segunda-feira, 16 de setembro de 2024

James Hawes - Extremismo DOC

CartaCapital

A vitória eleitoral da AfD é, antes de tudo, um fenômeno sociocultural da porção leste da Alemanha

A mídia está cheia de muros corta-fogo (Brandmauer) em ruínas na Alemanha. As eleições estaduais na Turíngia deram a primeira vitória à extrema-direita desde 1945, na região em que os nazistas conquistaram pela primeira vez o poder regional, em 1929, e na data em que Adolf Hitler invadiu a Polônia em 1939. “O Leste fará isso.” A campanha da Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em alemão) misturou os temas habituais do populismo de direita com a sugestão de que o Leste do país é onde a verdadeira Alemanha resiste aos horrores liberais do multiculturalismo e da energia eólica.

Um comentarista em pânico anuncia: “Só há uma maneira de manter sob controle a AfD, a extrema-direita alemã. Abordar as preocupações que ela explora” com um “debate construtivo sobre questões delicadas”. Outros estão horrorizados com o fato de a União Democrata Cristã (CDU), de centro-direita, estar de repente concentrando seu poder de fogo nacional nos Verdes, ninguém menos. Os conservadores alemães estariam a copiar todos os conservadores centristas dos últimos anos (agradeça, Boris Johnson) e a adotar as táticas de ataque dos populistas de direita? Esse é o muro de proteção que realmente importa, e se ele desaparecer…

Alguns fatos. Na última eleição na ­Turíngia, em 2019, a AfD obteve 23,4% dos votos. Neste ano teve 32,8%. Considere esse intervalo de tempo: Covid, guerra na Ucrânia e a crise energética causada pela cega dependência alemã do gás de Vladimir Putin. Um país liderado por uma coalizão fragmentada sob um chanceler cujo partido obteve menos de 26% e que parece fazer tudo (se é que faz alguma coisa) atrasado e de má vontade. Cinco anos de um terreno fértil ideal para o populismo “antissistema” e teorias da conspiração, ao fim dos quais a AfD conseguiu atrair menos de 10% de eleitores a mais em seu estado mais forte. E na Alemanha, é claro, ser o maior partido não significa que ele “ganhou”, porque (imagine a racionalidade) seus assentos são proporcionais a seus votos. Sem uma maioria absoluta, tudo o que ele ganha é a primazia numa coalizão. Se todos se recusarem a trabalhar com ele (digamos, por ser um fascista pró-Putin), ficará difícil. Então, a AfD não governará de fato a pequena Turíngia (apenas 2,5% da população alemã, e encolhendo), não haverá caminho para ela no governo central (a última pesquisa nacional lhe dá 17,4%) e o centro moderado alemão estará realmente a se manter, apesar de tudo, melhor do que em qualquer outro lugar da Europa, com os quatro principais partidos pró-Otan e pró-União Europeia com quase 63% de apoio.

Os alemães ainda são informados, no entanto, de que devem abordar as “preocupações” dos eleitores da AfD. Ou que tal admitirmos que, apesar de o Muro de Berlim ter desaparecido há mais tempo do que ele existiu, a parte oriental da Alemanha continua profundamente diferente, não porque a arrogante porção ocidental tenha sido tão autoritária depois de 1990, nem mesmo por causa dos 40 anos de ocupação soviética. Por causa da história.

Uma palavra: colonialismo. Em 1147, Colônia, Bonn, Mainz e Frankfurt eram centros de mil anos da alta Idade Média europeia. Desde o dia em que o próprio Júlio César os nomeou, ninguém jamais contestou que os povos germânicos viviam na Germânia. Berlim era uma vila de pescadores fluviais eslava. Naquele ano, o braço norte da Segunda Cruzada enviou cavaleiros germânicos para cruzar à força o Rio Elba, com a intenção de converter e conquistar os pagãos eslavos e bálticos. O resultado foi uma colonização quase total de língua germânica na ­Transelbia mais ocidental (quase: os sorábios permanecem como testemunhas, ao norte de Dresden). Mais a leste, na atual Polônia, a terra sempre permaneceu disputada entre colonos em massa e nativos, enquanto mais a leste ainda, na atual Rússia/Lituânia, o estado dos Cavaleiros Teutônicos estabeleceu o domínio total da elite colonizadora sobre os camponeses locais. Em 1525, foi o primeiro a adotar Lutero, renomeando-se Prússia, em homenagem a uma tribo nativa que havia esmagado.

É uma longa história, mas o resultado foi o paradigma colonial que encontramos com tanta frequência, seja no ­Quênia britânico, na Argélia francesa, no Ulster legalista ou nos assentamentos ilegais de Israel. Ela também se aplica, com diferenças óbvias, aos antigos estados escravagistas dos Estados Unidos.

No fim do século XVIII, a Prússia estava no radar como a cultura mais militarizada da Europa. Como disse Voltaire: “Outros Estados têm exércitos. Na Prússia, o exército tem um Estado”. A espinha dorsal dessa Prússia, que ainda coroava seus reis em Königsberg, eram os junkers (aristocracia latifundiária) da Prússia Oriental e Ocidental. Em troca da lealdade total à casa real de Hohenzollern, eles tinham acesso exclusivo ao corpo de oficiais e ao alto governo. Em suas propriedades, muitas vezes vastas, mas pobres, eles eram (como a Ascendência Protestante na Irlanda georgiana) não apenas os proprietários das terras, mas os magistrados e comandantes de milícias: poloneses, bálticos e russos trabalhavam para eles, sob um nível mais privilegiado de arrendatários alemães. Estes, subordinados coloniais mais favorecidos, apegavam-se aos junkers e suas casas grandes e (depois de emancipados) votavam neles. A sociedade resultante era tão completamente diferente do Oeste amplamente católico que, na década de 1890, Max Weber, o fundador da Sociologia, decidiu que precisava ter seu próprio nome: Ostelbien (“Elbia Oriental”).

Em termos nacionais, a AfD aparece com 17,4% da preferência do eleitorado

Isso levou à política desequilibrada da Alemanha imperial tardia, dividida entre os objetivos sociais e militares dos industriais ocidentais (basicamente, suplantar o império britânico antes que ele se ligasse aos Estados Unidos) e os dos junkers (basicamente, esmagar a Rússia antes que ela ficasse forte demais). Foi isso o que, no fim das contas, levou a uma guerra suicida em duas frentes.

O Estado-maior prussiano mostrou sua mão colonial de 1915 a 1918, quando o alto-comando (Leste) governou um grande pedaço de terra conquistada no Leste sem supervisão civil: uma colônia militar para produzir alimentos para a pátria-mãe (usando trabalho forçado, naturalmente) e ser o trampolim para a conquista total da Rússia, o que eles insistiram em tentar no início de 1918, quando poderiam ter qualquer acordo razoável que quisessem, apesar de saberem que os norte-americanos estavam chegando ao Oeste. Só recentemente é que alguém realmente examinou essa abertura prussiana à Operação Barbarossa de Hitler.

Após a derrota, os alemães orientais continuaram a votar como antes. O ­DNVP (Partido Nacional Popular Alemão, o segundo maior na República de Weimar em 1924), antidemocrático, anticatólico, antijudaico e ligado a assassinos, dependia quase totalmente dos votos orientais. E quando chegou o dilúvio, veio do Leste: se todos os lugares na Alemanha tivessem votado da mesma forma que a Renânia e a Baviera em 1930-32, Hitler não teria conseguido – e ele ainda precisou de apoio do DNVP, que (como sempre) obteve praticamente todos os seus votos do Leste.

Esse passado colonial não é história, nem mesmo é passado. Meu sogro, morto em 2017, era um proprietário de terras na Prússia Oriental. Seu mundo de infância nas décadas de 1920/30 (hoje parte da Rússia) era uma colônia alemã: um cavalariço russo o ensinou a montar e seus pais falavam lituano com seus arrendatários. Há dezenas de milhares de cidadãos ainda vivos, na Polônia e na Alemanha, que na juventude poderiam ter sido baleados, de ambos os lados, por chamar sua cidade natal pelo nome errado (­Posen ou Poznan? Colonial ou nativa?). E a mentalidade colonial sempre dura muito mais do que qualquer perigo real. Por isso, o Leste alemão sempre votou diferentemente do Oeste alemão, e ainda vota. Não estamos a tratar de “preocupações” racionalmente abordáveis, mas de uma divisão política e cultural mais profunda do que a linha Mason-Dixon nos Estados Unidos, e muito mais antiga.

A CDU, ao que parece, percebeu que o futuro político da Alemanha tem se desviado do confortável sonho de democracia pós-guerra da Alemanha Ocidental, o que significa que mais ou menos todo mundo está mais ou menos satisfeito mais ou menos o tempo todo. Em vez disso, dirige-se para algo mais como os Estados Unidos azuis/vermelhos. Como diz o historiador Adam Tooze, “se a Alemanha operasse um sistema de maioria simples, a CDU varreria a maior parte do Oeste da Alemanha e a AfD tomaria todo o Leste”. Por isso, a CDU reage ao sucesso da AfD no Leste atacando os Verdes no Oeste. Não há nada de louco nisso: eles estão simplesmente na campanha para 2025 como se a Alemanha Oriental e a Ocidental fossem dois campos de batalha políticos completamente diferentes.

E por que não? A Baviera, o maior e um dos mais ricos estados alemães, é permanentemente governada pela União Social Cristã (CSU), que nem aparece em qualquer outro lugar. Sim, é difícil desistir do sonho de uma democracia consensual, e a Alemanha, com sua história, compreensivelmente tem medo do que poderá vir em seu lugar. Mas quanto mais de perto se olha a imagem de um Estado-nação cultural e politicamente homogêneo, mais parece uma fantasia do século XIX, cujo propósito real era construir uma cultura nacional inventada, pronta para ser imposta a um império.

A “reunificação” não pode ser desfeita agora, mas ao menos tem um consolo embutido. Metade do Leste alemão desapareceu para sempre em 1945, a boa libertação colonial. Como disse meu falecido sogro: “Eu, sentir falta da Prússia Oriental? Falta de quê? Trinta graus de gelo e os russos do outro lado do rio?” Ela não tem mais força para destruir tudo, e sua política não se espalhará para a Renânia, assim como Nova York não adotará as leis de armas da Virgínia Ocidental, pois a Alemanha ainda tem o maior muro de proteção de todos: a divisão Leste–Oeste. Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1328 de CartaCapital, em 18 de setembro de 2024.

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