sexta-feira, 13 de setembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Lula deveria acatar mudanças em estudo para o BPC

O Globo

Proposta sugere desvincular do salário mínimo a correção do benefício e aumentar idade para concessão

A equipe econômica deverá apresentar em breve ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva propostas do Ministério do Planejamento para rever as regras de concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), voltado a idosos e deficientes de baixa renda. Não faltam argumentos em favor das mudanças para tornar o programa mais justo, mais eficiente e, de quebra, ajudar a equilibrar as contas públicas. Duas medidas estão em estudo: corrigir o benefício apenas pela inflação, deixando de levar em conta o salário mínimo (cuja regra prevê ganho real) e aumentar a idade mínima para concedê-lo, de 65 para 70 anos. Lula deveria acatar ambas as sugestões.

Publicado em dezembro, um estudo do Banco Mundial sobre o sistema previdenciário brasileiro chamou a atenção para várias incongruências. Uma delas está no BPC. Ao comparar programas do tipo ao rendimento per capita em mais de 30 países, os pesquisadores concluíram que o valor no Brasil é alto demais. “A generosidade da atual aposentadoria não contributiva do BPC só é similar à de Trinidad e Tobago”, afirmam. Além de o benefício em si já ser generoso, o índice de reajuste — o mesmo do mínimo — também é camarada. A correção pela inflação já garantiria a manutenção do poder de compra para quem recebe o auxílio.

Outra distorção: pelas regras atuais, necessidades distintas são tratadas da mesma forma. Quem recebe BPC em geral tem filhos crescidos, não precisa gastar em vestuário ou transporte para ir trabalhar. Apesar disso, recebe o mesmo valor de quem tem filhos pequenos e recebe salário mínimo, com sistema de correção idêntico. Ao desvincular o reajuste do BPC do mínimo, o governo atenuaria a discrepância.

A regra atual para o BPC — o valor é idêntico mesmo para quem nunca contribuiu — é contraproducente e sem lógica. Quem contribui durante toda a vida produtiva ganha, na aposentadoria, o mesmo que quem pouco ou nada pagou ao INSS. Na tentativa de incentivar o recolhimento, o Planejamento examina a possibilidade de pagar um adicional aos que contribuem por algum tempo, mas não atingem o limite mínimo para aposentadoria.

Por fim, está em análise o aumento na idade mínima para concessão do benefício. Dado o envelhecimento da população, é outra medida que não deveria ser adiada. Estimativas do próprio governo reconhecem que, se nada for feito, os gastos com BPC saltarão de R$ 106,6 bilhões neste ano para R$ 140,8 bilhões em 2028. Nesse cálculo, já estão contados os R$ 47,3 bilhões que o governo pretende economizar com cortes de benefícios irregulares. Como essa economia é incerta, a despesa poderá ser bem maior. Não será surpresa se, apesar do pente-fino, o BPC em breve custar mais de 1% do PIB.

Mais de uma vez, Lula já afirmou não aceitar que os mais pobres paguem pelo ajuste das contas públicas. Tal objetivo é nobre num país com tamanha desigualdade social. Mas não pode servir de biombo para encobrir programas mal concebidos e regras injustas. É perfeitamente possível proteger da pobreza idosos e deficientes de baixa renda indexando o benefício que recebem à inflação da cesta básica consumida por essa parcela da população. Lula deveria lembrar que é socialmente injusto manter regras que incentivem a informalidade, o aumento do rombo da Previdência e o desequilíbrio fiscal — que alimenta inflação e pune, sobretudo, os mais vulneráveis que ele quer proteger.

É bem-vinda a iniciativa da CGU para acabar com sigilo de cem anos

O Globo

Prossegue sob Lula a prática comum na gestão Bolsonaro. Ela só se justifica quando não houver interesse público

Na campanha eleitoral, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu suspender o sigilo de cem anos que seu adversário, Jair Bolsonaro, determinara para informações de interesse público. “Farei um decreto para saber o que esse homem esconde por cem anos”, afirmou em debate na televisão. Um dos documentos trancafiados era o cartão de vacinação de Bolsonaro, cujo sigilo foi suspenso em 2023 por decreto de Lula. O documento se tornou foco de uma investigação por fraude. Mas, uma vez no governo, Lula manteve a prática.

Está sob sigilo a agenda de visitas à primeira-dama, Janja Lula da Silva, como acontecia com Michelle Bolsonaro. Também está vetada a divulgação dos gastos com o helicóptero presidencial, das despesas com alimentação no Palácio da Alvorada e das visitas dos filhos do presidente ao Palácio do Planalto. Chegaram a ser classificadas como secretas as imagens de câmeras de segurança da invasão do Planalto e do Congresso em 8 de Janeiro, até serem liberadas pelo Supremo. E continua em segredo a Declaração de Conflito de Interesses do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira. Obrigatória, essa declaração inclui dados patrimoniais, fiscais e pessoais, além de informar se há parentes exercendo atividades incompatíveis com a função.

A cultura da opacidade e do segredo continua a vigorar na alta administração pública. Por isso é bem-vinda a iniciativa da Controladoria-Geral da União (CGU), que acaba de preparar um projeto de alteração na Lei de Acesso à Informação (LAI) para acabar com o sigilo de um século. O Projeto de Lei, sob análise na Casa Civil, também procura acabar com o excesso de negativas a pedidos de informações com base na LAI sob o argumento de que elas são de cunho pessoal. Em 2022, último ano do governo Bolsonaro, 1.332 requisições foram negadas sob essa justificativa. No ano passado, 1.339. Mesmo levando em conta o aumento nos pedidos, ainda é um volume grande de vetos.

É razoável manter reservadas informações de cunho estritamente pessoal, desde que haja justificativas sensatas. Na prática, contudo, o caráter privado tem sido usado como pretexto para carimbar como sigilosas informações de interesse público, contrariando o espírito de transparência da LAI. Foi o excesso desse tipo de alegação que levou a CGU a preparar o projeto. Se aprovado, o servidor que vetar a divulgação terá de apresentar justificativas para a a falta de interesse público. E as informações pessoais poderão ser consultadas depois da morte do agente público afetado pelo sigilo.

Outro projeto que acaba com o sigilo de cem anos tramita no Senado. Seu autor, senador Carlos Viana (Podemos-MG), justifica a iniciativa com base nos “abusos por parte de governantes e órgãos de Estado, que têm se negado a fornecer informações que deveriam ser públicas”. Ambos os projetos deverão ser unificados sob um mesmo relator. A iniciativa deve ter continuidade, em nome do princípio constitucional da publicidade na administração pública. O interesse da sociedade não pode ficar em segundo plano.

Balança precisa pender para o lado da proteção ambiental

Valor Econômico

É alarmante que Amazonas, Pantanal e Cerrado queimem simultaneamente, intoxiquem com sua fuligem todas as cidades no caminho do fogo e nenhuma providência de envergadura pareça estar a caminho

Com quase dois terços do território nacional encoberto por fumaça de incêndios no campo, na sequência do trágico dilúvio no Rio Grande do Sul, o governo deveria ter agido com mais intensidade e presteza aos eventos climáticos extremos que, ao que tudo indica, vieram para ficar. As reações oficiais às queimadas, do Amazonas a São Paulo, parecem protocolares, adaptadas à paupéria de recursos do Ministério do Meio Ambiente, e estão muito aquém da urgência requerida. É alarmante que Amazonas, Pantanal e Cerrado queimem simultaneamente, intoxiquem com sua fuligem todas as cidades no caminho do fogo e nenhuma providência de envergadura pareça estar a caminho.

Só agora a ideia de uma Autoridade Climática, uma proposta de Marina Silva da campanha eleitoral de 2022, entrou nas prioridades e de um jeito estranho. O governo aparentemente aceitou o instrumento, que deverá coordenar e executar um plano de prevenção e adaptação ao choque climático que ainda não existe quando o contrário deveria ocorrer. Disputas de poder sepultaram por dois anos a ideia que ressurge quando nada mais parece estar à mão para indicar um rumo plausível de ação.

A magnitude da crise cresce com a proliferação rápida do fogo. De janeiro até quarta-feira (11), o país registrou 172.815 focos de incêndio, conforme dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o maior número desde 2010. Já a estiagem é a mais extensa vista em décadas, segundo o Centro Nacional de Monitoramento de Alertas e Desastres Naturais (Cemaden). São 5 milhões de km2 sob algum grau de seca, ou 59% do território nacional, com parte da área já enfrentando condições adversas há 12 meses. Dos 27 Estados brasileiros, apenas o Rio Grande do Sul e Santa Catarina não estão sendo fortemente afetados.

A combinação de baixo volume de chuvas, em decorrência do fenômeno El Niño, e da antecipação da estação seca, uma das muitas consequências das mudanças climáticas, alimenta as chamas que se alastram pelo país. Embora o clima seja favorável à propagação, especialistas dizem que os incêndios não são acidentais. É preciso intenção para que o fogo comece, e a Polícia Federal investiga o assunto.

A fumaça dos incêndios ganhou os céus, levando consigo um tom cinza-alaranjado de apocalipse e secura de deserto à paisagem das cidades em várias regiões. São Paulo é há quatro dias consecutivos líder de um ranking de pior qualidade do ar entre 120 cidades do mundo, feito pelo site suíço IQAir. Outros municípios enfrentam situação similar, o que põe em risco a saúde da população, especialmente idosos e crianças.

O quadro desolador já exigia ações mais contundentes, mas, diante da inércia dos Executivos, e o puro desdém do Congresso, mais preocupado com emendas, coube ao ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), ordenar que policiais e bombeiros militares de áreas não afetadas fossem deslocados para ajudar no enfrentamento dos incêndios. Ainda que a ação seja imprescindível e tenha ocorrido após uma audiência de conciliação, não é tarefa de um juiz, e sim do Executivo, mobilizar forças para combater queimadas.

Pressionado a reagir, o presidente Lula partiu com uma comitiva de ministros para Manaus e anunciou que o país terá uma Autoridade Climática, que chega tarde e ainda carece de detalhes sobre sua estrutura. A culpa pelo atraso, porém, não é apenas do Planalto. Lula também anunciou um pacote de R$ 650 milhões para o combate à estiagem e ao fogo no Amazonas. O investimento inclui a pavimentação da polêmica BR-319, obra da ditadura militar ligando Manaus a Porto Velho, amaldiçoada pelos ambientalistas e cientistas por conta dos riscos que pode trazer à floresta.

O contraste expõe a incoerência de um governo que tenta se equilibrar entre uma ala desenvolvimentista, que defende projetos como a exploração de petróleo na foz do Amazonas, e outra ambientalista, que viu parte dos seus planos só saírem da gaveta para embelezar discursos ou em momentos oportunos. Não bastassem as contradições do Executivo, o Congresso parece pouco interessado no problema e, nos últimos dias, ignorou que o país está queimando para tocar uma agenda de pouco interesse para a sociedade.

Já está mais do que claro que os efeitos das mudanças climáticas serão mais intensos daqui para frente. Preveni-los é bem mais barato e eficaz que remediá-los. Só um plano sério, abrangente, que envolva diferentes níveis da administração pública e da sociedade civil, será capaz de dar conta do recado. O governo tem condições de liderar essa missão e há bons exemplos a serem seguidos. É o caso do trabalho feito para conter o desmatamento na Amazônia, que caiu quase pela metade em relação ao ano passado.

Espera-se mais do que respostas tardias de um governo eleito para substituir os negacionismos e as boiadas de Jair Bolsonaro. Se, daqui em diante, a balança não passar a pender para o lado da proteção ambiental, a COP30, pensada para ser uma vitrine que levaria o país à liderança global da luta contra as mudanças climáticas, poderá se transformar em um fiasco.

Empate triplo dura pouco na disputa paulistana

Folha de S. Paulo

Nunes e Boulos se isolam na liderança; Marçal vê sua rejeição disparar, enquanto prefeito amplia vantagem no 2º turno

Durou pouco o empate triplo na dianteira da corrida pela Prefeitura de São Paulo. Três semanas depois de detectado pelo Datafolha, o enrosco entre Ricardo Nunes (MDB), Guilherme Boulos (PSOL) e Pablo Marçal (PRTB) se desfez.

A pesquisa do instituto divulgada nesta quinta-feira (12) mostra o atual prefeito na liderança numérica da disputa, com 27% das intenções de voto, mas em situação de empate técnico com o deputado federal do PSOL, que alcançou 25%. O influenciador ficou um pouco para trás, com 19%.

A pior notícia para o autointitulado ex-coach talvez nem seja essa, contudo, e sim o crescimento acentuado de sua rejeição. Em pouco mais de um mês, a fatia dos eleitores que dizem não votar em Marçal de jeito nenhum passou de 30% para 44%. É um patamar que dificulta sobremaneira a vida de quem pretende vencer uma eleição majoritária.

Pelo menos dois fatores contribuem para esse cenário. Um deles é a artilharia de seus adversários, que partiram para o ataque tão logo a ascensão de Marçal se concretizou nas pesquisas.

Nunes, em particular, com dois terços do horário eleitoral gratuito, não economizou nas tentativas de descredenciar o rival, com quem faz competição direta pelos votos dos bolsonaristas. A lógica política mais convencional parece pesar contra um candidato sem tempo de rádio e TV nem estrutura partidária.

O segundo fator é o próprio candidato Marçal. Sua falta de limites para a torpeza e o descompromisso com o debate de ideias até podem render engajamento nas redes sociais, mas, ao que tudo indica, provocam repulsa em eleitores de fora de seu nicho.

Não surpreende que, nas hipóteses de segundo turno do Datafolha, o influenciador perderia tanto para Nunes quanto para Boulos se a eleição fosse hoje.

Nesse ponto, o prefeito não tem do que reclamar: também derrotaria o deputado do PSOL com vantagem em alta. Assim, Nunes aumenta seu cacife na parcela dos paulistanos disposta a apoiar o candidato com mais condições de derrotar a esquerda.

Boulos, por sua vez, cabeça de uma chapa composta também pelo PT, espera atingir o percentual que, historicamente, tem dado ao partido de Lula pelo menos o segundo lugar na capital paulista. Seria o suficiente para levá-lo ao segundo turno, mas, de acordo com a fotografia atual da disputa, não para conseguir a vitória.

Se quiser ter uma chance, precisará angariar votos entre os simpatizantes dos demais candidatos, que permanecem estagnados em um pelotão distante dos três líderes. Tabata Amaral (PSB) e José Luiz Datena (PSDB), que tinham pretensões mais elevadas, oscilaram 1 ponto para baixo, com 8% e 6%, respectivamente.

Como as próprias pesquisas do instituto Datafolha sugerem, entretanto, a corrida eleitoral está longe de resolvida —sobretudo por se tratar de uma cidade que conhece muito bem as reviravoltas de última hora.

A catástrofe esquecida no Sudão

Folha de S. Paulo

Guerra já causou milhares de mortes e pode ter implicações temerárias, mas é ignorada pela comunidade internacional

Ofuscado pelas guerras em Gaza e na Ucrânia, o conflito no Sudão adquire ares de catástrofe humanitária e ameaça se espalhar para muito além de suas fronteiras, incluindo outros continentes.

Terceiro país mais extenso da África, um pouco maior que o estado do Amazonas, o Sudão vive um ciclo de instabilidade desde que protestos levaram as Forças Armadas a derrubarem o então ditador, Omar al-Bashir, em 2019.

O governo civil que assumiu em seu lugar teve vida curta e foi derrubado por militares menos de dois anos depois.

A atual guerra, iniciada em abril de 2023, tem origem na divisão entre o Exército sudanês e a milícia Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês). Não há ideologia separando os beligerantes, só vaidades e projetos de poder de senhores da guerra às custas do sofrimento da população.

Após 15 meses, são cerca de 150 mil mortos e 10 milhões de deslocados internos, ou 20% da população. A capital, Cartum, outrora metrópole pujante, está devastada. O temor é de uma crise de fome em larga escala, que já atinge campos de refugiados pelo país.

O Sudão fica numa região instável e estratégica, o Chifre da África. É vizinho do Golfo Pérsico e de rotas marítimas importantes para o comércio mundial.

Também é caminho para migrantes que rumam à Europa. Rico em petróleo e minérios, desperta cobiça de atores externos que turbinam a disputa.

Há sólidas evidências de que os Emirados Árabes Unidos estejam abastecendo a RSF com armamento, enquanto Irã e Egito apoiam o Exército sudanês. Como já se tornou rotina em solo africano, a Rússia, por meio dos mercenários do grupo Wagner, vende sua influência para os dois lados.

O envolvimento estrangeiro alimenta um conflito que já desestabiliza vizinhos, sobretudo o Chade, que vem absorvendo sudaneses desesperados em fuga. Muitos são da região de Darfur, palco de um genocídio há 20 anos e que agora revive o horror com algumas das maiores atrocidades do atual combate.

Com o mundo atento a guerras mais chamativas e até existenciais (não há armas nucleares no Sudão), há pouco apetite diplomático para interromper a matança na África. Iniciativas de paz têm sido tímidas e infrutíferas, com inimigos mal disfarçando a pouca vontade de negociar.

No entanto ignorar o que pode se tornar uma das maiores tragédias humanitárias das últimas décadas, com imprevisíveis e temerárias implicações geopolíticas, seria mais um erro imperdoável da comunidade internacional.

Orçamento em frangalhos

O Estado de S. Paulo

Pelo que se vê, as emendas parlamentares fabricadas para abastecer currais eleitorais de congressistas não só continuarão sem nenhum critério técnico, como poderão ser turbinadas

A pedido do Supremo Tribunal Federal (STF), a Controladoria-Geral da União (CGU) realizou uma auditoria nos 10 municípios mais beneficiados, per capita, por emendas parlamentares que constituíam o chamado “orçamento secreto”, vetado pela Corte, e depois pelas emendas que substituíram esse mecanismo e mantiveram a opacidade. O resultado da amostra, entre 2020 e 2023, indica que desvios, atrasos e desperdício de dinheiro não são exceção, mas regra.

Pelo visto, a falta de transparência na destinação dos recursos é característica imprescindível desse instrumento para os objetivos dos parlamentares envolvidos: distribuir verbas sem critério para melhorar as chances eleitorais de si mesmos e de aliados políticos – isso sem falar na avenida de oportunidades para corrupção.

Diante das evidências de que o espírito dessas emendas é intrinsecamente antirrepublicano e antidemocrático, fica cada vez mais claro o acerto do Supremo em colocar um freio na distribuição desse dinheiro. Nada do que foi arrolado pela CGU respeita o que vai na Constituição.

Há de tudo ali, desde truques para mascarar os envolvidos na transferência dos recursos até a escandalosa desnecessidade por parte de quem os recebe. Um caso exemplar chamou a atenção dos auditores: para a minúscula Pracuúba (AP), destinou-se polpuda verba para construir nada menos que quatro campos de futebol, para usufruto de pouco mais de 5 mil habitantes – que já dispunham de campos de futebol. Isso não é desvio; é padrão.

Para a surpresa de ninguém, dos dez municípios que mais receberam dinheiro, cinco são do Amapá, Estado do senador Davi Alcolumbre, virtual eleito para voltar à presidência do Senado. Consta que sua habilidade na administração das emendas é um dos fatores que o tornaram favorito na eleição.

Na última década, as emendas parlamentares saltaram de 4% do Orçamento discricionário para 23%, tornaram-se obrigatórias e se diversificaram. Especialistas cansaram de alertar que esses repasses, distribuídos sem equidade, transparência ou critérios que garantam sua integração às metas da União e às necessidades locais, degradam as políticas públicas porque são pulverizados, pressionam os cofres públicos porque drenam recursos dos ministérios e geram riscos de corrupção porque não são fiscalizados. Finalmente, distorcem a competição democrática, porque abastecem redutos de alguns parlamentares em detrimento de outros, tornando-se um cobiçado complemento do Fundo Eleitoral.

Ainda assim, sob a conivência de Executivos fracos, os congressistas criaram doações aos caixas de Estados e municípios – as emendas “Pix” – e repasses sem transparência por apadrinhados de líderes do Parlamento – o “orçamento secreto”. Este último foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2022, mas continuou a ser operado sob as Emendas de Comissão. Tamanho foi o destempero que, em agosto, o STF, cumprindo sua função de guardião da Constituição, suspendeu os repasses até que o Congresso criasse parâmetros de “eficiência, transparência e rastreabilidade”.

Mas, como reza uma máxima do cinismo político, consagrado no romance O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa, é preciso que tudo mude se queremos que tudo permaneça como está. Temendo retaliações do Parlamento, o STF articulou com caciques do Legislativo e do Executivo um insólito “acordo”, que, em tese, deveria garantir as tais “eficiência, transparência e rastreabilidade”. Mas já se vê que a pizza, ainda no forno, não cheira bem. Conforme apurado pelo Estadão, as emendas de comissão podem virar obrigatórias; os recursos poderão bancar obras regionais, e não nacionais; o volume de emendas poderá ser turbinado; e as emendas “Pix” serão, na essência, mantidas.

Assim, nesse acordo, o Judiciário evita mais desgastes; o Executivo, com sua base parlamentar diminuta, garante ao menos um naco das emendas para seu PAC; e as bancadas fisiológicas seguem abastecendo seus currais eleitorais – quando não seus bolsos. A turma de Brasília superou até o célebre cínico da obra de Lampedusa: ao que parece, tudo mudará, mas para ficar ainda pior do que já estava.

A desculpa da eleição

O Estado de S. Paulo

Tebet alega que época de eleição dificulta uma impopular revisão dos gastos, mas o governo já teve um ano sem eleição e mesmo assim nada fez para interromper a espiral de despesas

A ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, em entrevista ao Estadão, discorreu sobre a impossibilidade de revisão estrutural dos gastos orçamentários neste ano por causa do calendário eleitoral, mas garantiu que o governo não cogita mexer nos pisos constitucionais da Saúde e da Educação. Também a este jornal, o secretário Dario Durigan, o segundo na hierarquia do Ministério da Fazenda, em resposta a uma pergunta específica sobre sujeitar gastos com Previdência, Saúde e Educação aos limites fixados pelo arcabouço fiscal, disse que a ideia está “amadurecendo dentro do governo”.

A divergência nas declarações de dois expoentes da equipe econômica reflete a desconexão do governo quando o foco é o controle das despesas, o ponto mais crítico na busca pelo equilíbrio fiscal. Em meio a esse desencontro, a única certeza é de que tão cedo não ocorrerá, num governo liderado por Lula da Silva, um debate sério e definitivo sobre como frear o avanço contínuo dos gastos públicos.

Ao dizer que a maioria das medidas de revisão de gastos depende de aprovação do Legislativo, geralmente refratário a projetos que possam soar impopulares em ano eleitoral, Tebet reconhece o óbvio. A questão é que o governo Lula não começou agora, e sim em 2023 – que, além de não ser ano eleitoral, era supostamente o período em que o presidente eleito, escorado pela legitimidade do voto, tinha toda a força política para adotar medidas menos populares. Lula, como se sabe, não fez nada disso. Ao contrário, ainda antes da posse articulou um grande pacote de gastos e, depois de vestir a faixa, enterrou de vez o teto para as despesas, optando por um arcabouço fiscal muito mais brando – e que nem assim é levado muito a sério por Lula.

Se o obstáculo agora é de fato a campanha municipal, não se pode esperar deste governo o enfrentamento da ampliação dos gastos. Afinal, Lula da Silva vive em permanente modo eleitoral, tentando buscar alternativas para driblar amarras orçamentárias – como o uso de fundos de pensão de estatais e empresas como a Petrobras para financiar projetos de infraestrutura de interesse do governo – e postergando decisões que travam a escalada da dívida pública, como a de rever a vinculação de benefícios previdenciários ao reajuste real do salário mínimo.

No ano passado, o déficit do setor público como proporção do PIB chegou a 2,29%, com um saldo negativo de quase R$ 250 bilhões, de acordo com dados do Banco Central. A margem de tolerância da meta de déficit zero para este ano permite, na prática, um resultado negativo de até R$ 28,8 bilhões. A pouco mais de um trimestre do fechamento do ano, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, mantém o discurso de meta zero, ou seja, equilíbrio entre receitas e despesas, e já fala em “mais conforto” para chegar ao déficit zero também em 2025. Ninguém mais compra o discurso, até porque o planejamento para o ano que vem permanece concentrado nas receitas, que esgotaram o potencial de crescimento.

O secretário executivo Dario Durigan argumenta que o arcabouço fiscal é a primeira importante trava em relação às despesas e exemplifica com o bloqueio e contingenciamento de R$ 15 bilhões, feito recentemente pelo governo para os gastos deste ano. Mas reconhece que, na busca pelo equilíbrio fiscal, é imprescindível rever a despesa obrigatória do governo, com discussão no Congresso. Tebet reitera sua convicção no cumprimento da meta fiscal, “como mantra”, como diz, e alega que o governo sabe “o momento de fazer e o momento de não fazer as coisas”.

Espera-se que o momento de fazer não tarde, porque a evolução da dívida pública não para. E vale ressaltar que de nada adianta usar de criatividade para aproximar os cálculos de um resultado mais favorável. O que é necessário é derrubar as resistências que parecem existir no governo para reequilibrar, de forma estrutural, a agenda fiscal – a forma mais eficiente e sustentável de combate à desigualdade, bandeira tão cara a Lula da Silva.

Gol de mão

O Estado de S. Paulo

Na desoneração da folha, Senado vence, BC mantém dignidade e governo se arrisca com perda da credibilidade

O longo imbróglio da desoneração da folha de pagamento de setores econômicos e municípios terminou na manhã de ontem. Depois de uma batalha que envolveu a aprovação de um projeto de lei, veto presidencial, derrubada de veto, edição de medida provisória pelo Executivo, devolução de trechos da proposta pelo Congresso e até mesmo a participação do Supremo Tribunal Federal (STF), finalmente se chegou a um acordo sobre o tema e uma nova proposta foi aprovada prevendo a reoneração gradual, a partir do ano que vem, e a compensação parcial da renúncia tributária associada à medida.

De início, o Senado queria manter a desoneração integralmente até 2027, enquanto a equipe econômica lutava pela reoneração completa já a partir deste ano. O Ministério da Fazenda cobrou dos parlamentares que propusessem ações para repor as perdas, mas o Legislativo rejeitou a maioria delas, sobretudo as que representavam aumento de impostos, e aprovou uma série de medidas que dificilmente vão cobrir o buraco.

De todas, a mais controversa, proposta pelo Senado com a conivência da Fazenda, era a permissão para que o governo se apropriasse de R$ 8,6 bilhões em recursos de pessoas físicas e empresas esquecidos em contas de instituições financeiras e contabilizasse o montante como receita primária para fins de apuração da meta fiscal. Quando todas as resistências haviam sido vencidas e o caminho parecia livre, o Banco Central (BC) entrou na história e jogou um balde de água fria nas pretensões do Executivo e do Senado.

Por meio de nota técnica, o BC – a quem cabe o cálculo para apuração da meta – recomendou aos deputados a rejeição integral desse trecho do projeto de lei, que estava em “flagrante desacordo” com a metodologia estatística utilizada pela instituição para o cálculo das contas públicas, as orientações do Tribunal de Contas da União e o entendimento do STF sobre o tema.

Fato é que o BC tinha razão. O dinheiro oriundo dessas contas, se contabilizado, deveria ser registrado como ajuste patrimonial, e não receita primária – ou seja, sem impacto no cálculo da meta fiscal. O líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), teve de assumir a relatoria da proposta para que fosse possível chegar a um acordo. Oficialmente, todos os envolvidos tiveram de ceder um pouco, mas o governo foi quem mais perdeu.

O Senado conseguiu manter um cronograma para que os setores e municípios tenham tempo para se adequar ao fim do benefício e não precisou se desgastar com medidas arrecadatórias. O BC manteve a dignidade e não será obrigado a deturpar os resultados fiscais. Já o Ministério da Fazenda poderá divulgar outro número, diferente do calculado pelo BC, para sustentar que cumpriu a meta.

A Fazenda, que entrou atrasada no debate, recorreu ao STF para forçar o Congresso a negociar, mas não conseguiu nem reonerar a folha como desejava nem aprovar as medidas para repor as perdas. Ao fim dessa disputa, julga ter obtido uma vitória ao poder apregoar o cumprimento da meta fiscal com mais uma exceção à regra, mas ignora que essa manobra pode ter um custo bem mais alto – a perda de sua credibilidade.

Setembro Verde e a doação de órgãos

Correio Braziliense

Até maio deste ano, o Brasil tinha mais de 72 mil pessoas na lista de transplante de órgãos, sendo o rim o mais aguardado 

Setembro talvez seja o mês com o maior número de cores e campanhas em prol da saúde no Brasil. Dourado, roxo, azul, vermelho, amarelo e por aí vai. O Setembro Verde destaca a doação de órgãos e estimula a população a debater o tema e a se manifestar frente a seus familiares.

A legislação brasileira vigente diz que apenas a família pode autorizar a doação de órgãos do ente falecido. Nesses casos, estamos falando em doar uma grande quantidade de órgãos e tecidos, a exemplo de pele, tendões, pulmões, rins, fígado, pâncreas, intestino, válvulas do coração, ossos, e outras tantas possibilidades. Em vida, no entanto, é possível a doação de parte do fígado, da medula óssea e de um dos rins, desde que seja comprovada a compatibilidade sanguínea. 

A primeira boa notícia é que, em 2023, de acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil contabilizou o maior número de transplantes de órgãos na última década. Entre janeiro e setembro, foram registrados 6.766 transplantes, ultrapassando os 6.055 realizados no mesmo período em 2022.

A segunda boa notícia é o crescimento do número de doadores. Foram 3.060 efetivações de janeiro a setembro, contra 2.064 no ano anterior, o que corresponde a um crescimento de 17%. O destaque ficou por conta dos transplantes de rim, que tiveram um aumento de 113% em 20 anos, passando de 2.911 procedimentos para 6.208. 

Além dos avanços na saúde pública, assim como na interação entre agentes de saúde e famílias dos possíveis doadores, é importante pontuar o trabalho de acompanhamento de médicos e respectivas equipes junto aos pacientes e/ou familiares durante todo o processo de doação. 

As organizações de procura de órgãos (OPOs) desempenham um papel relevante, como parte do Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Atuando como órgãos executivos da Comissão Nacional de Transplantes de Órgãos e Tecidos, tomaram como exemplo o modelo norte-americano, ficando responsáveis pela identificação, manutenção e captação de potenciais doadores. 

Embora tenha havido um crescimento significativo das doações de órgãos, o Brasil ainda engatinha nessa questão, tanto com relação ao desenvolvimento de políticas públicas que cubram todas as demandas quanto a campanhas que incentivem as doações intervivos ou após a morte. 

Até maio deste ano, o Brasil tinha mais de 72 mil pessoas na lista de transplante de órgãos, sendo o rim o mais aguardado (embora seja o mais transplantado), com cerca de 40 mil pessoas na fila, seguido pela córnea, que conta com mais de 28 mil solicitações e, depois, o fígado, com mais de 2.300 pessoas aguardando o transplante, segundo os dados do Ministério da Saúde.

Falta também uma sistematização quanto à legitimação dos doadores de órgãos. Não há unanimidade quanto à forma de se manifestar como doador, a não ser apontamentos individuais junto às famílias ou iniciativas de se pronunciar em documentos como a carteira de identidade. Não deixam de ser manifestações louváveis, mas ainda muito pouco disseminadas.

 


 

 

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