Leniência com crimes ambientais interfere no clima
O Globo
Em vez de contribuir para capturar gases
poluentes, Amazônia se transformou em fonte de emissões
Não é alarmismo de cientistas paranoicos. É
fato: de acordo com dados do Copernicus, instituto de monitoramento climático
mantido pela União Europeia, durante pelo menos cinco dias o sudoeste da Amazônia foi
a região do planeta que mais emitiu gases de efeito estufa. Mais que áreas
poluidoras da China,
da Índia ou polos urbanos e industriais dos países ricos. Em vez de funcionar
como o proverbial “pulmão do mundo” — chavão cunhado há décadas que não
corresponde faz tempo à realidade — e de capturar gases poluentes, a Floresta
Amazônica começa, ao contrário, a agravar o aquecimento global. Cientistas
temem que a tendência se torne irreversível.
A causa da inversão de papéis é o desmatamento, agravado por incêndios devastadores sem precedentes. De 1º de janeiro a 9 de setembro, os 82 mil focos de fogo detectados foram o dobro dos mapeados no mesmo período do ano passado. A Amazônia chegou a tal ponto depois de muito descaso com a ocupação desordenada da região onde fica a maior floresta tropical do planeta. É fundamental cobrar do Executivo medidas de combate ao fogo e proteção da floresta. Mas a responsabilidade vai além. Precisa se estender ao Legislativo, onde ainda tramita uma “boiada” de projetos enfraquecendo a lei ambiental. E também ao Judiciário, onde são frequentes casos de leniência com crimes contra a natureza.
Um caso exemplar ilustra a situação
permissiva em que os criminosos continuam a se sentir à vontade para devastar a
floresta. A Justiça mato-grossense acaba de inocentar o pecuarista Claudecy
Oliveira Lemes, acusado de ter destruído, para criar gado, nada menos que 3.800
hectares de vegetação nativa no Pantanal — o equivalente a mais de 5.300 campos
de futebol. A alegação foi a prescrição do crime ambiental. O Ministério
Público (MP) informou que recorrerá da decisão, sob o argumento de que, ao
impedir a regeneração da área, ele continuou a incorrer no crime.
Claudecy é conhecido dos órgãos de vigilância
ambiental. Também é acusado de ter devastado outros 81 mil hectares do Pantanal
(área equivalente à de Campinas), despejando de um avião agrícola produtos
químicos avaliados em R$ 25 milhões. Foi o maior caso de devastação registrado
em Mato Grosso.
Por duas vezes, o MP pediu sua prisão preventiva, mas a Justiça negou o último
pedido em abril. Desde 2019, ele soma 15 autuações por danos ao meio ambiente.
E segue solto, cumprindo apenas medidas cautelares.
Devem-se acompanhar com atenção os
desdobramentos desses casos. Se a sentença que absolveu Claudecy for seguida
noutros processos, poderão ficar impunes desmatadores em escala industrial.
Atentados contra o meio ambiente não são crimes de baixo poder ofensivo. E não
basta se mobilizar quando o pior já aconteceu. É preciso haver vontade e base
jurídica para proteger as florestas. Com a Amazônia e o Pantanal em chamas, o
Brasil terá dificuldades de reclamar quando for acusado em fóruns
internacionais de ser conivente com a destruição do meio ambiente e de
contribuir para o descontrole do clima. Deveríamos, ao contrário, transformar
nossos biomas em exemplo de conservação para o planeta. Antes que seja tarde
demais.
Postes com emaranhados caóticos de fios são
problema urbano crescente
O Globo
Com 10 milhões deles abarrotados, Brasil
somou mais de 25 mil acidentes e 660 mortes desde 2022
Emaranhados de fios fazem parte da paisagem
urbana brasileira. Mas os problemas que se entrelaçam ao longo das redes
elétrica e de telecomunicações vão além da indesejável poluição visual e dos
enormes transtornos causados aos cidadãos durante as tempestades, quando galhos
ou árvores inteiras despencam sobre os cabos, provocando interrupção dos
serviços. Fios soltos, resultantes de manutenção deficiente e falta de
fiscalização, têm causado acidentes graves com frequência maior do que se
imagina.
Levantamento do Instituto de Defesa de
Consumidores (Idec) feito com exclusividade para O GLOBO mostrou que, desde
2009, foram registradas cerca de 36 mil ocorrências, com 4 mil mortes,
envolvendo fiações elétricas e de telecomunicações. Apenas de 2022 a agosto
deste ano, 25.127 pessoas se acidentaram e 660 morreram em situações desse
tipo. Os dados constam de informações enviadas pelas distribuidoras à Agência
Nacional de Energia Elétrica (Aneel),
responsável pela gestão compartilhada dos postes com as empresas de
telecomunicações.
É verdade que os registros têm ficado mais
precisos nos últimos anos, devido a imposições legais. Em 2022, depois de
determinação da Aneel para que os casos fossem classificados em 12 tipos de
causas (como batida em poste, cabo energizado, choque, poda de árvore ou linhas
de pipa em contato com os fios), o total de acidentes cresceu 16 vezes em
relação ao ano anterior.
Estima-se que, dos 50 milhões de postes
existentes no país, 10 milhões estejam abarrotados de fios, em muitos casos com
ligações clandestinas. Não é exatamente por falta de regras que os problemas se
acumulam. Em 2023, os ministérios das Comunicações e de Minas e Energia
instituíram a Política Nacional de Compartilhamento de Postes. Em junho deste
ano, decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinou que as
distribuidoras contratassem empresas terceirizadas para ordenar os fios. Os
“posteiros” cuidariam do compartilhamento e da fiscalização. Mas o decreto
desagradou às distribuidoras. Elas defendem que a norma seja facultativa. Uma
solução se torna ainda mais difícil devido às diferentes visões das agências de
energia e de telecomunicações sobre o assunto.
Não basta baixar normas que não são seguidas.
O problema existe e está à vista de todos. É preciso que os setores elétrico e
de telecomunicações, agências reguladoras e governo cheguem a um entendimento.
O ideal é que esses cabos sejam instalados no subsolo, reduzindo a poluição
visual e os transtornos de apagões durante os temporais. Mas, uma vez que a
realidade não é essa na maior parte do país, o jeito é ordenar a instalação dos
fios, combater as ligações clandestinas e cuidar da manutenção adequada. Não se
pode expor o cidadão ao risco de acidentes graves devido à incúria daqueles que
deveriam cuidar das redes.
Governo acorda tarde para risco energético
Folha de S. Paulo
Seca no próximo ano pode levar à situação de
2021, que beirou o racionamento; horário de verão volta a ser relevante
A seca recorde, o aumento do consumo de
energia e o pequeno crescimento recente da oferta de eletricidade de usinas
hidrelétricas e térmicas provocaram algum sentimento de emergência no
Ministério de Minas e Energia.
Não há, por ora, perspectiva de faltar luz ou
de ameaças para o abastecimento, mesmo em horários de pico. Especialistas dizem
que o problema não será agudo até o ano que vem.
No entanto os riscos aumentaram. As folgas do
sistema são cada vez menores. O agravamento da crise climática torna mais
incertos os cenários de chuvas e consumo, para dizer o menos. Desde 2014, o
país tem enfrentado secas e reduções grandes, de ano para outro, no nível dos
reservatórios das usinas hidrelétricas. Também há mais restrições para
operá-las. Além do mais, o governo está atrasado.
Nesta semana, a pasta de Minas e Energia
solicitou ao Operador Nacional do Sistema (ONS) um plano para lidar com os
riscos de 2024 a 2026. O calor dos incêndios que
se espalham pelo país, ao que tudo indica, ligou alertas.
O ministro Alexandre Silveira anunciou
que avalia a
volta do horário de verão, abandonado sob Jair Bolsonaro (PL)
—a economia obtida
com o expediente de fato deixara de ser relevante.
O governo afirma também, para certa descrença
de estudiosos e executivos do setor, que ainda neste ano haverá um leilão
de compra de energia de reserva. Silveira chegou a dizer que
divulgará em setembro seu projeto de reforma do setor elétrico.
Os leilões de compra de energia, nova ou de
reserva, estão atrasados. A possibilidade de adotar o horário de verão já
deveria estar em estudo faz tempo, pois o comportamento do consumidor e a
oferta de eletricidade têm mudado com frequência
A economia e a redução de riscos propiciadas
pelo adiantamento dos relógios no centro-sul voltaram a merecer atenção.
O Brasil hoje conta com mais energia solar,
16,8% da capacidade instalada em 2023, que obviamente não atende às
necessidades do pico de consumo do início da noite. Conta com mais energia
eólica, 14,4% da capacidade, fonte que, entretanto, é sujeita a variações fora
de controle.
O início da noite voltou a ter picos de
consumo —são necessárias a energia de hidrelétricas e térmicas ou outras
soluções.
Dadas as mudanças, afora as incertezas
climáticas, deve sempre haver planos de contingência ou revisões de rota que
possibilitem a redução rápida de riscos.
Em vez de pedir estudos, o ministério já
poderia apresentar medidas possíveis. Uma nova seca em 2025 é capaz de levar o
país à situação de 2021, quando se esteve à beira do racionamento.
A situação de perigo renovado indica que
falta planejamento de longo prazo para uma época de crise do clima e mudança
tecnológica. O Brasil está longe de ter um plano integrado para energia, desmatamento,
uso da água e mitigação de desastres climáticos.
A improvável equação de Macron
Folha de S. Paulo
Nomeação de conservador como
primeiro-ministro queima pontes com a esquerda e não garante a contenção da
ultradireita
As mais recentes decisões do presidente
da França, Emmanuel
Macron, sinalizam um esforço para conter a ascensão da ultradireita,
frear a polarização e preservar sua governabilidade. Espanta, de todo modo, a
sucessão de reviravoltas promovidas por seu gabinete.
A recente indicação do
conservador Michel Barnier como primeiro-ministro segue um
cálculo intrincado para formar um governo de coabitação com a oposição. A
medida provocou ebulição nas três coalizões que dominam a Assembleia Nacional
—nenhuma delas majoritária nem afeita ao diálogo.
Por suas primeiras declarações, está clara a
rejeição de Barnier a qualquer composição com a Reunião Nacional, força de
extrema-direita de Marine Le Pen.
É improvável, ainda, que atraia simpatia da
Nova Frente Popular (NFP), coalizão de esquerda —que inclui radicais e
moderados e detém a maior bancada no Parlamento— comandada por Jean-Luc
Mélenchon, deputado de opiniões controversas e adepto de um ideário estatista
obsoleto.
Macron queimou as pontes com a NFP ao
descumprir a tradição de designar, como chefe de um governo de coabitação, um
expoente do bloco mais bem votado pelos franceses.
Preferiu um hábil negociador de
centro-direita cujo partido, o Republicanos, saiu em quarto lugar nas eleições.
Montar um gabinete capaz de amalgamar as forças de centro a moderados dos dois
espectros políticos não será nada fácil. Mesmo que seja consolidado, sua
longevidade dependerá de concessões aos extremos.
O primeiro-ministro já sinalizou sua intenção
de flexibilizar a reforma da Previdência, insensatamente criticada pela
esquerda, que levou milhões de franceses às ruas em 2023. Em contrapartida,
também manifestou-se a favor de controles sobre a imigração, demanda cara à
direita.
Mas há dúvidas sobre a capacidade de
interlocução de Barnier com Macron. Em seu primeiro discurso, prometeu um
governo de "ruptura" e de "mais ação do que conversa" —o
presidente certamente não teria aceitado tais termos quando surfava em
popularidade e apoio parlamentar.
Fato é que Macron embarcou em escolhas
arriscadas, como a antecipação das eleições para a Assembleia Nacional, ao
constatar o avanço da
ultradireita francesa no Parlamento Europeu.
Não há manual para combater extremismos que
ameaçam uma das mais sólidas democracias do mundo. Guinadas do governo
tensionam o Legislativo e trazem mais incertezas para as eleições presidenciais
de 2027.
A impunidade ganha um nome
O Estado de S. Paulo
Um ano após anular as provas obtidas no
acordo de leniência da Odebrecht, Dias Toffoli batiza uma corrida de delatores
em busca dos mesmos benefícios processuais dados a Lula da Silva
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)
Dias Toffoli deve estar orgulhoso de seu revisionismo histórico da Operação
Lava Jato, sua magnum opus como juiz. Um ano depois de anular todas
as provas obtidas por meio do acordo de leniência da Odebrecht, hoje Novonor,
seu nome batiza um movimento de dezenas de delatores, alguns criminosos
condenados, que têm acorrido aos tribunais para obter os mesmos benefícios
processuais concedidos pelo ministro ao presidente Lula da Silva, autor do
pedido de anulação. É o “Efeito Toffoli”, algo que, sem qualquer prejuízo
semântico, também pode ser chamado de festim da impunidade.
Em 6 de setembro de 2023, vale lembrar,
Toffoli usou um despacho monocrático em uma Reclamação (RCL 43007) interposta
pela defesa de Lula, na véspera do feriadão da Independência, para submeter a
sociedade brasileira à sua visão muito peculiar sobre o que foi a maior
operação de combate à corrupção de que o País já teve notícia. Com uma
canetada, Toffoli declarou “imprestáveis” as provas obtidas a partir dos
sistemas Drousys e My Web Day, dois instrumentos que fizeram rodar com
eficiência germânica o notório “departamento de propina” da então Odebrecht, o
centro nervoso do esquema do petrolão nos governos lulopetistas.
Segundo esse realismo fantástico toffoliano,
a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba teria se valido de “tortura
psicológica”, algo que ele havia chamado de “um pau de arara do século 21″,
para obter provas contra pessoas “inocentes”. De acordo com o ministro em sua
decisão, a prisão de Lula teria sido “um dos maiores erros judiciários da
história do País”, “uma armação fruto de um projeto de poder de determinados
agentes públicos em seu objetivo de conquista do Estado”. Rasgando a toga para
se lançar como analista político, Toffoli ainda avaliou que a prisão do petista
seria fruto de “uma verdadeira conspiração com o objetivo de colocar um
inocente como tendo cometido crimes jamais por ele praticados”, ação esta que
representaria “o verdadeiro ovo da serpente dos ataques à democracia e às
instituições” a partir da ascensão de Jair Bolsonaro.
Sabe-se que, entre idas e vindas, o STF
entendeu que a 13.ª Vara Federal de Curitiba não era o foro competente para
julgar Lula da Silva. A Corte entendeu ainda que o princípio da presunção de
inocência não autoriza o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da
decisão penal condenatória. Mas escapou ao ministro Dias Toffoli, por razões
que não cabe a este jornal perscrutar, que as provas que o levaram a anular o
acordo de leniência da Odebrecht e deram a largada para essa corrida pela
impunidade foram obtidas por meios flagrantemente ilegais, o que ficou evidente
no âmbito da Operação Spoofing.
Toffoli também parece ignorar que os
delatores que agora pedem a anulação de seus acordos de colaboração premiada –
e a devolução de milhões de reais pagos a título de multa – confessaram seus
crimes e concordaram em devolver milhões de reais cada um à Petrobras e/ou ao
erário. Ademais, todos esses acordos que teriam sido assinados “sob tortura
psicológica”, um rematado disparate, foram considerados hígidos pelo próprio
STF, que os homologou.
Essa esquizofrenia jurídica, chamemos assim,
somada ao voluntarismo, à criatividade e às intenções pessoais de Dias Toffoli
– que não esconde de ninguém sua genuflexão de penitência diante de Lula da
Silva –, é o que tem levado uma plêiade de ex-executivos da Odebrecht e de
outras empresas à Justiça para pedir a anulação de seus acordos com o
Ministério Público Federal, entre outros órgãos de controle, e a devolução de
multas milionárias que foram pagas como contrapartida da não persecução
criminal em casos de desvios de recursos públicos confessados com espantosos
níveis de detalhe.
Por piores que sejam as decisões do ministro
Dias Toffoli sobre a Operação Lava Jato nesse ano que passou – decisões que, é
bom enfatizar, até hoje não foram submetidas ao crivo do plenário do STF –,
mais aviltante é o desrespeito da Corte à inteligência e à memória dos cidadãos
e ao próprio Poder Judiciário como um todo, pois a ninguém interessa, como já
sublinhamos, um STF voluntarista, instável e politizado.
Rede social nunca foi terra sem lei
O Estado de S. Paulo
STJ diz que rede social pode derrubar, sem
ordem judicial, postagem que viola termos de uso, mostrando que o Marco Civil
equilibra bem os direitos dos usuários, de terceiros e das redes
Num momento em que o Brasil e o mundo
discutem os limites da liberdade de expressão e quais deveriam ser os direitos
e deveres das redes sociais, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
é particularmente elucidativa a propósito de quais são efetivamente esses
direitos e deveres no ordenamento jurídico nacional. Foi a primeira vez que a
Corte julgou a legalidade da moderação ativa por parte de uma plataforma, ou
seja, a remoção de um conteúdo por iniciativa própria, independentemente de
notificação judicial ou extrajudicial.
Em 2021, o médico Paulo Porto Melo divulgou
em seu canal no YouTube vídeos incentivando o uso de cloroquina para o
tratamento da covid-19. Os moderadores da plataforma removeram o conteúdo. Melo
requereu à Justiça o seu restabelecimento e a condenação do Google, dono do
YouTube, alegando cerceamento à liberdade de expressão, dado que não teria
cometido nenhum ato ilegal. Segundo ele, o Marco Civil da Internet proíbe a
remoção de conteúdos sem ordem judicial. Alegou ainda que seria vítima de shadowbanning (literalmente
“banimento às sombras”), ou seja, a manipulação dos algoritmos para reduzir a
visibilidade de um usuário. As três instâncias negaram provimento.
A decisão da Justiça é exemplar e dissipa
muita confusão sobre a responsabilidade das redes. Elas não são como as mídias
tradicionais editorializadas, que controlam seu conteúdo e respondem totalmente
por ele, nem são canais de comunicação totalmente isentos, como redes de
telefonia ou correios, mas têm uma responsabilidade intermediária.
O art. 19 do Marco Civil determina que a
responsabilidade por danos causados por conteúdos veiculados nas redes é do seu
produtor, e a rede só se torna corresponsável se mantiver o conteúdo após ter
sido notificada pela Justiça de sua ilegalidade. O art. 21 estabelece a exceção
a essa regra. A rede será também corresponsável, mesmo sem ordem judicial, se
negligenciar a notificação de alguma pessoa que teve sua privacidade violada
pelo produtor do conteúdo.
Isso não significa que as redes não possam
remover conteúdos, mesmo sem serem notificadas e mesmo que esses conteúdos não
sejam ilegais. Esse direito é de ordem contratual, estabelecido pelos termos de
uso pactuados com os usuários. No caso, a questão não é se é ou não ilegal
promover o uso de cloroquina, mas se a promoção viola os termos de uso do
YouTube. E viola: a “política de informações” da plataforma veda expressamente
essa promoção.
Assim como o contrato determina os limites do
usuário, ele também impõe limites ao arbítrio da rede. Se um usuário tem
conteúdos removidos, for prejudicado por isso e provar que essa remoção viola
os termos da própria rede, ele pode ser ressarcido. A regra se aplica ao shadowbanning.
As redes não podem reduzir artificialmente o alcance orgânico de algum perfil.
Em outras palavras, elas têm um dever de neutralidade para com todos os
usuários. Os termos de moderação de qualquer rede podem ser quão restritivos
ela queira, muito além das restrições legais à liberdade de expressão, desde
que sejam aplicados com isonomia.
A decisão do STJ é particularmente relevante
no momento em que os legisladores debatem novas regulações das redes e em que
corre no Supremo Tribunal Federal uma ação questionando a constitucionalidade
do art. 19 do Marco Civil. As redes sociais no Brasil não são, como diz o
chavão, terra sem lei. O Brasil criou, através de um processo longo,
democrático e diligente, um arcabouço para o meio digital que busca um
equilíbrio entre todos os interesses envolvidos: a liberdade de expressão dos
usuários, os direitos de cidadãos ofendidos por ela e as condições de
responsabilização das redes, sem terceirizar a elas o poder de censura do
Estado nem impedi-las de moderar seus conteúdos, desde que o façam conforme os
padrões pactuados com seus usuários, aplicados de maneira igual a todos. É
legítimo advogar alterações no Marco Civil, mas elas deveriam ser promovidas
com a mesma prudência que pautou a sua construção, harmonizando ainda mais esse
equilíbrio, e não o rompendo.
À espera de um milagre
O Estado de S. Paulo
Governo mantém a aposta em medidas
arrecadatórias improváveis e empurra o problema fiscal com a barriga
A arrecadação com a qual o governo contava
para entregar o déficit zero não tem se confirmado, ampliando o enorme desafio
do Executivo para cumprir a meta fiscal. Como esperado, o pacote de recuperação
de receitas do ministro Fernando Haddad tem frustrado expectativas que sempre
pareceram otimistas demais para ser verdade.
Faltando quatro meses para o fim do ano, a
retomada do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
(Carf) rendeu R$ 83,4 milhões para a União, ante uma expectativa de R$ 54,7
bilhões. Já as transações tributárias com a Receita Federal somaram R$ 1,961
bilhão, bem menos que a previsão inicial, de R$ 31 bilhões. Ambas as
informações foram obtidas pelo Estadão por meio da Lei de Acesso à
Informação.
O montante esperado com as transações
tributárias com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) era de R$ 12,2
bilhões, mas o governo não divulgou os resultados. O pouco que se sabe é o que
a Petrobras, já sob o comando de Magda Chambriard, contribuiu – e muito – para
reforçar o caixa do governo.
Para encerrar uma disputa de R$ 19,8 bilhões
a respeito da tributação incidente sobre contratos de afretamento de
embarcações, a Petrobras aceitou pagar R$ 6,65 bilhões em depósitos judiciais,
R$ 1,29 bilhão em créditos de prejuízos fiscais de subsidiárias e R$ 11,85
bilhões em dinheiro, por meio de parcelas a serem quitadas ainda neste ano,
segundo fato relevante publicado em junho.
Custou caro, ao governo, a aprovação desse
conjunto de medidas pelo Congresso no ano passado, sobretudo a retomada do voto
de qualidade – um desempate a favor do Fisco nos julgamentos do Carf. A dura
realidade dos números não fez o Executivo cair na real, mas reaproveitar essas
projeções no Orçamento de 2025. Ainda que mais modestas, elas continuam pouco
factíveis. Não se trata de um ato de fé, mas de uma maneira de empurrar vários
problemas com a barriga.
Se admitisse que essas receitas não vão se
confirmar, a equipe econômica, neste ano, teria de contingenciar bem mais que
os R$ 3,8 bilhões que congelou em julho, causando a fúria do Palácio do
Planalto e da bancada do PT no Legislativo. E, se reconhecesse a
improbabilidade de obtê-las também no ano que vem, teria de propor outras
medidas arrecadatórias em seu lugar, abrindo uma nova frente de batalha com um
Congresso avesso a essa agenda.
Com toda a razão, técnicos do Tribunal de
Contas da União (TCU) estão reticentes em relação às projeções de receitas do
governo e ao cumprimento da meta fiscal para este ano e o próximo. Mas o
secretário executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, sustenta que
algumas das maiores empresas do País estão muito interessadas em fechar
transações tributárias com a União.
O correto seria atestar o caráter ficcional
do Orçamento e rever receitas e despesas com lupa e responsabilidade, mas o
governo prefere aguardar algo próximo de um milagre na expectativa de que os
contribuintes abram mão de suas teses, desistam de levar conflitos tributários
com a União ao Judiciário e aceitem encerrá-los no âmbito administrativo. Quem
viver verá.
Feminicídio é a ponta de um iceberg
Correio Braziliense
Trata-se de um crime de ódio. O conceito
surgiu na década de 1970 com objetivo de reconhecer e dar visibilidade a
discriminação, opressão, desigualdade e violência sistemática contra as
mulheres, cuja escalada culmina na morte
A Câmara dos Deputados aprovou na
quarta-feira (11) um projeto de lei que aumenta a pena para feminicídio e para
crimes cometidos contra a mulher. Condenados por assassinato contra mulheres
motivado por violência doméstica ou discriminação de gênero terão pena mínima
de 20 anos, e máxima de 40 anos. Atualmente, a lei prevê que o feminicídio deve
ser punido com prisão de 12 a 30 anos. O projeto segue para sanção
presidencial.
As penas serão aumentadas em 1/3 caso a
vítima esteja grávida ou nos três meses após o parto, quando as vítimas forem
menores de 14 anos ou maiores de 60 e/ou o crime tenha sido cometido na
presença de filhos ou pais da vítima. Em vez de cumprir 50% da pena no regime
fechado para passar ao semiaberto, será necessário cumprir 55%, porém, não
haverá liberdade condicional.
No mesmo dia, quarta-feira (11), o Supremo
Tribunal Federal (STF)) decidiu que condenados por júri popular devem ser
presos imediatamente. O Tribunal do Júri julga autores de crimes dolosos contra
a vida, como homicídio, latrocínios e feminicídio. Na estrutura do Judiciário,
ele corresponde à primeira instância. Portanto, mesmo preso, o condenado ainda
pode recorrer da sentença à segunda instância e a tribunais superiores.
O assassinato de mulheres em contextos
discriminatórios recebeu a designação de feminicídio para dar mais visibilidade
à violência contra a mulher. Na última década (2012-2022), ao menos 48.289
mulheres foram assassinadas no Brasil. Somente em 2022, foram 3.806 vítimas, o
que representa uma taxa de 3,5 casos para cada grupo de 100 mil mulheres. Ainda
assim, o enfrentamento dessa violência extrema não está no centro do debate
público com a intensidade e profundidade necessárias diante da escala do problema.
Trata-se de um crime de ódio. O conceito
surgiu na década de 1970 com objetivo de reconhecer e dar visibilidade a
discriminação, opressão, desigualdade e violência sistemática contra as
mulheres, cuja escalada culmina na morte. Essa forma de assassinato não
constitui um evento isolado, repentino e/ou inesperado; faz parte de um
processo contínuo de violências, cujas raízes são misóginas. Inclui uma vasta
gama de abusos, desde verbais, físicos e sexuais, como o estupro, e diversas
formas de mutilação e de barbárie.
A partir da Lei do Feminicídio (Lei nº
13.104/2015), os casos de feminicídio passaram a ser monitorados
oficialmente. Entretanto, para que essa lei tenha pleno efeito é preciso
arrancar as raízes discriminatórias da invisibilidade e coibir a impunidade. A
morte de mulheres em conflitos de trânsito, por exemplo, não é considerada
feminicídio. É tratada como homicídio comum, embora seja evidente que o crime
está associado à misoginia.
É importante ressaltar a responsabilidade do
Estado, principalmente das autoridades policiais e do Judiciário, nesse cenário
de violência contra a mulher. Muitas vezes o Estado, por ação ou omissão, é
conivente com a persistência da violência contra as mulheres, inclusive quando
chega ao extremo da letalidade. O feminicídio é a ponta de um iceberg. O
endurecimento das penas por feminicídio não resolve a complexidade do problema.
Outras violências se desdobram numa escalada
até o assassinato. Quando o feminicídio acontece, outras medidas falham. A
discriminação começa com a atribuição de qualidades e traços de temperamento
diferentes a homens e mulheres, que delimitam seus espaços existenciais e são
considerados "inato", com o qual se nasce, algo supostamente
"natural", decorrente das distinções corporais entre homens e
mulheres, em especial daquelas associadas às suas diferentes capacidades
reprodutivas. A desigual distribuição de poder entre homens e mulheres seria
resultado dessas diferenças, é "naturalizada".
O feminicídio é a expressão fatal das diversas violências que podem atingir as mulheres em sociedades marcadas pela desigualdade entre os gêneros masculino e feminino, por razões históricas, culturais, econômicas, políticas e sociais discriminatórias.
Ótimos editoriais, especialmente os que tratam da questão amazônica e das decisões do juiz revisionista do STF.
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