Valor Econômico
Debate não deve ser feito de forma açodada nem no calor de uma disputa política
O ex-presidente Jair Bolsonaro irritou-se com
a pergunta do repórter sobre a situação da articulação política, no que deveria
ser um plantão tranquilo em um sábado aleatório de junho de 2019. Primeiro,
disse que para falar abertamente sobre o tema seria melhor que ninguém
estivesse filmando a conversa. E depois esbravejou: “Querem me deixar como
rainha da Inglaterra?” Para preocupação da área econômica, o motivo da
reclamação era o projeto de atualização do marco das agências reguladoras.
O país ainda tentava se acostumar à rotina do novo mandatário, que nos fins de semana deixava o Palácio da Alvorada com destino desconhecido e disposto a falar sobre qualquer assunto com qualquer pessoa. Começava a era do “cercadinho”, ponto em frente à guarita da residência oficial da Presidência onde Bolsonaro conversava com apoiadores, e que logo se tornou um local hostil à imprensa profissional.
Sem agenda oficial naquele sábado, Bolsonaro
começou o dia visitando um clube e depois foi a um mercado. Passou no serviço
médico da Presidência para exames de rotina, pois dali a algumas horas viajaria
ao Japão para participar da reunião de cúpula do G20. Antes, parou para falar
com os jornalistas que o aguardavam e atacou a proposta que acabara de ser
aprovada pelo Congresso e cujo prazo de sanção expiraria em poucos dias.
Na visão de Bolsonaro, deveria ser vetado o
trecho da lei que instituía uma lista tríplice para a seleção dos candidatos
que poderiam ser indicados pelo presidente da República para cargos de direção
de agências reguladoras. Essa era uma “competência constitucionalmente
conferida ao chefe do Poder Executivo” e apenas a ele, avaliava.
“Ele não entendeu nada”, lamentou depois um
integrante de seu governo. Para auxiliares de Bolsonaro, a lista tríplice
acabaria por diluir a pressão do Congresso.
Por ser responsável por sabatinar os nomes
escolhidos, inevitavelmente o Senado sempre acaba sendo ouvido. Mas o então
presidente acreditava que, na verdade, o projeto aprovado também dava munição
aos deputados.
Outros pontos vetados por Bolsonaro fazem
falta até hoje. Um deles previa o comparecimento anual obrigatório de diretores
de agências ao Senado para a prestação de contas. Outro proibia a indicação de
profissionais que tivessem vínculo com empresas fiscalizadas nos 12 meses
anteriores à escolha de seus nomes.
Esse projeto precisou tramitar durante oito
anos até ser aprovado. Foi concebido para padronizar aspectos administrativos
das agências, como a exigência de criação de ouvidorias, a apresentação de
planos de gestão e agendas regulatórias. Mas acabou com uma redação menos
potente do que gostariam os técnicos do Executivo.
Agora, também devido a resistências vindas do
Palácio do Planalto, pode ser novamente objeto de mudanças.
No intuito de atualizar o atual modelo
regulatório, o governo Lula estuda a possibilidade de enviar ao Congresso
sugestões de mudanças da Lei Geral das Agências, por exemplo, propondo a
criação de uma instituição responsável pela supervisão e coordenação dos outros
órgãos reguladores. O objetivo, asseguram aliados do governo no Legislativo, é
ampliar a prestação de contas à sociedade e garantir mais mecanismos de
prevenção de conflitos de interesse entre profissionais das agências e as
empresas reguladas. Esses interlocutores prometem a ampliação da autonomia e a
redução de espaço para contaminação política na atuação desses órgãos.
Mas um risco que o Planalto corre é ver sua
proposta desfigurada. E nada impede que os parlamentares não vejam nela uma
oportunidade de ampliar seus poderes sobre essas instituições de Estado.
É preciso lembrar que em 2023 houve uma
tentativa no Legislativo de aproveitar a medida provisória que estabelecia a
nova estrutura do governo eleito para a criação de conselhos temáticos
vinculados aos ministérios e às agências. “Dessa forma, para regular,
deslegalizar e editar atos normativos infralegais, ou seja, toda a atividade
normativa terá que haver a interação entre representantes do ministério, das
agências, dos setores regulados da atividade econômica, da academia e dos
consumidores, garantindo o controle e a vigilância de um poder sobre o outro em
relação ao cumprimento dos deveres constitucionais”, dizia a emenda, que acabou
não avançando. Os setores regulados reagiram e ela foi rejeitada.
Em 2013, para dar uma sinalização positiva à
iniciativa privada, a então presidente Dilma Rousseff também promoveu um recuo
e determinou a retirada de tramitação de um projeto sobre as agências que havia
sido enviado ao Congresso por Lula em 2004. Na visão de analistas e
investidores, a proposta fragilizava os órgãos reguladores e aumentava o
controle das agências pelos ministérios.
O novo plano do governo de alterar a atual
política regulatória do país é capaz de gerar um ruído desnecessário no
mercado, em um momento em que a equipe econômica tenta promover um pacto dos
três Poderes para a recuperação do grau de investimento. Ele foi suscitado
durante a disputa eleitoral e na esteira da crise de fornecimento de energia
elétrica em São Paulo, colégio eleitoral disputado por um aliado e estratégico
para o pleito de 2026.
Concessionárias e agências reguladoras devem
atuar com cada vez mais responsabilidade, mas a discussão não deve ser feita de
forma açodada nem no calor de uma disputa política.
Pois é, de boas intenções o inferno está cheio.
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