Eduardo Graça / O Globo
‘Não basta essa esquerda legal' que discute
gênero e raça e deixou pobres na direita’
Crítico do protagonismo das pautas
identitárias, sociólogo diz que campo progressista terá que lutar para
reconquistar o eleitor pobre, que se sente valorizado pelo bolsonarismo
São Paulo - Em “O pobre de direita — a
vingança dos bastardos”, o sociólogo Jessé Souza, 64 anos, autor de, entre
outros, “A elite do atraso”, “A ralé brasileira” e “A classe média no espelho”,
defende ser impossível entender o apelo do bolsonarismo aos menos privilegiados
sem levar em conta dois fatores: de um lado, o racismo regional no país, com a
enorme identificação “dos pobres brancos do sul e de São Paulo” com o
ex-presidente Jair Bolsonaro; de outro, a inação da esquerda, “que nem mais
tenta disputar áreas periféricas com grande presença das igrejas evangélicas”.
Voz destacada da esquerda na academia e
ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no governo
Dilma Rousseff (PT), Souza critica o protagonismo dado pelos partidos de
esquerda às pautas identitárias.
Para o professor da Universidade Federal do
ABC, este foi um “erro completo” e uma das razões pelas quais Guilherme Boulos
(PSOL) teve muito menos votos no domingo do que a soma do prefeito Ricardo
Nunes (MDB), dono da máquina municipal, e de Pablo Marçal (PRTB), em franjas da
cidade nas zonas Sul (Paralheiros, Grajaú), Norte (Brasilândia, Lauzane
Paulista), Leste (Sapopemba e Vila Prudente) e até Oeste (Lapa).
Veja a seguir os principais trechos da entrevista com o GLOBO:
Nunes e Marçal chegaram na frente em áreas
periféricas nas zonas Sul, Norte e Leste em São Paulo. Foi o voto do “pobre de
direita”?
Sem dúvida. Passamos por um processo de
idiotização das pessoas e de inação dos que deveriam fazer um trabalho de base
de qualidade. Quando comecei a entrevistar, para o livro, há alguns anos,
pessoas das periferias de São Paulo, me desesperei. O quadro já era o de “tá
dominado” pela Teologia da Prosperidade, neoliberal e reacionária.
O Datafolha mostra que 84% dos eleitores de
Marçal devem migrar para Nunes no segundo turno. O quão ideológico é esse voto?
O pastor evangélico é uma espécie de coach e
Marçal escancarou a faceta neoliberal do neopentecostalismo, com a ética da
prosperidade e o culto vazio à capacidade do indivíduo. A esquerda até pode
reconquistar esse eleitor, mas, para isso, precisará mostrar a ele que as
limitações estruturais do empreendedorismo popular estão ligadas à retenção do
capital na Faria Lima.
Marçal é um “Coringa” (referência ao
personagem dos quadrinhos), mimetiza os anseios do pobre remediado que sonha
com o apagamento mágico, por ele prometido, da pobreza. É um “político Bets”,
que soube interpretar anseios dos pobres de direita. Esses eleitores
identificaram nele a raiva e o ressentimento, mesmo sem que lhes fosse dada
explicação alguma sobre as razões dessa injustiça social.
Candidatos similares a Marçal se
multiplicarão?
Marçal se tornou referência nacional e me
chamou atenção a irmandade de sua visão de mundo com a da Faria Lima, uma
aliança extremamente perigosa ao unir muito dinheiro a muita penetração
popular. Ele será a cara do Brasil em um futuro próximo se nada for feito
institucionalmente para garantir o cumprimento das regras democráticas. Marçal
precisa ser considerado inelegível após o que fez. Isso não evitará que outros
candidatos sigam sua cartilha, mas eles precisarão serem mais cuidadosos, menos
ameaçadores. E, com sorte, comunicadores com menos domínio do público.
A esquerda foi incapaz de conversar com o
“pobre de direita” nas eleições municipais?
Foi. A esquerda errou, e muito. Não procurou,
com louváveis exceções, conquistar os corações e as mentes dos mais pobres. Se
você não apresenta nada minimamente organizado e sequer tenta ir às periferias
urbanas e rurais, o trabalho das igrejas evangélicas, marcado pelo
anti-esquerdismo, ganha sentido político ainda mais explícito. No vazio que foi
criado pela falta de mobilização e disputa de narrativas, a esquerda perdeu
campo. Não estou otimista, creio que isso se aprofundará mais.
Nesse sentido, o senhor escreve que se criou
um eleitorado cativo entre os pobres que, apesar de não conseguirem nenhuma
mudança econômica prática com seu voto, vivem a violência da extrema direita
como expressão de suas angústias e ressentimentos…
A chave, para a direita, é a de fazer com que
o pobre se acredite valorizado, respeitado, quando antes era permanentemente
humilhado, vinte e quatro horas por dia. Muitas vezes, literalmente, sem nem o
nome do pai na certidão de nascimento. Ele aceita assim como possibilidade de
salvação ser celebrado e reconhecido por ser honesto, “de bem”, poder vencer
por conta própria. No balanço, é uma reação muito mais moral do que econômica,
ainda que passe pelo material.
As igrejas evangélicas ofereceram a doutrina,
montaram a solidariedade interna e a base social para se enfrentar a injustiça
social. Porém, e aí está a chave para a esquerda, repito: jamais é objeto de
discussão os porquês da injustiça.
A meritocracia dos coaches responde que é
culpa de sua própria incompetência…
Como se viu com Marçal. Uma explicação que
não é real, mas de fácil entendimento. Em nenhum estrato sócio-econômico a
meritocracia é tão entranhada quanto entre os mais pobres. A aposta na direita
passa pela aceitação da culpabilidade da vítima. Esquece-se a falta de acesso à
Educação e à Saúde, e, tão ou mais importante, a herança da escravização.
O senhor identifica componente racial
regional no voto do pobre de direita, que teria sido fértil para o
bolsonarismo…
O pobre de direita de São Paulo ao Rio Grande
do Sul vê no ex-presidente Jair Bolsonaro um semelhante. Nestes estados, a
maioria das pessoas se identifica como branca. Já no restante do país, com
maioria de pobres mestiços e pretos, a identificação não é tão direta.
Bolsonaro consegue expressar o sentimento social do branco que trabalha duro e
crê estar bancando o outro pobre, o do norte, o menos branco, com
assistencialismo, com o Bolsa Família.
No caso dos pobres de direita negros e
evangélicos do Sudeste e do Sul, há o imenso desejo de embranquecer. Sem
exceção, nas entrevistas com os pobres de direita, me deparei com o racismo
entranhado. Eu, que sou potiguar, ouvi seguidamente que “nordestino é
preguiçoso”.
Bolsonaro é traduzido no livro como a
expressão atual deste pobre de direita. Mas o avanço de Marçal não sinaliza
fratura no bolsonarismo neste estrato?
Não. O racismo reprimido seguirá guiando este
voto para o bolsonarismo, com sua arminha voltada para o jovem preto, a partir
da pauta da segurança, tão cara a esses eleitores. Os pobres são os que mais
sofrem com os preconceitos que a elite criou para oprimi-los. Ele acredita que
é um incapaz. E aí ou ele usa essa "faca envenenada” nele mesmo ou no
“outro pobre”.
Esse “outro pobre” é o maconheiro, o
macumbeiro, o LGBTQUIA+, o nordestino, o que vota no PT, o bandido, cabe tudo
naquele que é percebido como transgressor. O lulismo ainda consegue tocar o
eleitorado pobre acima de São Paulo, mais mestiço, que foi crucial para
derrotar Bolsonaro em 2022. Mas esse voto passa por um processo de
criminalização.
De que modo?
Esse eleitor sofre, desde a Lava-Jato, com a
pecha de ser cúmplice da corrupção. E o pobre prefere morrer a ser corrupto. O
voto na esquerda teria sido uma burrice, mais uma prova da incapacidade do
andar de baixo. Isso está entranhado em muitos pobres de direita hoje.
O senhor critica o protagonismo das pautas
ditas identitárias pela esquerda. Isso a teria distanciado ainda mais dos
eleitores mais pobres?
Sim. Foi um erro completo. E Boulos está
pagando o preço desse equívoco agora em São Paulo. Não basta essa esquerda
“legal”, que discute gênero e raça. Ainda importa contar ao eleitor por que um
cidadão ganha R$ 100 mil enquanto outro R$ 100, por que há pessoas tão
diferentemente aparelhadas para a competição social, para além das diferenças
de gênero e raça. Se não perceber isso logo, a esquerda deixar este pobre na
direita.
O identitarismo ecoa na classe média e na
elite, não no pobre, jogado na lata de lixo pelo preconceito racial e agora
vítima de racismo cultural. Não se ganha eleição no Brasil sem o voto da
maioria pobre e a esquerda precisa pelo menos tentar voltar a disputar este
voto. Sei que vou levar cacetada, mas está na hora de o PT aprender com Getúlio
Vargas.
O senhor defende um encontro do PT com o
varguismo?
Sim. Validar esse pobre é importante. É o que
Getúlio fez, inclusive do ponto de vista racial. Para redimir o humilhado, é
preciso celebrar suas virtudes, afirmar que eles não são lixo, o que a direita
faz hoje, ainda que de modo enviesado. O PT nasceu dando de ombros para a
herança getulista, opondo o sindicato livre ao peleguismo trabalhista. Tudo
bem. Mas, sendo simplista, PT e PSDB são mais parecidos do que imaginamos,
nascidos de braços diversos da mesma elite paulista com pendores
social-democratas. Quem ofereceu a face popular ao PT foi o Lula. Depois dele,
o PT pode estar destinado à mesma — pouca — relevância do PSDB hoje. A não ser
que volte a conversar com os pobres. E não só pela ótica econômica.
Como assim?
É ilusão o governo Lula achar que as pessoas irão espontaneamente, em 2024, identificar no aumento real do salário mínimo um projeto do PT. Não é assim que funciona a cabeça humana na sociedade contemporânea, e muito menos a transmissão de ideias e de informação. A esquerda precisa fazer o que fiz ao escrever este livro: ir à periferia e se desesperar. O Bolsa Família foi importantíssimo, mas a esquerda não ofereceu o escape da humilhação que é estar na posição de delinquente no mundo de hoje. O pobre que ganha R$ 4 mil criminaliza o “nordestino miserável que mama no Bolsa Família” e crê de fato que o sustenta. Friso, só há um jeito de se sair da armadilha do pobre de direita e disputar de verdade seu voto: explicar a ele as razões das injustiças sociais e de sua escolha momentânea equivocada por um moralismo repressor.
Como explicar as causas dessa desigualdade econômica sem revelar que é pelego? Como mostrar que é o estado quem dá suporte a essa desigualdade após o quinto mandato? Como explicar que o PT banca o Bolsa Empresário em $ 500 bilhões e o Bolsa Família ainda estaria em $60 bilhões, não fosse Bolsonaro/Paulo Guedes, que levou $120 bilhões para salvar as empresas durante a pandemia endividando a renda futura dos pobres?
ResponderExcluirMuito bem falado
ResponderExcluirO autor está esquecendo que no mundo inteiro a esquerda está em declínio não só pelas pautas e dentárias mas também pelo seu viés autoritário Que aposta na censura como forma de se manter no poder na pandemia a população mundial tomou um susto do que essa turma é capaz de fazer e no Brasil a esquerda também está em declínio total
ResponderExcluirSugiro a leitura da reportagem " Como antiga ' Martalândia ' virou reduto de Nunes; segundo eleitores: ' PT já não é mais um partido de esquerda ' ", da BBC Brasil
ResponderExcluir😏😏😏
Jessé de Souza acha que o problema da esquerda é a falta de trabalho de base e a pauta identitária. E se for um tanto de incompetência? E se o pobre prefere quem zera a fila da creche, por exemplo? Ou faz obras de drenagem que impedem enchentes, depois de 30 anos de espera? Talvez um dos problemas da esquersa seja a ideologização de tudo.
ResponderExcluirNa pandemia a população brasileira tomou um susto do que o bolsonarismo foi capaz de fazer, deixando morrer mais de 700 mil brasileiros (10% de todos os mortos por Covid no mundo), quando a população brasileira representa menos de 3% da população mundial. Meio milhão de brasileiros morreram só porque viviam no país governado pelo GENOCIDA e ficaram sujeitos às decisões e omissões criminosas do miliciano mentiroso e do seu ministro INCOMPETENTE da Saúde GENERAL canalha Pazuello.
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