O Globo
Os brasileiros precisam obter licença para
comprar caixa de fósforo. Eles as transformam facilmente em armas de fogo
O avião decolou à noite, em Brasília,
e, ao ganhar altura, seus motores produziram um som regular e monótono. “Dez
mil pés”, diz o piloto ao microfone. Encostei a cabeça na cadeira e me preparei
para entrar naquele longo túnel escuro, sabendo que, no fim dele, encontraria
os refugiados venezuelanos e os maltratados ianomâmis, que, nas aulas de
antropologia, são vistos como povo cheio de orgulho.
Esperava uma nova onda migratória depois que a oposição ganhou, mas não levou, a eleição na Venezuela. Vejo famílias caminhando pela BR-174, em busca de água para banho. É a nova leva, pós-eleitoral, que chega aos milhares a uma Roraima exausta. Minha ideia era me concentrar só nisso. Faria também uma curta viagem a Lethem, na Guiana, e me atualizaria sobre os ianomâmis.
Um cego vendendo balas nas filas enormes,
crianças brincando de fazer casa com pedaços de papelão, velhos sonhando com o
asilo para trazer suas mulheres doentes e conseguir salvá-las no Brasil, um
arquiteto chorando de emoção diante da chance de recomeçar. É o quadro em
Pacaraima.
Essas multidões em trânsito — tangidas pelas
guerras, ditaduras e desastres naturais — são a humanidade em movimento e o
tema recorrente da política na Europa e nos Estados
Unidos. O mundo nem sempre reconhece seu drama, envolto no
espetáculo cotidiano. O Brasil não percebe tanta gente batendo à porta, porque
a discussão central é a cadeirada de Datena em Pablo Marçal.
Lado político, ético, jurídico e até fisiológico, a imagem da cadeira quebrando
no peito de Marçal eletriza o país.
Fora, a trama tecnológica da espionagem
intriga o mundo. Explodem os pagers do Hezbollah, os walkie-talkies, não se
sabe o que pode explodir mais no Líbano, terra dos meus antepassados. Talvez
liquidificadores, micro-ondas, aparelhos de audição, máquinas de lavar,
marca-passos, próteses de titânio, todo artefato sólido se desfaça em mil
fragmentos.
A discussão sobre a cadeirada iria mais longe
se a fumaça dos incêndios nos desse mais fôlego, se não tivéssemos de cuidar
dos pulmões ameaçados em grande parte do país. Deveríamos ter levado a sério os
conselhos de Tom Jobim.
Os brasileiros precisam obter licença para comprar caixa de fósforo. Eles as
transformam facilmente em armas de fogo, incendiando matas e lavouras.
É preciso cavar espaço para falarmos de uma
ditadura que mata, tortura, comete violência sexual e faz fronteira com o
Brasil. Não estou me baseando apenas em relatos de gente que foge da Venezuela.
A violência do governo Maduro foi tema de um relatório da ONU que,
a julgar pela descrição dos seus crimes, põe a Venezuela entre as ditaduras
mais cruéis do planeta.
E, se pudermos nos sentar na cadeira, seria
interessante falar sobre eleições, sobretudo na grande metrópole. É arrogância
dar sugestões, posso apenas perguntar. Num lugar tão poluído e com tantas
doenças respiratórias, não seria razoável um projeto para reduzir esses males?
Numa cidade com tanto asfalto e cimento, não seria interessante construir, por
meio das plantas, esponjas para absorver as águas, como já fazem os chineses?
Com tantas ilhas de calor, não seria interessante um projeto para atenuar a vida
nesses espaços? O planeta só esquenta.
O calor aqui em Roraima é muito forte. Os
incêndios vieram e se foram mais cedo. Quando começa a noite, chove
intensamente, a tempestade quebra o vidro dos hospitais, corta a luz, ouvimos
apenas o barulho da água caindo e vemos relâmpagos, tudo no escuro, o que nos
dá uma sensação de tempos ancestrais e um desejo de recomeço do mundo,
sobretudo daqui para baixo, no lugar que um dia se chamou Vera Cruz, Santa Cruz
— vocês sabem do que estou falando.
Há seca em grande parte da Amazônia, os
incêndios aqui produzem mais emissões de CO2 que a Noruega. E aqui
estava a esperança do mundo, que, por sinal, emudeceu diante de sua tragédia.
"A humanidade em movimento"! Sim, Gabeira está certo novamente. Difícil pensar em humanidade em evolução diante do quadro que o colunista nos mostra.
ResponderExcluirPerfeito
ExcluirQuanto sofrimento!
ResponderExcluirAssim caminha a humanidade, já disse alguém anteriormente.
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