O Globo
Há os que são contra a eutanásia. Mas deixem
ir em paz quem não compartilha a mesma crença e os mesmos temores
Quando Roberto
Carlos quis se casar, em 1968, teve de sair do país: a noiva,
Nice Rossi, era desquitada, e a legislação brasileira não permitia uma segunda
chance no casamento. Graças ao empenho do senador Nélson Carneiro, o divórcio
foi, finalmente, aprovado em 1977, e hoje ninguém mais precisa cruzar a
fronteira para reconstruir a vida conjugal.
Quando, em 2024, o poeta e filósofo Antonio
Cicero quis acabar com a angústia de ver o passado se esvair, não conseguir
mais filosofar e sentir que lhe escapava a poesia, teve de fazer as malas e ir
à Suíça para dar a sua vida um fim digno.
Não há no Brasil de hoje um Nélson Carneiro disposto a lutar contra o conservadorismo e os dogmas religiosos para devolver ao cidadão o direito inato e irrenunciável de dispor da própria existência como quiser, exercendo a liberdade de escolha em tudo que diga respeito a si mesmo e à própria felicidade.
Se dependêssemos do Congresso atual,
possivelmente ainda estaríamos no tempo do desquite — a direita retrógrada se
agarra a uma falaciosa “defesa da família”; a esquerda está mais interessada em
aparelhar estatais, apoiar ditaduras e patrulhar o vocabulário; e o Centrão não
enxergaria ganho financeiro ou eleitoral (que, no caso, vêm a ser a mesma
coisa).
Há os que são contrários à eutanásia, ao
suicídio assistido (ou mesmo à ortotanásia) e prefiram sofrer até o suspiro
final — seja pela nobreza do martírio, seja pelo arraigado terror infantil de
ir para o Inferno, condenados pelo ser divino e bondoso que os criou. Que estes
— certamente a maioria — possam usufruir integralmente a cota de dor que lhes
cabe neste latifúndio. Mas deixem ir em paz os que não compartilham a mesma
crença e os mesmos temores.
Antonio Cicero celebrou a vida,
principalmente nos poemas que escreveu para ser musicados: Curto as coisas
que acendem e apagam/E se acendem novamente em vão (“Bagatelas”, com
Frejat), A vida é fogo e risco/E não pode esperar (“Fogo e risco”,
com Marina Lima), Vem comigo agora/Hoje, enquanto a gente se adora/E a
vida diz baixinho: é hoje (“É a vida que diz”, com Marina Lima e Piska).
E também elaborou a morte:
Memória,/deusa que não é, como querem crer os
néscios,/a guardiã do passado, com o qual pouco/se importa, mas antes a que nos
oferece o/esquecimento quando canta o imorredouro. (“Guardar”, 1996)
Dizem que o que destroça/de tempos em tempos
nossas crenças/são catástrofes, que nos impedem/de amadurecer. Mas quem se
lembra/mesmo ou se importa se, ao que parece,/o que nasceu merece morrer? (“A
cidade e os livros”, 2002)
Eu viveria tantas mortes/morreria tantas
vidas/jamais me queixaria/jamais. (“Porventura”, 2012)
Pelo direito de não se perder num labirinto
dentro de si mesmo, de não se ver cercado de estranhos num tempo estranho que
não era mais seu; para poder ser sujeito de seus últimos atos — despedir-se de
quem ama, da cidade favorita, das coisas que lhe deram prazer e fizeram a vida
valer a pena —, Antonio Cicero precisou cruzar um oceano. Quem quer que o
ajudasse aqui estaria sujeito à pena de prisão (de seis meses a dois anos).
Antes que a lucidez lhe escapasse por completo, o filósofo escreveu numa carta seu último verso: Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade. Uma prerrogativa que não deveria ser negada a ninguém.
Excelente. O tema, árido, exige inteligência, maturidade e sensibilidade, virtudes compartilhadas por Antônio Cícero e Eduardo Affonso e tão escassas na mídia e no meio político. Parabéns também a Gilvan Melo por, tão corajosamente, publicar e divulgar este texto, essencial.
ResponderExcluirQue belas palavras, que linda mensagem... "Seu mundo é você quem faz"... Os 2 milhões de palestino de Gaza, que incluíam 30 mil crianças e mulheres mortas no último ano pela "autodefesa" de Israel, vivendo hoje sem hospitais e nem escolas, entre os escombros que sobraram dos foguetes e das bombas israelenses, estão "vivendo no mundo que fizeram"...
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