Folha de S. Paulo
Um ministro julga ser a própria lei, e o povo
paga a conta do cabo de guerra
Aconteceu. Desde a meia-noite de domingo eu e
milhões de brasileiros perdemos
acesso à rede X. Não havia lugar melhor para sentir o pulso
instantâneo do debate público e ver as reações imediatas de todos os lados. O
povo pagou a conta de um cabo de guerra entre um bilionário megalomaníaco que
se julga acima da lei brasileira e um ministro do Supremo que julga ser a
própria lei.
Esse desfecho era juridicamente inevitável dado o passo imediatamente anterior: a desobediência reiterada de decisões judiciais, o não pagamento das multas e o fim de qualquer representação no país.
O que era evitável foram decisões ligadas a
essa: o bloqueio
das contas da Starlink, apenas por ter um sócio em comum —o que
abala a segurança jurídica empresarial e põe em risco a conexão a centenas de
milhares de brasileiros— e a multa a quem acessar o X usando VPN (serviço que
mascara a localidade do usuário, permitindo furar bloqueios geográficos).
Mas a suspensão do X não visa justamente a
empresa? Então por que motivos seus usuários devem ser multados? A ordem
original de Moraes ia até mais longe: proibia lojas
online da Apple e do Google de ofertar aplicativos de VPN, que
têm uma série de usos em nada relacionados ao X. O fato de o próprio ministro
ter, horas depois, recuado quanto a essa proibição de baixar aplicativos é
evidência do quão equivocadas podem ser decisões tomadas no calor de um
conflito.
Isso para não falar das ordens originais e
sigilosas —já publicadas por Musk— que motivaram o conflito. Uma campanha quase
obsessiva de Moraes contra o notório produtor de fake news —e hoje irrelevante—
Oswaldo Eustáquio. E a decisão de tirar o perfil do senador
Marcos do Val. Será que a democracia corria risco com posts
desses dois em 2024? Derrubar suas contas valeu prejudicar milhões de cidadãos
e empresas?
Quem diferencia críticas legítimas ao Supremo
de ameaças a ele? Quem determina quais expressões ferem ou não a democracia?
Quando tudo é investigado e julgado por um mesmo ministro, que ainda age sob
sigilo, não há como coibir abuso algum.
Cada nova ordem de Alexandre de
Moraes para derrubar perfis gera mais revolta contra o Supremo.
Desde que a punição a usuários foi anunciada, diversos perfis de aspirantes a
mártir começaram a postar nas redes usando o VPN, num desafio aberto. Além do
ganho de notoriedade, uma possível punição os cacifará para voos políticos mais
altos.
Hoje, os outrora banidos postam livremente no
X, um bilionário ri de nossas leis e cria incidentes internacionais, e o povo
paga a conta dos inquéritos excepcionais que não têm mais uma ameaça real a
combater. Ou o Supremo se autocontém, colocando fim a esses inquéritos,
restaurando a normalidade e a transparência, ou o Congresso limita
o Supremo ou a população ficará cada vez mais polarizada e revoltada.
Atacar o sistema jurídico já virou um atalho
para o sucesso político. E a política, nesta época de redes, é mais do que
capaz de entregar candidatos que prometam a ruptura. Hoje, nos municípios;
amanhã, em Brasília. Sob a justificativa de proteger a instituição, os
ministros —unidos em seu corporativismo— minam sua legitimidade.
''O congresso limitar o Supremo'',nem pensar.
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