terça-feira, 17 de setembro de 2024

Joel Pinheiro da Fonseca – A virtude da autenticidade

Folha de S. Paulo

O candidato do PSDB fez aquilo que seu coração mandou, sem autocensura

Datena mostrou-se desequilibrado e violento na lamentável cadeirada que desferiu em Pablo Marçal. Há, contudo, um adjetivo positivo que não lhe podemos negar: ele foi autêntico. Fez aquilo que seu coração mandou, sem autocensura.

E não é isso que mais valorizamos em nossos representantes hoje em dia? Só de falar como eu gostaria de falar —sem papas na língua, falando o que sente, sem medo de ofender; ou melhor, querendo ofender— já se torna um herói popular. Se acusar a todos de crimes hediondos sem provas, como faz Marçal, é bonito, por que não também a agressão? Refrear o ato das mãos e forçar-se a verbalizar nossos impulsos é já uma forma de matar nossa reação vital.

Levada à sua conclusão lógica, a autenticidade pura termina justamente na agressão física. Já que nenhum de nós quer que a política dê lugar à guerra (estamos de acordo nisso, não?), precisamos nos indagar sobre os limites da autenticidade. Quais outros valores importam?

Em favor da autenticidade, reconheço um ponto: a linguagem política profissional é intragável. Ela domina maneiras sofisticadas de apagar a própria responsabilidade por coisas ruins; sabe ser ambígua para não se comprometer futuramente; sabe inclusive transmitir segurança no uso da linguagem pretensamente técnica para fingir competência. É arredondada, diplomática, pretensamente séria. E, por isso mesmo, engana.

Uma linguagem que quebre com isso, que fale a língua do cidadão normal, já é uma ponte para se identificar com ele. Melhor o assumidamente imperfeito do que a perfeição fingida da política. Sim, o "não político" pode cometer erros, pode falar besteira às vezes, mas "diz a verdade". Não a verdade literal dos dados, e sim uma verdade interior: a da revolta com a política tradicional (e da imprensa), que, mesmo sabendo articular dados e fatos quando lhe convém, o faz justamente para enganar e manter tudo como está.

Na raiz disso está a revolta contra a política tradicional, descartada em bloco como se fosse "tudo a mesma porcaria" indigna de qualquer crédito. Mas é claro que não é tudo a mesma porcaria. Na política, assim como em todas as áreas, existem melhores e piores. Há aqueles que deixam em sua cidade um legado de instituições e programas que seguem funcionando em benefício da população e aqueles que deixam um vazio de escândalos e obras abortadas. Selecionar os melhores e rejeitar os piores é parte do aprendizado.

Uma pessoa que tenha dificuldade de se expressar e por isso prefira textos ensaiados será bem pouco autêntica em suas falas, mas nem por isso má gestora. A entrada de novos rostos e novos jeitos de se comunicar é muito bem-vinda, mas não torna desnecessário o senso crítico do eleitor. A autenticidade promete mudança. Mas essa mudança dá algum indício de que será para melhor?

Frases duras contra quem eu não gosto; saber enfurecer os membros do lado contrário ao meu. Capacidade de causar barraco em debates. São características positivas num programa de TV ou num post de redes sociais. O trabalho de gerir uma cidade e decidir como investir seus recursos de forma a melhorar a vida dos cidadãos precisa de outras capacidades além dessas.

 

4 comentários:

  1. Difícil não concordar com o colunista, pois denota bom senso.

    Mas vamos ao que ( supostamente ) interessa :

    • Milhares e milhares sentiram-se representados por um candidato/" herói que não usa capa " ( mesmo a maioria tendo consciência de que ele também é um farsante )

    • A cadeirada proporcionou diversão garantida ( especialmente na forma de memes ) para milhões, inclusive eu e meus amigos

    • O fato gerou engajamento em todas as mídias, e diversos veículos exploraram o acontecimento e continuarão a explorá-lo até a última gota

    • Parte do eleitorado não é tão ingênua a ponto de não saber avaliar/julgar os canditatos oferecidos pelos partidos.

    • Os canditatos que temos à nossa disposição são oriundos da própria sociedade e, em grande parte, refletem os interesses, valores e práticas de boa parte da população.
    Eles não vieram de Marte.

    • Destaco um dos pontos apresentados por Marcelo Coelho em sua coluna no Poder360: propostas e projetos apresentados por canditados não passam de, em grande medida, promessas que podem ou não ser cumpridas ao sabor das circunstâncias. Daí que boa parte do eleitorado já não tem mais muita paciência com discursos vazios.

    • Mesmo com o clima generalizado de ressentimento de quase todos em relação aos políticos profissionais, parte do eleitorado sabe identificar quais deles estão realmente trabalhando e lhes confere bons índices de aprovação.

    • Impossível quantificar com precisão, mas as pessoas não são tão ingênuas ou alienadas como alguns possam imaginá-las, e, se a internet deu voz a milhares e milhares de imbecis, ela também possibilitou o acompanhamento quase que instantâneo dos acontecimentos. Os veículos tradicionais já não possuem o monopólio das narrativas e da seleção dos " fatos " para divulgação. Faz parte da democracia.

    • ( Quase ) todos saímos ganhando com a cadeirada, sua repercussão e desdobramentos.

    😏😏😏

    ResponderExcluir
  2. Eu não acho que ofender alguém seja ''capacidade'',muito pelo contrário.

    ResponderExcluir
  3. Sim, o profissional colunista escreveu corretamente e pode ter obtido grande concordância com "suas" ideias. Mas o amador "Mais um amador" foi muito mais autêntico e verdadeiro, e mostrou um texto muito melhor e mais interessante que o do colunista. Parabéns pelo excelente comentário!

    ResponderExcluir