Observações e notas críticas sobre uma tentativa de “Ensaio popular de sociologia”
Um trabalho como o Ensaio popular destinado essencialmente a uma comunidade de leitores que não são intelectuais de profissão, deveria partir da análise crítica da filosofia do senso comum, que é a “filosofia dos não-filósofos”, isto é, a concepção do mundo absorvida acriticamente pelos vários ambientes sociais e culturais nos quais se desenvolve a individualidade moral do homem médio. O senso comum não é uma concepção única, idêntica no tempo e no espaço: é o “folclore” da filosofia e, como o folclore, apresenta-se em inumeráveis formas; seu traço fundamental e mais característico é o de ser uma concepção (inclusive nos cérebros individuais) desagregada, incoerente, inconsequente, conforme à posição social e cultural das multidões das quais ele é a filosofia. Quando na história se elabora um grupo social homogêneo, elabora-se também, contra o senso comum, uma filosofia homogênea, isto é, coerente e sistemática. O Ensaio popular se equivoca ao partir (implicitamente) do pressuposto de que, a esta elaboração de uma filosofia original das massas populares, oponham-se os grandes sistemas das filosofias tradicionais e a religião do alto clero, isto é, a concepção do mundo dos intelectuais e da alta cultura. Na realidade, estes sistemas são desconhecidos pelas multidões, não tendo eficácia direta sobre o seu modo de pensar e de agir. Isto não significa, por certo, que eles sejam desprovidos inteiramente de eficácia histórica: mas esta eficácia é de outra natureza. Estes sistemas influem sobre as massas populares como força política externa, como elemento de força coesiva das classes dirigentes, e, portanto, como elemento de subordinação a uma hegemonia exterior, que limita o pensamento original das massas populares de uma maneira negativa, sem influir positivamente sobre elas, como fermento vital de transformação interna do que as massas pensam, embrionária e caoticamente, sobre o mundo e a vida. Os elementos principais do senso comum são fornecidos pelas religiões e, consequentemente, a relação entre senso comum e religião é muito mais íntima do que a relação entre senso comum e sistemas filosóficos dos intelectuais. Mas, também com relação à religião, é necessário distinguir criticamente. Toda religião, inclusive a católica (ou antes, sobretudo a católica, precisamente pelos seus esforços de permanecer “superficialmente” unitária, a fim de não fragmentar-se em igrejas nacionais e em estratificações sociais), é na realidade uma multiplicidade de religiões distintas e frequentemente contraditórias: há um catolicismo dos camponeses, um catolicismo dos pequenos burgueses e dos operários urbanos, um catolicismo das mulheres e um catolicismo dos intelectuais, também este variado e desconexo. Sobre o senso comum, entretanto, influem não só as formas mais toscas e menos elaboradas destes vários catolicismos, atualmente existentes, como influíram também e são componentes do atual senso comum as religiões precedentes e as formas precedentes do atual catolicismo, os movimentos heréticos populares, as superstições científicas ligadas às religiões passadas, etc.
Predominam no
senso comum os elementos “realistas”, materialistas, isto é, o produto imediato
da sensação bruta, o que, de resto, não está em contradição com o elemento
religioso, ao contrário; mas estes elementos são “supersticiosos”, acríticos.
Eis, portanto, um perigo representado pelo Ensaio popular-, ele confirma frequentemente
estes elementos acríticos, graças aos quais o senso comum é ainda ptolomaico,
antropomórfico, antropocêntrico, ao invés de criticá-los cientificamente. O que
se disse acima sobre o Ensaio popular, a saber, que ele critica as filosofias
sistemáticas ao invés de partir da crítica do senso comum, deve ser entendido
como observação metodológica, dentro de certos limites. Por certo, isto não
quer dizer que se deva esquecer a crítica às filosofias sistemáticas dos
intelectuais. Quando, individualmente, um elemento da massa supera criticamente
o senso comum, ele aceita, por este mesmo fato, uma filosofia nova: daí, portanto,
a necessidade, numa exposição da filosofia da práxis, da polêmica com as
filosofias tradicionais. Aliás, por este seu caráter tendencial de filosofia de
massa, a filosofia da práxis só pode ser concebida em forma polêmica, de luta
perpétua. Todavia, o ponto de partida deve ser sempre o senso comum, que é
espontaneamente a filosofia das multidões, as quais se trata de tornar
ideologicamente homogêneas.
*Antonio Gramsci (1891-1937), Cadernos do Cárcere,
p.114-6, v. 1. Civilização Brasileira, Rio de janeiro, 2006.
" Tradição significa votar na mais obscura das classes, nossos ancestrais. É a democracia dos mortos. A tradição recusa a se submeter àquela arrogante oligarquia que, por acaso, se encontra por perto. "
ResponderExcluirG. K. Chesterton
😏😏😏
Ou melhor, vamos ao mundo econômico das despesas sociais obrigatórias do orçamento 2025 valendo R$1.100,000 000 000 000 000 001,00 (trilhão)
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