domingo, 29 de setembro de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo e Nathan Caixeta - Palavras, coisas e poder

CartaCapital

A linguagem das finanças produz e enfeitiça as percepções dos sujeitos guiados pelo desejo

No período recente, especialistas e sabichões aplicaram seus palpites sobre a comunicação do Banco Central e o rumo futuro das taxas de juro. O tom geral exibido pelas colunas de opinião e editoriais é de que o “BC andou falando demais”. Essa “comunicação excessiva”, dizem os entendidos, aumentou a volatilidade sobre juros, câmbio e expectativas de inflação. O ideal para o mercado, dizem as vozes que ecoam nos corredores da Faria Lima, seria que o BC adotasse um comportamento autômato (não autônomo), seguindo as sugestões para a política monetária sinalizadas pelo boletim Focus e pela curva longa de juros.

Na posteridade da decisão do Comitê de Política Monetária do Banco Central esgrimiram-se controvérsias a respeito do acerto ou equívoco, porventura lobrigados nos embornais dos economistas da instituição “Independente”. Lá e cá, contra e a favor, os argumentos se cingiram a digressões sobre o cumprimento das regras do regime de metas e seus prováveis danos ou benefícios causados ao desempenho da economia ao longo dos próximos anos.

O debate é pertinente e necessário, mas podemos suspeitar que é insuficiente. Para asseverar a insuficiência é desejável registrar a dimensão inexoravelmente social e, portanto, política, antropológica e cultural da economia. Assim, somos constrangidos a conceber a economia como uma dimensão da vida social, condenada a compartilhar seus movimentos com as demais dimensões da convivência humana.

Vamos invocar o documento Considerações para um Discernimento Ético sobre Alguns Aspectos do Atual Sistema E­conômico-Financeiro. Publicado pelo Vaticano, esse documento assevera o afastamento da economia atual das condições de vida das pessoas de carne e osso. Comandada pela finança, a economia contemporânea tornou-se autorreferencial. Nóis cum nóis. É nóis.

Para o economista James Galbraith, o regime de metas de inflação não passa de xamanismo

No artigo The Rise of Autonomous ­Financial Power, Katharina Pistor indaga “se os Estados poderiam usar as finanças ‘para seu próprio empoderamento’ em vez de se submeterem ao poder das finanças”. Pistor exibe seu ceticismo diante do poder autônomo que as finanças acumularam em relação aos Estados. As razões podem residir não apenas na dificuldade que os Estados enfrentam para afirmar sua autonomia em relação às finanças. Os poderes dos mercados financeiros são infraestruturais: “Surgem e operam por meio de instituições que são amplamente consensuais e penetram profundamente na sociedade. Eles incluem os poderes de tributar, coletar informações, administrar a economia, mas também o sistema legal”.

Depois de o Federal Reserve reduzir a policy rate, o economista James Galbraith qualificou como xamanismo as políticas monetárias calcadas no regime de metas de inflação. Em uma definição rápida, o xamanismo é uma prática religiosa pela qual se acredita que um especialista treinado interage e influencia o mundo espiritual por meio de um estado de transe ou meditativo. Galbraith dispara: “Cada elemento dessa definição se aplica à formulação de políticas monetárias hoje, conforme ilustrado pela reação à decisão do Federal Reserve dos EUA, em 18 de setembro, de cortar a taxa de juros de curto prazo em 50 pontos-base”.

O filho de John Kenneth Galbraith comenta a celebração de Paul Krugman. O nobelizado exclama nas páginas de The New York Times: vencemos a inflação e a economia seguiu sua caminhada de crescimento. Krugman, em seguida oferece sua visão do ser espiritual específico. “Se Powell diz uma coisa, significa X; se ele diz outra coisa, significa Y.” De acordo com Krugman, “são as palavras e a especificidade” que importam. Ou, para colocar de outra forma, é o “estado de consciência culturalmente específico e roteirizado”. Isso, Krugman nos diz, “determinará o efeito nas taxas de juro de longo prazo e, portanto, no desempenho econômico”.

As palavras e seu significado são definidos socialmente. Em As Palavras e as Coisas, Michel Foucault trata da relação entre a linguagem e a estruturação material das sociedades ao longo da história. Foucault distingue a teoria da linguagem clássica, cuja soberania das palavras e conceitos era vinculada à propriedade natural e divina das coisas reais e visíveis, da teoria da linguagem esculpida por obra do Iluminismo, que colocou o homem e seu cogito como soberanos sobre as palavras e as coisas, igualmente reais e visíveis, mas, que a partir da época das luzes, foram subordinadas à designação dos desejos e da autonomia do próprio homem.

Foucault assegura que, no pleito dos novos saberes permitidos pelo Iluminismo, a análise da troca, da transferência entre formas da riqueza, se dissocia da análise moderna da linguagem. Enquanto a filosofia moderna tratou de humanizar e socializar os mecanismos cognitivos-comunicativos da linguagem, a economia política tratou de reificar as relações sociais de produção e de troca. O dinheiro foi algemado ao papel de símbolo genérico que tão somente transporta valores e utilidades. Por isso, assinala ­Foucault, a “história natural instaura, de si mesma, para designar os seres, um sistema de signos e, por isso, é uma teoria. As riquezas são signos produzidos, multiplicados, modificados pelos homens; a teoria das riquezas está ligada, de ponta a ponta, a uma política”.

Frisamos a palavra “política” que aparece para designar o conteúdo social da geração e da distribuição da riqueza. Designa também a dimensão do poder, do conflito e da constante necessidade de calçar os desejos particulares em uma forma geral que permite sua realização, ou seja, de atribuir significado ao simbólico. A linguagem é um fundamento elementar da vida em sociedade, mas também é um intenso modelador das formas de vida e de convivência. Quem comanda a linguagem, comanda a estrutura de poder na sociedade, e, portanto, a formação das ideias, a criação e assimilação dos hábitos, os desejos e necessidades, úteis ou inúteis.

O fenômeno mais representativo que expressa a relação entre o poder e a linguagem, e, mais ainda, da linguagem como forma de poder, é a colonização das capacidades cognitivas e comunicativas do sujeito moderno pela linguagem tecnofinanceira. A linguagem das finanças produz e enfeitiça as percepções dos sujeitos guiados pelo desejo, sobretudo pelo desejo de possuir e se apropriar, exclusivamente mediados e realizados pelo dinheiro, responsável por cingir a contradição entre o desejo da apropriação privada da riqueza social e sua conservação como potência, isto é, como símbolo privado de poder e distinção social.

Christian Marazzi sustenta que essa “natureza” peculiar do dinheiro é responsável por criar o universo de convenções sociais sobre as quais se assentam as decisões sobre a fixação e a conservação das formas da riqueza. “Quando, por exemplo, o Tesouro dos EUA escreve em uma nota de 20 dólares ‘Esta nota tem curso legal para todas as dívidas públicas e privadas’, não está apenas descrevendo um fato, mas, na verdade, criando um. É um enunciado performativo em que dizer algo torna esse algo verdadeiro… O ato linguístico-comunicativo é constitutivo do dinheiro.”

Dizem “inflação”, “crise fiscal”, na esperança de que do símbolo apareça a coisa

Nesta forma performática, a linguagem perde sua forma referencial e concreta. Desaparecem os significados substantivos responsáveis por articular o aparato cognitivo-comunicativo dos seres às percepções sensíveis que chegam à consciência individual e coletiva. Como resultado, aponta Franco Berardi, “o signo conectivo se recombina automaticamente na máquina da linguagem universal: a máquina digital-financeira que codifica o fluxo existencial. A palavra é conduzida para esse processo de automação, de modo que a encontramos congelada e abstraída em meio à vida esvaziada de empatia de uma sociedade incapaz de solidariedade e de autonomia”. Na impossibilidade da substantivação das percepções e a transformação destas em significados reais e concretos, as subjetividades humanas são suprimidas em favor de objetividades simbólicas que alimentam o culto ao ego, a obsessão aquisitivo-consumista, o dever e a prática do individualismo meritocrático.

A ideia da linguagem como máquina refere-se ao fato de que entre significados e símbolos existe a articulação dos desejos – de instantes criativos do inconsciente – com as necessidades conscientes, que realizam, eliminam e reinstauram o desejo simultaneamente. As ordens de compra e venda realizadas pelos comerciantes de dinheiro e de títulos de propriedade sobre a riqueza financeira respeitam um ritmo frenético guiadas por algoritmos potentes capazes de registrar ganhos e perdas em tempo real. O cérebro comunicante da finança capitalista funciona, portanto, por meio de estímulos simultâneos de orgasmo e castração, afirmação e negação, capazes de gerar euforia e terror, e que, quase sempre, obrigam governos e Bancos Centrais à submissão aos desejos privados.

A respeito da ação comunicativa dos Bancos Centrais, Marazzi é decisivo: “A soberania e a politicidade do dinheiro não são, em outras palavras, exclusivas de momentos de disfunção, de desequilíbrios temporários nos mercados, uma exceção que confirmaria o domínio da economia competitiva de mercado. A soberania monetária é, acima de tudo, de tipo dialógico, impregnada de ‘experimentos comunicativos’ destinados a forjar essa ‘confiança pública’ intangível, essa confiança pública indispensável para fazer funcionar toda a máquina econômico-monetária”.

O movimento recente do financismo brasileiro foi entregar às suas mídias e seus economistas o dever de sinalizar ­suas desconfianças. A despeito dos fatos, do crescimento da economia e dos empregos, usam da linguagem performativa para instalar o terror sobre os rumos da política monetária e fiscal. Dizem “inflação”, “crise fiscal” etc., na esperança de que do símbolo apareça a coisa.

Do outro lado do reino, onde habitam os cidadãos comuns, o capitalismo dominado pela linguagem performativa consome o potencial cognitivo da sociedade e o mobiliza para o reinado das formas simbólicas da finança e da tecnologia digital. Em sua dimensão recriativa (ou seria recreativa?), o capitalismo entrega aos que estão enclausurados em seu movimento um cardápio variado de opções para emular os prazeres e desprazeres da sociabilidade semiótica: likes, Prozac, bets, influencers, shorts, reels, reacts, games, coachs etc.

A incompatibilidade entre o fluxo de produção do desejo – os símbolos e signos ensinados pelo individualismo competitivo – e os meios de realização desse desejo conduz à castração dos sentimentos comuns de empatia, compaixão, amizade, amor e civilidade. Em contrapartida, os resíduos disparados pela máquina digital-financeira intoxicam os ambientes de sociabilidade, a escola, o trabalho, a universidade, o bairro, a comunidade e, por fim, a convivência democrática. •

Publicado na edição n° 1330 de CartaCapital, em 02 de outubro de 2024.

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