo paralelo e ensimesmado, cheio de recursos públicos e
formas de proteção frente aos controles social ou institucional, lidando com os
problemas efetivos do país pela combinação do modo tartaruga com o
comportamento avestruz.
Na verdade, esse é um retrato que capta mais
a arena congressual e dos partidos. No caso do Executivo federal, falta uma
combinação de inovação, ousadia e poder para lidar com o seu novo lugar no
presidencialismo de coalizão. Daí que a mola que poderia alterar essa situação
está na organização da sociedade. O problema é que ela está cada vez mais
fragmentada e seus grupos organizados têm, em geral, dificuldades hoje de
apresentar uma visão mais global que ultrapasse os seus interesse imediatos.
De todo modo, o sentido de urgência precisa
ser recuperado para garantir não só um futuro melhor, como evitar a perda das
conquistas dos últimos 30 anos. Seria preciso recuperar a conexão entre uma
sociedade civil, no sentido que havia na redemocratização, com a classe
política. Tarefa muito complexa, mas que já não pode ser mais adiada.
Muito bom!
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