Valor Econômico
Vivian Oswaldo / Valor Econômico
As gigantes da tecnologia e os paraísos fiscais, segundo o economista americano, “são exemplos do lado mais sombrio da globalização”
Aos 81 anos, o economista americano Joseph
Stiglitz se diz um ativista. Para ele, é impossível ver como o mundo “não
funciona, ou funciona de forma injusta, sem se envolver”. Talvez por isso não
tenha papas na língua.
Em entrevista ao Valor, o vencedor do Prêmio
Nobel de Economia de 2001 e professor da Universidade Columbia afirma que a
agenda climática está andando muito devagar, que a conta da transição
energética e do desenvolvimento tem que ser paga pelos muito ricos e pelas
multinacionais, que, “em parte, tornaram-se tão ricos porque não pagaram a sua
parcela justa de impostos”. Neste contexto, o planeta precisa de mais, e não
menos, Estado.
“Vemos um populismo perigoso em locais onde o governo fez muito pouco”, ressalta. Stiglitz afirma que o republicano Donald Trump é um grande perigo para os Estados Unidos e para o mundo, assim como as big techs, que, em sua avaliação, aproveitam-se da globalização para se fazer inatingíveis pelas leis. As gigantes da tecnologia e os paraísos fiscais, segundo ele, “são exemplos do lado mais sombrio da globalização”.
Tudo isso o teria levado a escrever seu novo livro: “The Road to Freedom: Economics and the Good Society” (O caminho para a liberdade: economia e a boa sociedade, em tradução livre), lançado em abril deste ano, onde afirma que mercados “livres”, sem restrições, só geraram crises: financeira, dos opioides e da desigualdade.
Valor: Sob a presidência temporária
do Brasil, o G20 se prepara para a cúpula de líderes em novembro, no Rio. A
plataforma foi importante para enfrentar a crise financeira de 2008. Ela
continua relevante para resolver questões globais?
Joseph Stiglitz: No passado, existia a
preocupação de que a África, por exemplo, não estava adequadamente
representada. A minha sensação é de que precisamos de tantos fóruns quanto
pudermos, e que se complementem. A ONU é a forma mais importante para mim. É
aquela que o mundo criou para unir todos. Mas é muito, muito grande. Por isso,
como no Congresso temos comitês, agrupamentos, o mundo precisa desse tipo de
coisa, de agrupamentos de pessoas. Tem o G7, o G20, os Brics. O G20 é
claramente muito importante
O setor privado tem muitos pontos fortes, mas
temos também de reconhecer suas limitações
Valor: Como enfrentar desafios
globais e garantir crescimento?
Stiglitz: Há muitos desafios.
Mas, veja bem, não podemos resolver todos os problemas. Podemos fazer
progressos em alguns dos mais importantes. O apelo a uma ação mais forte em
relação às alterações climáticas é um em que temos progredido muito devagar.
Mas, infelizmente, os acontecimentos climáticos nos fazem entender que não
podemos esperar. Isso ajuda a motivar ações mais fortes, mais depressa, em
relação ao clima. Queria que a covid-19 tivesse tido mais sucesso em motivar
reformas no regime de propriedade intelectual.
Valor: Está falando do chamado
apartheid da vacina?
Stiglitz: Sim. O Brasil tem
sido muito ativo no apelo por reformas no regime de propriedade intelectual, e
um dos temas que o presidente Lula enfatiza também é o regime tributário.
Trabalho com um grupo chamado Comissão Independente sobre a Reforma do Sistema
de Imposto Corporativo Internacional. Acreditamos que a elisão e evasão fiscal
são um grande problema global. Aqueles que poderiam fazer contribuições para o
desenvolvimento ou justiça social estão evitando a sua responsabilidade. Temos
de reformar as leis para evitar isso, ou os segredos dos paraísos fiscais. O
progresso da iniciativa por um imposto mínimo global é um bom exemplo. O apelo
do G20 à tributação dos multimilionários é outra questão importante em que
penso que iremos fazer progressos.
Valor: Serão necessários trilhões de
dólares para enfrentar essas questões. De onde devem vir esses recursos?
Stiglitz: O dinheiro só
pode vir de onde está o dinheiro. Você não vai fazer com que os pobres paguem.
São as corporações multinacionais, os bilionários, os muito ricos, que têm de
pagar. Em parte, tornaram-se tão ricos porque não pagaram a sua parcela justa
de impostos. Ou seja, o sistema serve para aqueles que evitam impostos e ficam
cada vez mais ricos, em geral, empresas com poder de mercado, que se envolvem
em algum tipo de abuso. A família Sackler, que ganhou dinheiro com a crise dos
opioides, é um exemplo de alguém que ficou muito rico à custa de milhões de
vidas nos Estados Unidos. Podemos continuar com a lista. Há muitas pessoas que
se tornam muito ricas por meio da exploração de outras pessoas. A gente deveria
tentar impedir a exploração, no mínimo tributar as riquezas de quem ganha com
essa exploração.
Valor: Uma nova arquitetura
financeira internacional inclusiva é possível?
Stiglitz: Existem muitas
dimensões de inclusão. Quando penso na inclusão como algo relacionado com a
justiça social, neste momento, um aspecto importante passa pela gestão da crise
da dívida em muitos países excessivamente endividados. Não temos nenhum sistema
para resolver suavemente estas crises. Temos leis de falência. Mas não temos um
regime como esse para resolver dívidas soberanas ou transfronteiriças. [...] É
obviamente necessário que haja um maior fluxo de recursos para os países em
desenvolvimento e mercados emergentes, especialmente para resolver os problemas
das alterações climáticas. Para mim, será um esforço conjunto de todos. Muita
gente falando em alavancar o setor privado. Acho que isso vai ser importante.
Mas, quando se trata de clima, é preciso mais que isso. É aí que os bancos de
desenvolvimento precisam de mais força. Eles, para mim, são um instrumento
muito importante.
Valor: Qual o papel dos bancos de
desenvolvimento?
Stiglitz: O BNDES, o Banco
Europeu de Investimento, são bancos muito bem-sucedidos e mostram que um banco
de desenvolvimento pode realmente funcionar bem. Passamos por um período em que
comprometemos ideologicamente o papel dos bancos de desenvolvimento. Acho que foi
errado. O setor privado tende a ter o problema de ser demasiado míope e
demasiado avesso ao risco. Os bancos de desenvolvimento podem ter uma visão de
longo prazo e assumir riscos maiores, como o associado ao BNDES, que ajudou a
desenvolver a Embraer e alguns dos combustíveis à base de cana-de-açúcar, que
são muito importantes para evitar as alterações climáticas.
Valor: O setor privado tem o
dinheiro, mas não vai consertar o mundo sozinho?
Stiglitz: O setor privado está
interessado em lucros. Quando há lucros, entra. Mas não temos um preço para o
carbono. Portanto, na ausência do preço do carbono, eles não têm os incentivos
certos para aderir às mudanças climáticas. Como sabemos, o setor privado tende
a ser muito míope. O clima é um investimento a longo prazo. E o setor privado é
excessivamente avesso a risco, e não sabe avaliar o risco. Vimos isso durante a
covid-19. No início da guerra na Ucrânia, vimos que o setor privado na Alemanha
tornou-se demasiado dependente do gás russo. O setor privado criou mercados que
não eram resilientes. O setor privado tem muitos pontos fortes, mas temos
também de reconhecer suas limitações, quando falamos em alterações climáticas,
ou de questões como a justiça social, investimentos de longo prazo.
Valor: O senhor diz no livro que
populistas e ameaças à democracia surgem onde o Estado é menos presente.
Stiglitz: Existe esta ideologia
que remonta a (Friederik) Hayek, que falava que Estado demais levaria ao
caminho da servidão, à subserviência ao Estado. Milton Friedman escreveu num
livro chamado “Liberdade do capitalismo” que se você tiver um Estado grande
perderá sua liberdade. Sabemos que essas ideias agora estão erradas. Vemos um
populismo perigoso em locais onde o governo fez muito pouco, e não muito. Não
vemos tanto isso na Suécia, na Dinamarca ou na Noruega. Vemos nos Estados
Unidos, e nos Estados Unidos, naqueles lugares onde as pessoas não têm emprego,
a saúde é fraca, não há oportunidades. Então, você tem esse tipo de desespero.
E é a partir desse desespero que as pessoas recorrem a gente como Trump ou
Bolsonaro. Então, acho que há vários erros importantes que esses caras
cometeram. O primeiro é que superestimaram a eficiência do mercado. Não
reconheceram os problemas que já mencionei, a exploração do poder de mercado,
exploração de outras pessoas, exploração de recursos naturais. Subestimaram a
importância da nossa interdependência. Quando vivemos de forma integrada, se eu
não me vacinar ou usar máscaras, há uma chance de você morrer. São ações que
você sabe que podem te machucar. Se eu carregar uma AK-47, você pode morrer.
Isso pode prejudicar sua liberdade. E é tão óbvio, mas eles simplesmente não
reconheceram isso. Se eu poluir o ar e você tiver asma, você morre. A liberdade
de uma pessoa é a falta de liberdade de outra.
Valor: E a geopolítica? Estados
Unidos e Europa, Rússia, Oriente Médio e uma guerra não declarada com a China.
Como trabalhar juntos num mundo polarizado como o nosso?
Stiglitz: Fico feliz que você
tenha levantado isso. Infelizmente, vivemos em um mundo onde existem maus
atores. Sempre fui alguém que criticou os gastos militares, mas quando se vê
que alguém como Putin poderia assumir o controle do meu país, e se eu morasse
na Europa, sentiria isso ainda mais… Infelizmente, você precisa de gastos com
ações coletivas em defesa para se proteger. Teremos que aprender a cooperar e
competir ao mesmo tempo. Esse é particularmente o caso com a China. Precisamos
cooperar com a China nas alterações climáticas. Mas temos de expressar a nossa
visão de que consideramos que a democracia é um sistema político melhor. Que
pensamos que o nosso sistema econômico tem um grande papel para a iniciativa
privada, mas também um grande papel para o governo, e que conseguimos um
equilíbrio melhor do que o da China. Acredito no proselitismo. Deveríamos
tentar convencer os países da América Latina e da África de que a nossa forma
de fazer isso é melhor, mas em parte mostrando que o nosso sistema funciona
melhor para nós.
Valor: As realidades são muito
diferentes. Há níveis de desenvolvimento distintos.
Stiglitz: Sim. As
realidades podem ser muito diferentes, e não é possível adaptar as regras de um
país a outro. Mas de fato acredito num modelo em que a democracia esteja no
centro e onde haja um equilíbrio cuidadoso dentro da sociedade sobre ação
coletiva, oportunidades privadas e assim por diante. Um equilíbrio melhor do
que o que temos agora nos Estados Unidos. Foi por isso que escrevi meu livro.
Pensei num equilíbrio bem diferente desse e da China.
Valor: Como ficaria esse equilíbrio
se Donald Trump vencer?
Stiglitz: Escrevi o livro
em parte por causa disso. Acho que ele é um perigo real para os Estados Unidos
e para o mundo. Não creio que tenha uma concepção intelectual clara. Mas acho
que é um populista autoritário. Acredito que o nosso progresso, nossos avanços
ao longo dos últimos 250 anos estão muito associados às ideias de raciocínio do
Iluminismo, à reflexão sobre a forma como organizamos a nossa sociedade, a
ciência. Ele nega a importância da ciência, do raciocínio. Por isso é tão
perigoso.
Valor: O mundo debate o papel das
grandes plataformas digitais, das big techs. O Brasil foi o primeiro país
democrático a banir o X de Elon Musk.
Stiglitz: As big techs
representam um perigo real para a nossa sociedade. Acho que estão abusando do
seu poder. Uma maneira de pensar sobre isso é que nunca tivemos uma posição
absolutista sobre a liberdade de expressão. Você não pode acender fogo em um
teatro lotado. Restringimos pornografia infantil. A Alemanha, por uma boa
razão, restringe o discurso de ódio porque tiveram uma experiência muito má na
Segunda Guerra Mundial. As novas tecnologias ampliaram a capacidade de espalhar
erros e desinformação, alguns dos quais muito perigosos para a nossa sociedade,
de uma forma ou de outra. [...] Então, nenhuma pessoa, seja Elon Musk, a pessoa
mais rica do mundo, ou quem quer que seja, deve se considerar acima da lei. E
Musk disse basicamente que está acima da lei. Ele diz ‘Você não tem o direito
de me regular’. E está absolutamente errado.
Valor: Muitos dizem que o senhor
tornou-se ativista. O senhor se considera um?
Stiglitz: (sorri) Eu me vejo
tanto como acadêmico quanto como ativista. Claro que... se você definir um
ativista como alguém que está tentando mudar a sociedade, sim, sou. É muito
difícil ver como as coisas não funcionam e, em alguns casos, como funcionam de
forma injusta, e não se envolver.
Excelente!
ResponderExcluir"Neste contexto, o Planeta precisa de mais, e não menos, Estado."
O que dirão os colunistas e economistas mercadófilos diante destas palavras dum prêmio Nobel?
Espetacular! Reli e gostei ainda mais! "As big techs representam um perigo real para a nossa sociedade. Acho que estão abusando do seu poder."
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