sábado, 28 de setembro de 2024

José Casado - Distraídos

Revista Veja

Propostas para as capitais mostram políticos sem rumo na saúde pública

Em Sucupira, o mais importante projeto do prefeito Odorico Paraguaçu era conseguir um morto para inaugurar o cemitério acabado. Em Fortaleza, a principal proposta de saúde pública do candidato a prefeito Eduardo Girão é construir um cemitério caiado para animais domésticos futuramente mortos.

Girão é senador do Partido Novo. Adquiriu o estranho hábito de carregar no bolso do paletó a reprodução em plástico de um feto, que costuma exibir nas horrendas encenações da sua campanha antiaborto no Senado.

Há anos, saúde pública é problema prioritário para sete em cada dez eleitores em todas as regiões. Nesta temporada eleitoral, no entanto, candidatos a prefeito resolveram tratar essa realidade de forma distraída, com platitudes, vulgaridades e muita marquetagem.

Pesquisadores de universidades do Rio e de São Paulo analisaram programas de saúde apresentados em 26 capitais por 69 candidatos de catorze partidos. Constataram que todos são a favor do Sistema Único de Saúde. Isso não significa nada, até porque ainda não se tem notícia de alguém que tenha sido eleito fazendo campanha contra a luz elétrica, a água encanada, o desenvolvimento social e econômico.

No entanto, vale lembrar: na maior cidade do país há pelo menos um candidato contra a vacina obrigatória. Ricardo Nunes, prefeito do MDB que tenta a reeleição, adotou modernas referências do atraso como Jair Bolsonaro, autodeclarado adversário da vacina contra a covid-19 na pandemia com mais de 700000 mortos. Essa forma de manipulação política impulsionou uma revolta contra a vacina antivaríola no Rio de 120 anos atrás. Resultado: faltou espaço nos cemitérios cariocas. O prefeito Nunes não quer vacina obrigatória, mas demonstra interesse em apostar o dinheiro dos impostos municipais em certas miragens científicas, como as vacinas contra vícios em drogas.

Setembro está terminando com 1563 cidades (28% do total) sem estoque de alguns tipos de vacinas, em muitos casos há mais de noventa dias, informa a Confederação Nacional de Municípios. São as fragilidades da vida real que realçam o pauperismo dos programas para a saúde pública dos principais candidatos a prefeito das capitais, mostra a equipe de pesquisadores coordenada pelos professores Ligia Bahia (UFRJ) e Mario Scheffer (USP). Eles se perdem numa coletânea de concepções vagas, jargões e ideias fragmentadas.

Exemplo: no atendimento básico, ou atenção primária, no jargão médico, prevalece a lógica dos negócios em contratos de construção civil e de prestação de serviços. Há um padrão de promessas de novos postos de saúde, reformas, horário estendido e acessórios, como “emprego de mototáxi” e “distribuição de uniformes” para agentes comunitários.

Existem exceções, claro. Ao analisar ideias sobre atendimento especializado para consultas, exames ou cirurgias, os pesquisadores identificaram propostas mais objetivas no programa do candidato à reeleição no Rio, Eduardo Paes, prefeito do PSD, baseadas na reorganização iniciada nos centros e policlínicas da cidade.

Mas o atendimento a distância, via internet, virou moda entre candidatos a prefeito. Sobram projetos “poupa tempo”, “na hora” e “agiliza”. Promete-se “saúde digital” na atenção básica em Palmas (PL) e Teresina (PT); “tele-especialidades” em Rio Branco (MDB); tratamento por “videoconferência” em João Pessoa (PT); “telepsicologia” em Fortaleza (União Brasil); “medicina bioeletrônica” em Campo Grande (PP); “inteligência artificial” em Florianópolis (PSOL); e, até mesmo, uma espécie de milagre digital em Belo Horizonte (PSD): “O usuário do SUS-BH terá em mãos uma ferramenta que nenhum usuário de plano de saúde suplementar possui hoje”.

Proliferam promessas com o orçamento alheio. O combalido caixa do Ministério da Saúde seria responsável, por exemplo, por uma fatia dos programas de saúde municipal em Manaus (Cidadania) e em João Pessoa (PP). Em Fortaleza, o senador Girão (Novo) anuncia uma enigmática “cidade dos autistas”, com recursos da “cota” de emendas mantida pela oligarquia parlamentar no orçamento da União.

O vício da marquetagem nos programas para a saúde nas capitais mostra uma elite política sem bússola diante de um dos mais relevantes problemas nacionais. Em certo sentido, os atuais candidatos a prefeito das capitais ecoam o lendário Odorico Paraguaçu, criatura impagável do escritor Dias Gomes. Nas campanhas em Sucupira, ele sempre mandava estender uma faixa no palanque: “Vote num homem sério e ganhe o seu cemitério”.

Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912

 

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