CartaCapital
O campo progressista paga nas urnas o preço
do anacronismo
O Brasil que emerge das urnas do primeiro
turno das eleições municipais de 2024 é um
país de centro-direita. O segundo turno poderá ter um viés mais à direita ou
mais à esquerda, mas não conseguirá mudar essa conclusão. Somente 53 cidades
terão segundo turno, dentre as quais 15 capitais. Como referência, o PT está no
segundo turno em quatro capitais e o PL, em nove.
Três partidos de centro-direita – PSD, MDB e PP – foram os grandes campões. O PSD passou de 657 prefeituras conquistadas em 2020 para 882. O MDB, de 793 para 856. O PP, de 690 para 748. O Republicanos, o União Brasil e o direitista PL também cresceram.
Os partidos mais alinhados à direita passaram
de 2.502 prefeituras conquistas em 2020 para 2.626. Foi o melhor resultado
desde o ano 2000. O avanço foi de 5%. Os partidos tipicamente de esquerda
caíram e tiveram uma redução de 13%. Passaram de 852 cidades conquistadas em
2020 para 742. As siglas mais de centro conquistaram agora 2.103 prefeituras,
com uma leve perda em relação ao pleito passado.
Em que pese o PT ter passado de 182
prefeituras conquistas em 2020 para 248 agora, não dá para dizer que se trata
de uma recuperação. Em 2016, no auge da crise do petismo, o partido tinha
conquistado 252 prefeituras. Muitas das prefeituras conquistadas agora são de
cidades pequenas, com baixo impacto econômico e eleitoral e de escassa
influência na opinião pública. O ministro Alexandre Padilha e alguns dirigentes
do partido não podem vender uma derrota como uma vitória. Rede, PCdoB,
PDT, PSOL e PV tiveram perdas significativas. O PSOL não elegeu nenhum prefeito
e Guilherme Boulos tornou-se a tábua de salvação do partido. No campo
progressista, além do PT, o PSB teve um crescimento significativo, de 253
prefeituras conquistadas há quatro anos para 312 agora.
No estado de São Paulo, o PT colheu derrotas
importantes. Em Osasco perdeu no primeiro turno. O partido teve também uma
derrota simbólica em Araraquara, governada em segundo mandato por Edinho Silva,
provável futuro presidente do PT. Os petistas projetavam Araraquara como um
modelo de gestão bem-sucedido de cidades médias do interior. Ficou de fora do
segundo turno em São Bernardo, Santo André, Guarulhos, Campinas e Santos,
cidades já governadas pelo partido.
As causas da derrota das esquerdas são
múltiplas e sérias. A causa mais geral é que as esquerdas vivem uma crise de
sentido, de projeto ou de estratégia. As esquerdas não sabem para onde ir e
estão fora do nosso tempo. Tornaram-se anacrônicas. Essa crise de projeto tem
vários desdobramentos. Ela se desdobra em crise de direção, de liderança, de
capacidade de persuasão e de formulação de projetos e de propostas para
atender às demandas sociais.
A principal marca do nosso tempo é a crise
ambiental. São poucos os candidatos e partidos de esquerda que se apropriam da
agenda da crise e da sustentabilidade de forma efetiva. A Rede, que adota o
tema ambiental como central, tem pouca capacidade de traduzi-lo em políticas
públicas concretas.
A segunda marca do nosso tempo é a transição
digital. As esquerdas são ainda analógicas. Suas retóricas remetem mais a uma
linguagem dos tempos da sociedade industrial das grandes unidades fabris do que
ao tempo das mudanças velozes da era digital e da Inteligência Artificial.
Falam para um tipo de trabalhadores que se tornou minoria. Os trabalhadores do
mundo digital e uberizado têm outras aspirações, outras relações de trabalho,
outras demandas, outras subjetividades.
Os trabalhadores do mundo digital e uberizado
têm outras subjetividades
A par desse anacronismo das esquerdas, elas
não compreenderam também as implicações do encontro entre atividade política e
as tecnologias digitais (tecnopolítica) e de suas decorrências e
desdobramentos. Esse encontro permite projetar liderança, poder, persuasão e
engajamento. É um dos mais potentes meios de atividade política quando se sabe
usá-lo. A extrema-direita navega quase sozinha nesse espaço. Basta olhar para a
projeção de lideranças como Nikolas Ferreira, Pablo Marçal, Bruno Engler,
Topázio Neto (prefeito de Florianópolis) e Lucas Pavanato (candidato a
vereador mais votado de São Paulo), entre outros.
Em conexão com esse fenômeno, é fato que hoje
a direita projeta muito mais lideranças jovens do que a esquerda. As igrejas
evangélicas são escolas de formação de lideranças. A formação de lideranças,
antiga prática e vocação das esquerdas, é uma atividade que sofreu forte
extravio nesse campo político, pois as fundações e os cursos de formação das
esquerdas desenvolvem conteúdos que oscilam entre a gestão formalística e
fórmulas ideológicas abstratas e sem substância na realidade.
As esquerdas perdem para a extrema-direita
num terreno mais complexo: o da ideologia, dos valores e da família. É
indiscutível que a direita consegue mobilizar mais afetos com discursos
contrários à “ideologia de gênero”, ao aborto, às pautas LGBTQIA+ e em defesa
da família. O tema da família, por exemplo, é quase ausente nas pautas das
esquerdas. Essas pautas vêm enfatizadas com forte retórica de um cristianismo
conservador e quase violento, desdobrado das teorias da guerra espiritual. As
igrejas evangélicas ocupam os territórios periféricos e os tornam enclaves
impenetráveis para as esquerdas, que só chegam por perto em anos eleitorais.
As esquerdas perderam também a primazia dos
programas sociais compensatórios. Hoje são praticados por qualquer partido. Sem
essa paternidade, as esquerdas não têm alternativa nem para a teologia da
prosperidade dos evangélicos nem para o discurso do empreendedorismo da
extrema-direita do tipo Marçal.
Extraviadas no tempo, as esquerdas não
conseguem propor programas inovadores nas cidades que façam convergir a
transição ecológica, a transição digital, com conexões localizadas nos
territórios que envolvam saúde, cultura, esportes, letramentos, serviços e
atividades econômicas criativas e colaborativas. As tecnologias digitais
permitem a construção de plataformas que articulem todos esses serviços e
atividades. Mas a crise de mentalidade impede atualizações que coloquem em
acordo uma visão de mundo consoante com os desafios do século XXI.
Publicado na edição n° 1332 de CartaCapital, em 16 de outubro de 2024.
Se for chorar manda áudio.
ResponderExcluir🤭🤭🤭
( Não resisti. )
Se fosse alguém de Direita que escrevesse isto, poderíamos pensar que seria um ataque dum adversário. Escrito por alguém de Esquerda, só podemos concordar e tentar acordar.
ResponderExcluir" A esquerda morreu. "
ResponderExcluirVladimir Safatle
😏😏😏
Mas a Esquerda nunca morre!!
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