Folha de S. Paulo
E na mídia a fratura do sujeito singular
multiplica-se a tal ponto que a pessoa digital não mais corresponde à original
O casamento da
espanhola Vanessa Garcia consigo mesma foi noticiado pela imprensa como
pitoresco "fait divers", isto é, como evento insólito que se desvia
das normas naturais ou culturais. Essa expressão francesa, corrente no jornalismo do
século passado, caiu em certo desuso, mas não sua aplicação conceitual a
fenômenos semelhantes.
A passagem do tempo revela uma diferença
crucial. O fait divers clássico atraía pela confusão entre real e imaginário,
que dava margem a um texto fabulativo, como na ficção popular, impregnada por
enigmas, acaso e destino. Também em eventos quase anedóticos: "A velhinha
afugentou os assaltantes a tiros".
Com fatos dessa ordem, o jornalismo explorava o modo como o cotidiano podia corresponder à invenção romanesca, seduzindo leitores. Mas hoje, no campo da realidade digital, o inverossímil que pretende se tornar verdade adquire outro estatuto.
Assim é que, reeditando o mito de Narciso, Vanessa casou-se com a própria imagem, clara evocação do transe de assimilação do espelho eletrônico, a mídia, o que "não é explicado por uma relação imitativa, mas pelo feedback direto estabelecido entre a imagem e a realidade" (H.M. Enzensberger em "Guerra Civil"). Nessa indistinção entre imaginário e real, "a mídia fortalece a pessoa que se tornou irreal e lhe fornece uma prova de existência".
A mídia marca uma distância frente ao jornalismo tradicional, onde o sentido da notícia é singular, datado e relativo a uma conjuntura particular, enquanto o fait divers pertence a outro universo de discurso, com fundo intemporal e matéria mítica que dá sabor aos dramas. Na realidade eletrônica, entretanto, os dois se confundem, não se sabe mais quem é quem na atrofia autista da subjetividade.
No espelho, imagem não é o mesmo que pessoa física. E na mídia a fratura do sujeito singular multiplica-se a tal ponto que a pessoa digital não mais corresponde à original. Assim, por triunfo da simulação, Vanessa terminou casando-se com outra pessoa. A mesma lógica aplica-se ao que vem ocorrendo em relações eróticas mediadas por computador. Por envolverem duas pessoas, mesmo a distância, não se classificariam como prática solitária, mas como sexo real, sob o fetiche da máquina.
Afinal, o erotismo nunca foi da ordem da
fisicalidade exclusiva dos corpos. Relatos e compêndios conhecidos sobre a arte
erótica no passado indiano, chinês, japonês e árabe sempre fazem referência aos
artifícios que incrementam a esfera do prazer. A reprodução pode ser demanda
natural, mas não a complexidade simbólica da sexualidade, que é cultural.
Mas a degradação das relações humanas é um fator regressivo. A intensidade
do vício em pornografia arruína o sexo real. Eliseo,
protagonista da série argentina "Meu Querido Zelador" sentencia:
"relação sexual é coisa de neandertal". Senão de golfinho que,
solitário, vira tarado polimorfo.
Não se trata mais de crise do sentido, e sim de uma mutação radical, em que a
retração da partilha do corpo se acompanha do fim da partilha da fala e de um
recentramento estrutural do indivíduo sobre si mesmo. Talvez seja a face soft
do fascismo que vem, mas pode ser também abertura para uma redefinição da
sexualidade falocêntrica. Um aceno de adeus ao patriarcalismo.
Okays
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